As relações comerciais Brasil-Estados Unidos numa conjuntura especial
Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.
Subsídios para entrevista com a CBN-Bahia em 10/10/2025, a pedido do Livres.
A primeira coisa que poderia ser dita a respeito das próximas negociações econômico-comerciais entre o Brasil e os Estados Unidos é que elas NÃO deveriam existir, pois que não fazem nenhum sentido num mundo que deveria ser marcado pela predominância institucional e prática do sistema multilateral de comércio, uma arquitetura regulatória dos intercâmbios globais duramente construída ao longo dos últimos 80 anos de criação e funcionamento do multilateralismo econômico contemporâneo, aliás a partir da liderança dos Estados Unidos.
Esse sistema funcionou desde o final da Segunda Guerra Mundial, a partir da aprovação provisória do Acordo Geral de Tarifas Aduaneiras e Comércio, em 1947, em Genebra, tinha sido confirmado na Conferência de Comércio e Emprego em Havana, de 1947 a 1948, e tinha funcionado de forma relativamente satisfatória ao longo de oito rodadas de negociações comerciais multilaterais, com a ampliação progressiva de Estados membros desde então, notadamente dos antigos países socialistas, que passaram a aderir depois da implosão da União Soviética em 1991. A China já tinha se antecipado ao solicitar, em 1987, seu ingresso no Gatt, processo que durou 14 anos, até ela ser finalmente admitida às vésperas da Rodada Doha da OMC em 2001. A partir daí, o gigante asiático tornou-se um adepto dos mais entusiastas dos acordos de livre comércio, convertendo-se, desde a década passada, no principal parceiro comercial de mais de 135 países ao redor do mundo, suplantando, nesse quesito, até mesmo os Estados Unidos, que ainda são a maior economia planetária.
Já no seu primeiro mandato, o presidente Donald Trump havia começado a desafiar o sistema multilateral de comércio, começando por desmantelar o Nafta, o acordo de livre comércio entre o Canadá, os Estados Unidos e o México, negociado entre 1990 e 1993, nas presidências Bush pai e Bill Clinton; ele foi substituído por um acordo tripartite, com várias restrições protecionistas introduzidas pela administração Trump 1 entre 2017 e 2020. Mas, o que se passou a assistir desde o início de sua segunda administração, em janeiro de 2025, é algo absolutamente inusitado nos anais do comércio internacional, uma destruição jamais vista na história de 80 anos do sistema multilateral de comércio e numa trajetória mais do que multissecular da cláusula de nação mais favorecida, o eixo central dos acordos de comércio, presente desde a alta Idade Média na Lex Mercatoria, princípio justamente multilateralizado pelo Gatt e aceito por praticamente toda a comunidade econômica planetária.
Pois, não contente em desprezar a ONU e várias de suas agências especializadas, o presidente Trump, desde sua volta, passou a destruir o coração mesmo do sistema multilateral de comércio, impondo unilateralmente tarifas abusivas contra praticamente todos os parceiros comerciais dos Estados Unidos, aliados e supostos adversários. O “tarifaço” não pode sequer ser chamado de política comercial, pois ele não representa qualquer estratégia coerente, ou racionalmente estabelecida, para regular o intercâmbio comercial dos EUA com todas as demais partes contratantes ao Gatt e membros da OMC: trata-se de um arbítrio irracional, montado supostamente com base nos déficits comerciais bilaterais dos EUA com os demais parceiros, e até aplicado de maneira completamente equivocada contra o Brasil, um dos poucos países do G20 com os quais os EUA mantêm superávit comercial desde muitos anos.
Aliás, no primeiro tarifaço, em abril, o Brasil tinha sido supostamente “premiado” com uma sobretaxa de apenas 10%, aplicada a todo o universo aduaneiro, para depois ser politicamente punido com um adicional de 40%, com algumas derrogações, a pretexto de violações a direitos humanos e perseguição política a um ex-presidente, sem qualquer tipo de justificativa legítima, apenas a vontade de Trump e a incitação traidora de familiares do ex-presidente golpista, processado e condenado pela Justiça brasileira. A Índia também foi punida com sobretaxas adicionais, sob a alegação de comércio com a Rússia, o país agressor da Ucrânia, em clara violação do Direito Internacional, e submetida a sanções por parte de vários países que defendem os princípios estabelecidos na Carta da ONU.
O fato é que as sobretaxas aplicadas ao Brasil, assim como a todos os demais países, incorrem em prejuízos claros para os consumidores americanos, produzindo elevação de preços internos e da própria inflação. Foram pressões de setores empresariais dos EUA, não exatamente uma repentina simpatia de Trump pelo presidente brasileiro, que o levaram a buscar negociações comerciais bilaterais, agora a cargo dos dois chanceleres, que passarão a negociar alguma acomodação. Mas em quais bases podem ser aceitas imposições unilaterais dos EUA, à margem das normas e práticas usuais do sistema multilateral de comércio?
As tarifas nacionais são normalmente declaradas ao Secretariado do Gatt, e ficam registradas em conformidade com os princípios de transparência, de não discriminação entre parceiros e da cláusula de nação mais favorecida, justamente, elementos chaves das relações comerciais, mas sobejamente ignorados por Trump e pela administração americana. Elas podem ser objeto de reclamações dos parceiros, precisamente pela unilateralidade da medida, e é isso que o Brasil deve fazer, iniciando uma contestação formal quanto à arbitrariedade tarifária cometida pelo ainda membro da OMC e parte contratante ao Gatt. No plano bilateral, essas negociações entre as duas chancelarias devem adotar, por parte do Brasil, os mesmos princípios regidos por normas longamente acatadas do sistema multilateral de comércio, inclusive no que se refere à aplicação, igualmente unilateral, da seção 301 da Lei de Comércio dos EUA, que extravasam as definições estritas de caráter comercial, para adentrar em regulação de determinados serviços submetidos à legislação nacional (informática e redes sociais, por exemplo).
O Brasil começou adotando a postura correta no plano formal, não aceitando o unilateralismo americano, nem oferecendo concessões compensatórias, como o fizeram alguns parceiros dos EUA, notadamente na Europa e por parte de alguns países asiáticos. Alguns gestos impensados por parte do presidente, como aventar a hipótese improvável de “desdolarizar” as relações comerciais, não correspondem a uma estratégia realista, por parte da diplomacia profissional, de reação ao arbítrio trumpista. O Brasil deve defender a correta aplicação dos mecanismos existentes nas normas comerciais multilateralmente adotadas e atuar com base nas disposições formais do Direito Internacionais e nas práticas costumeiras da Lex Mercatoria, negociando eventuais ajustes em tópicos específicos dos intercâmbios bilaterais de bens e serviços com o pragmatismo requerido em situações assimétricas, como cabe reconhecer neste caso.
O comércio, feito geralmente pela iniciativa privada, com base em interesses concretos dos atores primordiais, sem preconceitos políticos, não pode servir de campo de batalha para candidatos à hegemonia econômica mundial. A afirmação, pelo Brasil, de seus princípios e valores no contexto da diplomacia bilateral, assim como em defesa das normas mais elementares do sistema multilateral de comércio, deve guiar a postura dos negociadores brasileiros nesta próxima etapa das consultas a serem mantidas pelas duas partes. É o que se espera de nossa diplomacia bicentenária, sempre comprometida com a defesa do interesse nacional e no estrito respeito ao Direito Internacional e à convivência cooperativa com todos os demais membros da comunidade mundial de Estados membros da ONU.
Paulo Roberto de AlmeidaBrasília, 5085, 9 outubro 2025, 3 p.
Perguntas encaminhadas pelos jornalistas do canal CNN-Salvador da Bahia sobre o tema:
1. Embaixador, qual a sua primeira leitura sobre esse primeiro contato direto entre Lula e Donald Trump?
PRA: Foi surpreendentemente positivo, mais do que outros encontros de cúpula, com europeus, asiáticos, os próprios canadenses, os quais foram praticamente humilhados por Trump. A postura cautelosa, até desafiadora de Lula, ajudou a mudar o humor de Trump para com o Brasil. Em parte isso deve responder às preocupações de empresários americanos que estão pagando mais caro por café, carne, suco de laranja e outros produtos. Provavelmente, não teremos mais aquelas cartas ameaçadoras, dando ordens a Lula para libertar Bolsonaro e garantir os lucros das Big Techs. Isso parece ter acabado, e agora vamos entrar num terreno mais incerto, a ser negociado entre burocratas, economistas e diplomatas.
2. Que mensagem simbólica o encontro transmite no cenário internacional, considerando os perfis políticos tão distintos dos dois líderes?
2. Que mensagem simbólica o encontro transmite no cenário internacional, considerando os perfis políticos tão distintos dos dois líderes?
PRA: Um recuo de Trump e uma aparente vitória de Lula, que não saiu prometendo, como europeus e japoneses, bilhões de dólares em investimentos industriais nos EUA. O perfil político não importa muito para Trump: o que ele mais deseja é fazer negócios, em primeiro lugar para si mesmo e familiares, depois para os Estados Unidos. Europeus e japoneses devem ter ficado com inveja do Lula, que foi bastante desafiador com Trump.
3. Esse diálogo representa mais uma estratégia diplomática de Lula ou um gesto pragmático diante das mudanças políticas nos EUA?
3. Esse diálogo representa mais uma estratégia diplomática de Lula ou um gesto pragmático diante das mudanças políticas nos EUA?
PRA: Na verdade, não creio que Lula estivesse esperando alguma mudança positiva vinda de Trump, e sua estratégia, se havia alguma, era de resistência às imposições unilaterais de Trump. Mas ele sempre declarou estar disposto a um diálogo respeitoso, sem intervenção nos assuntos internos do Brasil e resguardando nossa soberania. Não creio que ele tivesse alguma estratégia diplomática até sua fala na ONU e o encontro com Trump.
4. Historicamente, como o Brasil tem equilibrado suas relações com governos americanos de orientações ideológicas opostas?
4. Historicamente, como o Brasil tem equilibrado suas relações com governos americanos de orientações ideológicas opostas?
PRA: O Brasil sempre foi pragmático em suas relações com os EUA, pelo menos no plano da diplomacia. Momentos de maior aproximação entre líderes dos dois países ocorreram primeiro durante a ditadura militar, entre o chanceler Azeredo da Silveira e Henry Kissinger, o que não impediu Kissinger de continuar bloqueando o acesso do Brasil a tecnologias sensíveis. Depois tivemos a boa relação entre Fernando Henrique e Clinton, assim como de FHC com vários líderes socialdemocratas europeus. Finalmente, a despeito dos temores, a relação entre Lula e Bush filho foi relativamente boa, apesar de Lula ter sabotado, junto com Kirchner e Chávez, o projeto americano da Alca, a área de livre comércio hemisférica proposta por Clinton. Depois disso tivemos a aproximação, e eu diria a submissão de Bolsonaro ao primeiro Trump, num dos momentos mais vergonhosos da diplomacia brasileira. Nenhum pragmatismo, submissão total, estilo “I love you, Trump!”.
Agora voltamos a mais pragmatismo, num momento especial, pois o mundo inteiro está submetido ao arbítrio tarifário de Trump, sua arrogância e desprezo aos que não se submetem aos seus desejos e vontades. Lula e a diplomacia brasileira fizeram bem em resistir.
5. A volta de Trump à Casa Branca em 2025 alterou a política externa dos EUA em relação à América Latina?
PRA: Sim, já está alterando, no caso da Venezuela, oposição total, e no caso da Argentina, tratada com bastante condescendência.
6. [Como se situa] o governo Lula busca em face do novo mandato de Trump?
6. [Como se situa] o governo Lula busca em face do novo mandato de Trump?
PRA: Lula procedeu mal, durante a campanha, ao apoiar abertamente a candidata democrata Kamala Harris. Isso é uma interferência indevida nos assuntos internos, no caso eleitorais, de outro Estado, o que, aliás, Lula sempre praticou, apoiando seus amigos esquerdistas em praticamente todas as eleições presidenciais latino-americanas.
Mas, vamos convir, também, que os Estados Unidos também interferiram nos nossos assuntos internos, e a eleição de Lula pode ter sido garantida por essa intervenção americana nas nossas eleições de 2024: Joe Biden mandou seu Secretário de Segurança Nacional ao Brasil, assim como o chefe da CIA, William Burns: ambos vieram dar um recado muito claro a Bolsonaro e aos militares, “Não tentem nenhum golpe, pois nesse caso seremos obrigados a nos opor, com tudo o que isso significa!” Praticamente foi Joe Biden quem impediu o golpe e com isso garantiu de certa forma a vitória de Lula.
7. Como a diplomacia brasileira deve lidar com o segundo mandato de Trump, considerando seu perfil imprevisível?
PRA: Trump não é apenas imprevisível; ele é caótico, e nisso não tem nenhuma estratégia negociadora. Ele é ignorante em assuntos internacionais, um megalomaníaco desequilibrado, transtornado por certas ideias impossíveis, como a reindustrialização dos EUA, como se isso fosse possível. Na verdade, ele está acelerando do declínio americano e ajudando involuntariamente a China em sua ascensão como novo Hegemon mundial.
A diplomacia brasileira deveria manter equidistância desses conflitos entre as grandes potências, mantendo a tradicional autonomia decisória e neutralidade da política externa em assuntos que não afetam nosso interesse nacional. A inclinação de Lula pelas duas grandes autocracias do Brics, a Rússia e a China, não combina com valores e princípios de nossa diplomacia, assim como com os padrões tradicionais das relações exteriores do Brasil.
8. Há algum paralelo entre o momento atual e as relações Brasil-EUA durante governos anteriores, como os de Fernando Henrique ou Dilma Rousseff?
PRA: Nenhum paralelo é possível, pois em períodos anteriores das relações entre as duas maiores democracias do hemisfério americano, presidentes tinham um perfil mais ou menos tradicional na classe política respectiva dos dirigentes em cada país. Com Bolsonaro, o Brasil conheceu um presidente despreparado, disposto a tudo para se mostrar subserviente, não apenas aos Estados Unidos, mas a Trump em particular, tanto que ele hostilizou Joe Biden, negando até sua vitória nas eleições de 2020. Com Trump, o cenário é ainda mais desolador, pois se trata de um elefante numa loja de cristais, uma personalidade altamente egoísta, desequilibrada e megalomaníaca, que está destruindo tudo o que os Estados Unidos construíram desde Bretton Woods, a ONU e toda a ordem liberal ocidental dos últimos 80 anos. Não existem precedentes para as atitudes de Trump na história dos EUA e do mundo, um presidente que atua em detrimento do seu próprio país, por ignorância e também por péssimos assessores, todos demonstrando uma fidelidade canina ao chefe, inclusive nas péssimas decisões que ele toma, como a destruição do sistema multilateral de comércio e a própria ONU. Já não bastasse Putin e suas aventuras expansionistas militaristas, agora temos um outro autoritário no comando da maior economia do planeta e das Forças Armadas mais poderosas em toda a história da humanidade.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 10/10/2025
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