Trump, ou a diplomacia pelo método confuso
Por Paulo Roberto de Almeida
Revista Será?, out 31, 2025.
Em virtude de certo ceticismo sadio, que cultivo amplamente em relação às ideias de senso comum, sempre apreciei livros, ensaios e artigos nessa vertente contrarianista, isto é, obras ligeiramente desconfiadas das verdades reveladas que, bem pesquisadas, podem não confirmar pressupostos de argumentos geralmente admitidos como válidos no entendimento comum dos simples mortais. Desde jovem, já grande leitor de história do Brasil e também da história do mundo – aqui estimulado pelas leituras infantis de Monteiro Lobato, neste caso o História do Mundo para as Crianças, uma tradução-adaptação do criador do Jeca Tatu com base num famoso livro americano dedicado ao público infantil, mas contado por Dona Benta – apreciei imensamente quando o inesquecível Stanislaw Ponte Preta (o humorista Sérgio Porto) compôs o “Samba do Crioulo Doido”, um título que é hoje, integral e totalmente, politicamente incorreto, mas ainda admissível naqueles primeiros tempos da ditadura militar. Anos depois vim a tomar conhecimento do livro do médico e jornalista José Madeira, ou “Mendes Fradique”, autor do livro História do Brasil pelo método confuso, publicado pela primeira vez em folhetins a partir de 1917, e que vim a ler numa edição ilustrada de 2004.
Esse gosto pelas versões sarcásticas, até mesmo caóticas, da história nacional, me acompanhou quando ingressei na diplomacia, em 1977, depois de sete anos de um autoexílio na Europa, para escapar de uma possível prisão nos anos de chumbo da ditadura militar. O fato é que, ao lado das leituras sérias sobre a política mundial e as relações internacionais, continuei a correr atrás do inusitado na minha própria profissão, sempre atraído pelo lado contestador de sua pompa aparente, do seu jeito chic, até emplumado, que é a imagem que os paisanos costumam ter de nós, diplomatas, como sempre finos e sofisticados. Nas pesquisas sobre o lado bizarro da profissão, acabei encontrando algumas definições pouco elogiosas sobre nossas supostas características comportamentais, as quais me permito reproduzir aqui, antes de tratar do tema-título.
Como passei quase sete anos estudando em francês – retomada integral da graduação em Ciências Sociais, abandonada depois que o AI-5 aposentou compulsoriamente meus professores, entre eles Florestan Fernandes, FHC e Octavio Ianni, seguida de um mestrado e um início de doutoramento – fui buscar, naturalmente, na literatura francesa, alguns apodos sarcásticos sobre meus colegas de profissão, e comecei logo por um dos mais famosos escritores franceses, Gustave Flaubert. Além dos romances mais conhecidos, Madame Bovary e Salambo, Flaubert também compôs, uma obra talvez não terminada, apresentada em 1850 como sendo Le Dictionnaire des Idées Reçues. Num dos volumes de suas Oeuvres Complètes, publicada pelas Editions du Seuil, em 1964, encontrei o que procurava (no tomo 2, p. 307), a definição de “diplomacia”. O criador de Bouvard e Pécuchet, dois copistas dedicados à composição de uma enciclopédia sobre os ofícios mais conhecidos, chegam à ocupação dos diplomatas:
Belle carrière (mais hérissée de difficultés, pleine de mystères). – Ne convient qu’aux gens nobles. – Métier d’une vague signification, mais au-dessus du commun. – Un diplomate est toujours fin et pénétrant.
Continuando em minhas investigações, e induzido por comentários de colegas mais velhos, que reproduziam uma famosa frase supostamente dita por um embaixador britânico sobre o caráter pérfido dos representantes da espécie, fui buscar a origem dessa designação depreciativa, e encontrei-a num outro dicionário, de autoria de um escritor e crítico satírico americano, Ambrose Bierce: The devil’s dictionary foi originalmente publicado em 1911, mas o consultei na edição de 1999 da Oxford University Press, onde assim se define a profissão: Diplomacy. The art of lying on behalf of his country. O introdutor dessa edição, Roy Morris Jr., discorre sobre a razão de Bierce ter chamado a sua obra de Dicionário do Diabo, mas não estabelece nenhuma conexão direta com eventuais qualidades próprias a essa espécie.
Ainda prosseguindo em minhas investigações vocabulares, já a caminho de assumir o segundo cargo na embaixada em Washington, o de ministro conselheiro, mas querendo, na verdade, servir novamente na Europa, deparei-me com um legítimo sucessor de Gustave Flaubert, Alain Schifres, que, no seu Le nouveau dictionnaire des idées reçues, des propos convenus et des tics de langage ou Le dîner sans peine (Paris: Jean-Claude Lattès, 1998), assim se referiu, desdenhosamente, à nossa tão distinguida ocupação: Diplomates. Un bon diplomate à l’ancienne : cynique, tortueux, lâche, hypocrite mais exquis (p. 87). Malvado!
Em Washington, provavelmente a capital de um império com o maior número de representações diplomáticas, continuei em minhas duvidosas pesquisas, frequentando intensamente várias universidades (George Washington, Georgetown, American) e todos os think tanks (Carnegie, Brookings, Cato, CSIS etc.), para doutos seminários e debates úteis sobre as singularidades de nossa profissão tão pouco apreciada pelo público em geral. Foi instrutivo, pois aproveitei as horas de lazer para compor o meu próprio dicionário, tão provocador quanto os precedentes, e até o conservei (sob o número 873, Washington, 26 de fevereiro a 3 março de 2002), em minha lista de trabalhos mas nunca o terminei, embora o tenha registrado sob um título quase interminável: “Dicionário de disparates diplomáticos (ou dicionário politicamente incorreto de meias-verdades diplomáticas, constando de um repertório de ambiguidades, equívocos e paradoxos da vida internacional)”. Encaminhei o rascunho a alguns colegas de ofício, mas não devo ter recolhido opiniões abonadoras, razão pela qual deixei interrompida a minha coletânea, prometendo terminá-la numa futura ocasião (quem sabe agora, já na aposentadoria, sem o risco de retaliações maciças, como parece ser o hábito entre nossos colegas militares).
Eram os tempos de Bush filho, que todos considerávamos uma aberração diplomática, decidido a terminar, sem o aval da ONU, o trabalho iniciado em 1991 pelo pai, na primeira guerra do Golfo, devidamente autorizada pelo Conselho de Segurança. Lula, logo ao início de seu primeiro mandato, até tentou dissuadir o Bushinho dessa loucura, mas a “diplomacia” do filho menos bem dotado da família fez ameaças a Brasília, através da embaixada na capital americana, como eu próprio testemunhei em conversa com o embaixador Rubens Barbosa no exato momento em que o império começava seu trabalho de desmantelamento do Oriente Médio (que aliás resultou no Estado Islâmico). Mal sabíamos nós, naquele momento, que o futuro nos reservava coisa bem pior, e aqui chego, finalmente, ao objeto deste artigo: a “diplomacia” de Mister Trump, se é que o conceito pode ser aplicado a tão abominável modo de lidar com o ROW, o Resto do Mundo (que resume a geografia simplória do personagem).
Assim como o atual Brics+ não tem mais nada a ver com o BRIC original, ou com o Brics que lhe veio na sequência, Trump 2 não tem quase nada a ver com Trump 1, a não ser a mesma indômita ignorância sobre os assuntos do mundo (além da especulação imobiliária), em especial sobre os assuntos do sistema multilateral de comércio, que ele se empenha em destruir, como não conseguiu fazer em seu primeiro mandato. Entre 2017 e 2020, Trump 1 conseguiu, se tanto, substituir o Nafta por um acordo tripartite com o Canadá e o México, já tentando “reindustrializar” a Trumplândia, como se protecionismo comercial fosse um substitutivo a uma política industrial em tempos de quinta revolução industrial (a qual os chineses já lideram, depois de terem falhado nas duas primeiras revoluções industriais e de terem ainda afundado um pouco mais na terceira, sob as “trumpices” econômicas do maoísmo demencial). Trump é uma espécie de Rei Midas ao contrário, pois tudo em que toca vira o contrário da “relíquia bárbara” desprezada por Keynes, um ouro de cor marrom, se vocês percebem a qualidade do material produzido.
Trump não tem predecessores nos anais da diplomacia mundial desde a guerra do Peloponeso – perdida mais por erros diplomáticos de Atenas, nas relações com os membros da Liga Ateniense, do que propriamente pela força dos exércitos espartanos – e não sei se haverá algum Tucídides para relatar a miséria que o promotor do MAGA está fazendo contra aliados e adversários, que ele trata com a mesma truculência usual nas artes marciais do kickboxing americano, tão apreciado pelas massas ignaras que o seguem devotamente. O “tarifaço”, aplicado contra gregos e troianos ao redor do mundo, é uma guerra comercial tão destruidora dos fundamentos do sistema multilateral de comércio, em especial a secular cláusula de nação mais favorecida multilateralizada no Gatt, quanto o é a guerra de agressão deslanchada por Putin contra a Ucrânia, do ponto de vista das regras mais elementares do Direito Internacional, em especial no tocante aos primeiros artigos da Carta da ONU.
Putin e Trump são os dois principais destruidores da ordem política e econômica do mundo contemporâneo, concebida precariamente em Yalta e formalizada em San Francisco num estilo propriamente orwelliano, o do Animal Farm: “todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que outros”. Trump adoraria repetir a famosa foto de Yalta, com os atuais três imperadores do mundo, ele mesmo, Putin e Xi Jinping, no lugar de Roosevelt, Churchill e Stalin. Não conseguirá obter essa foto de uma nova divisão do mundo, uma vez que o novo imperador do renascido Império do Meio não exibe as pretensões hegemônicas de alguns predecessores e, também, porque a “diplomacia” de Trump se faz, como já alertado, pelo “método confuso”, tanto o de Mendes Fradique quanto o de Stanislaw Ponte Preta. Como já disse alguém, a história não se repete, nem como drama, nem como farsa, como aliás pretendia Marx no 18 Brumário de Luís Bonaparte.
A História de fato não se repete, embora, segundo um outro escritor humorista, Mark Twain, ela possa rimar, como nas melhores tragédias de Shakespeare, com múltiplas traições e assassinatos em sequência. Por enquanto, o imperador americano está assassinando apenas pescadores nas águas do Caribe e do Pacífico oriental…
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 5098, 25 outubro 2025, 4 p.

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