O Retrocesso Invisível: Como o Governo Ignora o Saneamento Enquanto Discursa Sobre Saúde e Clima na COP30
MEDICI ANDRE
International Senior Consultant in Health Economics and Health Development Strategy - Author @ Monitor de Saude Blog | PhD in Economic History
November 13, 2025
André Medici
As reuniões do Ministério da Saúde na COP30, em Belém, foram marcadas por discursos grandiosos, painéis inspiradores e um entusiasmo diplomático raro. O governo apresentou-se como líder global na integração entre saúde e meio ambiente, lançou o Plano de Belém e defendeu a importância da resiliência climática para proteger populações vulneráveis.
Mas havia um silêncio ensurdecedor no centro de tudo. O Ministério da Saúde evitou qualquer menção ao maior fracasso ambiental e sanitário do próprio governo — o retrocesso na política de saneamento básico.
Ao exaltar compromissos internacionais, o governo Lula deixou de reconhecer que a reversão do Marco Legal do Saneamento, promovida desde 2023, enfraquece exatamente os pilares que seu discurso internacional pretende defender: proteção da saúde pública, prevenção de doenças ambientais e adaptação aos eventos climáticos extremos.
É difícil liderar o mundo quando se ignora o que acontece no quintal. O Brasil segue paralisado na área de saneamento básico e o governo finge que não vê. O saneamento básico é a infraestrutura mais essencial para a saúde humana. Água potável e esgoto tratado salvam mais vidas do que qualquer nova tecnologia, política climática ou programa emergencial. Ainda assim, o país convive com indicadores que beiram o inaceitável:
quase 35 milhões de brasileiros sem água potável,
mais de 100 milhões sem coleta de esgoto,
em vários estados, menos de 15% do esgoto é tratado,
e boa parte das perdas de água ultrapassa 40%, puro desperdício.
Em vez de acelerar as reformas estruturais aprovadas em 2020, o governo Lula decidiu desmontá-las. Dois decretos — 11.466 e 11.467 — reabriram contratos diretos com estatais sem licitação, enfraqueceram requisitos de solvência e reabilitaram um modelo de saneamento que, por décadas, deixou o país parado no século XIX.
Enquanto isso, na COP30, falava-se em inovação, justiça climática e prevenção de doenças. Faltou apenas mencionar o óbvio: não há política climática possível sem saneamento. Quando não se investe em saneamento, a conta aparece na saúde.
O Ministério da Saúde parece não perceber — ou prefere não admitir — que a falta de saneamento é hoje a principal fragilidade ambiental e sanitária do Brasil. A diarreia infantil, as parasitoses, as hepatites e a leptospirose continuam atormentando famílias pobres. Os surtos pós-enchentes se repetem.
Somado às mudanças climáticas, o problema se agrava: mais calor, mais chuva, mais água parada, mais esgoto exposto, mais vetores. A proliferação de dengue, chikungunya e zika não é um desastre natural — é o resultado direto desta infraestrutura deficiente.
A OMS estima que cada R$ 1 investido em saneamento gera até R$ 4 de economia na saúde. Mas o governo escolheu o caminho oposto: preservar estatais ineficientes, travar privatizações e deixar municípios sem alternativa competitiva. Enquanto a COP30 celebrava “resiliência ambiental”, o SUS se preparava para mais surtos de epidemias evitáveis.
Em Belém, o Brasil se apresentou ao mundo como potência moral e diplomática em saúde e clima. Mas o país que discursava sobre resiliência climática é o mesmo que:
mantém córregos de esgoto a céu aberto nas grandes cidades,
não consegue expandir redes na Amazônia e no Nordeste,
permite que enchentes espalhem doenças,
e tolera indicadores sanitários comparáveis aos países mais pobres do mundo.
O contraste é gritante. O Ministério da Saúde falou longamente sobre adaptação climática, mas não dedicou um minuto àquilo que mais impacta a adaptação no Brasil: saneamento urbano, drenagem, esgoto, abastecimento seguro. Sem isso, tudo o resto vira marketing climático.
Quem mais sofre com a política atual? São as crianças periféricas, indígenas e ribeirinhos, moradores do semiárido, favelas sem drenagem e populações expostas a enchentes e contaminação.
Ao restaurar monopólios estatais e travar investimentos privados, o governo ampliou o hiato entre ricos e pobres. Os indicadores não mentem. Onde houve concessões privadas (Alagoas, Rio de Janeiro, Pará e São Paulo[i]), a cobertura de saneamento cresceu mais em três anos do que as estatais haviam conseguido em trinta. Mas esse fato inconveniente não foi lembrado nas reuniões sobre saúde e meio ambiente em Belém.
O saneamento é a obra invisível. Ninguém tira foto inaugurando, mas ele salva mais vidas do que hospitais. É a base para saúde, para educação, para produtividade, para clima, para dignidade. Negligenciar saneamento é perpetuar doenças, desigualdade e atraso. O governo Lula poderia ter usado a COP30 para reconhecer erros, ajustar rota e colocar saneamento no centro da agenda climática.
Mas, como sempre, preferiu a omissão. O resultado é um Brasil que, na vitrine internacional, promete resiliência mas, nos bastidores, continua permitindo que milhões vivam entre esgoto, mosquito e descaso. Se o país realmente quer liderar a agenda de saúde e clima, precisa começar dizendo a verdade: não há adaptação climática sem saneamento, e não haverá universalização e equidade na saúde se o país continuar insistindo em modelos de gestão no saneamento que fracassaram por cinquenta anos.
[i] No caso de São Paulo, a SABESP foi privatizada em 2024, mas os resultados na melhoria do saneamento já são visíveis. O contrato prevê 99% de abastecimento de água para a população e 90% de esgoto tratado até 2029.
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