terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Doutrina Trump e a nova desordem global Editorial, O Estado de S. Paulo

Doutrina Trump e a nova desordem global

Editorial, O Estado de S. Paulo (09/12/2025)

Casa Branca rompe oficialmente com a ordem de 1945 e transforma aliados em alvos e o Hemisfério Ocidental em zona de influência, ao mesmo tempo que acomoda autocracias como Rússia e China

As Estratégias de Segurança Nacional dos Estados Unidos costumavam ser documentos programáticos. A de Donald Trump, divulgada na semana passada, é a codificação de uma ruptura doutrinária. Pela primeira vez desde 1945, Washington abdica explicitamente da gramática que sustentou a ordem liberal – alianças, previsibilidade, contenção e distinção moral entre democracias e autocracias. A administração Trump oferece, em seu lugar, um amálgama de identitarismo, interesses imediatos e transações personalistas. Trata-se de uma visão de mundo tão improvisada quanto radical. E, ainda assim, suficientemente articulada para reconfigurar o sistema internacional.

O abandono da ordem pós-1945 é explícito. O documento não fala em “mundo livre” nem em liderança democrática, mas em soberania absoluta, competição civilizacional e “realismo flexível”. Regras importam menos do que preferências; compromissos, menos do que barganhas. A política externa americana deixa de ser fiadora da ordem liberal e assume a lógica das esferas de influência – inclusive reconhecendo, de modo tácito, a da Rússia. A distinção entre aliados e autocratas dissolve-se na medida em que ambos são avaliados segundo um critério único: a utilidade imediata para os EUA.

Esse revisionismo é mascarado por um discurso de retração. Trump promete não impor valores e evitar aventuras externas, mas o documento advoga abertamente por intervir no debate interno europeu, apoiar movimentos nacionalistas e remodelar o equilíbrio político do continente. É uma doutrina anti-intervencionista que intervém, e se diz pacifista enquanto militariza o Caribe. Nada disso sinaliza coerência, mas sinaliza poder. A Europa, em particular, aparece não como parceira estratégica, mas como alvo ideológico. Governos eleitos são descritos como elites ilegítimas, a imigração é tratada como ameaça civilizacional, e a União Europeia, como entrave à liberdade. O efeito imediato é a erosão da confiança transatlântica; o efeito de longo prazo é o enfraquecimento da Otan e o incentivo ao irredentismo russo.

No Hemisfério Ocidental, a ruptura é ainda mais profunda. O chamado “Corolário Trump” à Doutrina Monroe (“América para os americanos”, de 1823) transforma a região em prioridade militar dos EUA, com operações letais contra cartéis, presença naval ampliada e vigilância sobre minerais estratégicos e cadeias críticas. Países “alinhados” são recompensados; governos divergentes, tolerados, desde que cooperem em migração, crime organizado e contenção de potências extrarregionais. Para o Brasil, isso implica maior pressão sobre 5G, terras raras, portos e parcerias com a China. Trata-se, em essência, da restauração de uma esfera de influência cuja legitimidade o próprio Direito Internacional já havia repudiado.

O pano de fundo é a normalização das autocracias. O documento ignora violações russas, poupa ditaduras do Golfo Pérsico, suaviza críticas à Índia e reenquadra a China de rival geopolítica a mera concorrente econômica. Democracias são admoestadas; autocratas, bajulados. A bússola moral que guiou a política externa americana desde Truman (1945-1953) é substituída pelo pragmatismo de curto prazo – e, paradoxalmente, por uma retórica civilizacional que ecoa movimentos antiliberais em todo o Ocidente.

Nenhuma dessas escolhas torna os EUA mais seguros. Ao contrário: a estratégia incentiva as aventuras de Moscou, fragiliza a coesão europeia, aprofunda a competição sino-americana e transforma o continente americano em palco de tensões que poderiam ser geridas diplomaticamente. Mais grave: desmoraliza a noção de que a força norte-americana é inseparável das normas que ela própria ajudou a criar.

Resta uma dúvida: até que ponto essa doutrina sobreviverá ao próprio Trump? A incoerência interna, o caráter volátil do presidente e a resistência de instituições americanas talvez limitem sua implementação. Mas a simples existência dessa estratégia – articulada, oficial e ideologicamente carregada – já prenuncia uma era pós-liberal. Uma era em que a ordem construída em 1945 deixa de ser horizonte e passa a ser, para Washington, apenas uma lembrança incômoda.


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