Estudo da USP desmonta hipótese Colombo da sífilis
Marcelo Leite
Folha de S.Paulo, 5/02/2010
Ossos antigos e genética inocentam marinheiros de levar doença para a Europa
Quem for ao portal do Ministério da Saúde pesquisar sobre a sífilis encontrará que a doença sexualmente transmissível, de péssima fama, foi levada por marinheiros de Cristóvão Colombo da América para a Europa, no final do século 15. Uma informação errada, segundo estudo que surgiu de um curso de pós-graduação da USP.
A disciplina foi ministrada um ano atrás por Sabine Eggers no Instituto de Biociências. Sob o título "Variabilidade em Homo sapiens: aspectos genéticos e ambientais", não tinha a princípio nada a ver com sífilis.
A geneticista deixou os alunos escolherem o que queriam fazer. Eles optaram por estudar o efeito da evolução darwiniana na medicina, aprender paleopatologia (estudo de doenças em vestígios fósseis) e escrever um artigo científico.
O resultado saiu em formato eletrônico no periódico "PLoS Neglected Tropical Diseases", dedicado a doenças tropicais negligenciadas, em janeiro: uma refutação da hipótese de que a doença só tenha chegado à Europa depois de 1492. Os marinheiros de Colombo e as índias com quem tenham mantido relações sexuais foram inocentados da acusação de ter iniciado a epidemia que devastou Nápoles em 1495.
Mal moderno
A sífilis pode ser uma doença devastadora. Inicia-se com uma pequena ferida nos órgãos genitais, 2 a 3 semanas depois da relação desprotegida, e em seguida parece sumir. Volta a manifestar-se depois, com manchas pelo corpo, queda de cabelos, cegueira, paralisias -e pode levar à morte.
Com a descoberta da penicilina, em 1928, pôde enfim ser tratada. A dificuldade de diagnóstico, no entanto, ainda a mantém em circulação e favorece a transmissão na gravidez. No Brasil, o número de casos de sífilis congênita mais que dobrou entre 1998 e 2006, passando de 2.840 para 5.749.
Importante para a pesquisa foi a sífilis causar deformações nos ossos -como a "tíbia em forma de sabre"- identificáveis em esqueletos antigos. E biólogos moleculares já haviam "soletrado" o DNA da bactéria Treponema pallidum pallidum, agente causador da doença.
O grupo multidisciplinar de alunos planejava desde o princípio combinar as ferramentas históricas e genéticas no estudo, portanto a sífilis se tornou uma candidata forte. "Era uma escolha interessante, pois havia saído um livro recentemente ["The Myth of Syphilis", O Mito da Sífilis, de Mary Lucas Powell e Della Collins Cook] que colocava bem a sua intrincada história", conta Eggers.
O primeiro passo foi reunir na literatura científica exemplos de esqueletos com vestígios característicos de sífilis. Após depurar casos duvidosos, restaram sete registros no Velho Mundo (Europa e Ásia) anteriores ao Descobrimento.
Esqueletos e genes
O diagnóstico por paleopatologia, no entanto, sempre deixa margem a dúvidas. Existem outras treponematoses (doenças causadas por bactérias do mesmo gênero) com efeitos comparáveis. O levantamento na literatura apontava evidências fortes para inocentar marinheiros europeus e índias americanas, mas não conclusivas.
É aí que o estudo da USP inova, ao complementar o registro histórico com ferramentas de biologia molecular. A ideia -usar o chamado "relógio molecular"- partiu do aluno Fernando Lucas de Melo, primeiro autor do artigo na "PLoS".
Relógio molecular é uma técnica que parte da taxa de mutação constatada em cada organismo. A sequência do genoma muda naturalmente, com o tempo, mas cada espécie o faz em velocidade mais ou menos característica. Simplificadamente se pode dizer que, com duas amostras obtidas em locais diferentes, é possível estimar se uma se originou da outra e quanto tempo atrás.
Para a sífilis venérea ter aparecido cinco séculos atrás de cepas menos virulentas, como pressupõe a hipótese Colombo, a bactéria precisaria ter taxa de mutação cem vezes mais rápida que o previsto. Pelo relógio da USP, a sífilis deve ter emergido há mais de 4.000 anos.
A combinação dos dois métodos não foi capaz, porém, de solucionar o mistério sobre a origem geográfica da sífilis. Só se sabe que ela estava presente no Novo e no Velho Mundo antes do Descobrimento, mas não qual continente exportou para o outro o "mal de Vênus" (a deusa do amor, origem da expressão "doença venérea").
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