Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
quinta-feira, 8 de abril de 2010
2044) Mais um questionario sobre a atividade diplomatica
Paulo Roberto de Almeida
Shanghai, 8 de abril de 2010
Respostas a questões colocadas por estudante de Relações Internacionais.
Recebo mais um – ainda não contei todos os que recebi, mas dá para numerar nas dezenas – questionário sobre a carreira, o trabalho, os afazeres (e talvez até a falta do que fazer) dos diplomatas, enviados por esses estudantes curiosos ou que precisam fazer algum trabalho universitário, e lá vão eles para o Google “pesquisar” um pouco. E não é que eles descobrem um diplomata bonzinho e solícito que, além de ter um site e alguns blogs com uma penca de materiais sobre o assunto, ainda se dispõe a responder de graça suas mais bizarras questões?
Pois eu estou ficando cansado dessa rotina, não exatamente de escrever sobre temas que fazem parte de meu cotidiano ou universo intelectual, mas dessa non-chalance com que os estudantes consideram que os demais estão a seu serviço exclusivo. Estou achando os estudantes brasileiros extremamente preguiçosos, e com uma ponta de arrogância também. Claro, não apenas eles, mas um pouco os estudantes de todo o mundo, ainda nas fraldas ou no kinder-garten, já começam aprendendo o be-a-bá do copy-and-paste, fazendo trabalhos escolares na base da googalização.
Em relação aos temas diplomáticos, eles sequer se dão ao trabalho de pesquisar no Google, ou buscar em fontes apropriadas – inclusive no meu próprio site – as respostas a suas questões, e simplesmente empacotam as suas questões e mandam para o “diplomata bonzinho”. Fica portanto a advertência para os incautos, muito ingênuos ou preguiçosos: não vou ficar atendendo esse tipo de demanda assim de graça. Não que eu pretenda “cobrar” por meus serviços, mas simplesmente vou direcionar esses alunos perguntadores aos instrumentos de busca que eles deveriam estar usando, em lugar de esperar que as respostas a suas questões lhes caiam do céu.
Fica o alerta e aqui vão minhas respostas desta vez.
1) Como é a rotina de seu trabalho?
PRA: Já escrevi muito sobre isto e remeto, portanto, a meu trabalho: “O que faz um diplomata, exatamente?” (Brasília, 11 de janeiro de 2006), que poderia ser facilmente encontrado em meu site ou blogs; bastaria um pequeno esforço de clicar aqui e ali: post n. 153, link: http://paulomre.blogspot.com/2006/01/153-o-que-faz-um-diplomata-exatamente.html.
No cômputo global, creio que se trata de uma profissão invejável, pela diversidade de situações que ela permite e pelas oportunidades que cria de engrandecimento pessoal, intelectual e profissional. Os interessados em uma opinião pessoal sobre o que eu creio serem, na atualidade, as regras pelas quais deve pautar-se um diplomata, podem consultar meu ensaio “Dez regras modernas de diplomacia”, no seguinte link: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/800RegrasDiplom.html; um resumo do mesmo texto, limitado às regras, foi colocado em meu Blog, post nr. 62, neste link: http://paulomre.blogspot.com/2005/12/62-dez-regras-modernas-de-diplomacia.html. Boa sorte aos que tentam o ingresso na carreira, mas um aviso preliminar: será preciso estudar muito, antes e durante toda a carreira...
2) Qual foi seu maior desafio na carreira diplomática?
PRA: Sinceramente, não sei dizer; estive em várias situações negociadoras e fiquei várias vezes como chefe de postos (encarregado interino ou representante alterno) e tive, portanto, de responder a situações de responsabilidade. Também estive em conferências diplomáticas nas quais as instruções nem sempre eram satisfatórias ou convenientes.
Mas, talvez os principais desafios não tenham advindo das atividades diplomáticas stricto sensu, mas do ambiente burocrático – hierárquico e disciplinado – do próprio Itamaraty, uma Santa Casa, stricto et lato sensi, que possui regras peculiares, pouco condizentes com meu espírito anárquico e indisciplinado. Nunca suportei a falta de liberdade para expressar livremente minhas opiniões, o ritual servil da hierarquia (que sempre dá ao chefe razão, mesmo quando este manifestamente está equivocado), a bajulação subserviente e a hipocrisia reinante (como em várias outras burocracias, entre elas a outra Santa Casa, o Vaticano). Com meu espírito libertário, e minha vocação para escrever o que penso – jamais no bullshitês habitual da diplomacia – me acomodo mal dessas regras muito estritas de comportamento. Por isso mesmo, tive meus desafios na carreira, exibindo, porém, com certo orgulho minhas “punições” por publicar artigos na imprensa não necessariamente sobre temas diplomáticos, mas sobre temas internacionais, que ainda assim foram censurados pela alta hierarquia da Casa. Não que eu me preocupe com isso, mas isso limita, digamos assim, a minha “liberdade de movimentos”. Por outro lado, várias atividades de cunho acadêmico das quais eu poderia ter participado foram banidas ou reprimidas, seja por normais funcionais ou burocráticas, seja por puro despeito ou ciúmes de burocratas.
Apenas um exemplo, entre outros: tinha sido convidado, em 2003, para trabalhar no Instituto Rio Branco, ou seja, a academia diplomática brasileira, não que eu fizesse questão, mas não tinha por que recusar um convite desse tipo, compatível com meus interesses intelectuais. O convite foi, sem maiores explicações para mim, desfeito, no que eu suponho tenha sido uma objeção política a minhas idéias ou maneira de ser. Da mesma forma, nunca fui convidado para outras atividades desse tipo no âmbito do Itamaraty, a despeito de ser doutor desde 1984 e de ostentar, possivelmente, uma produção intelectual e acadêmica sem paralelo nos anais da diplomacia (pelo menos em termos quantitativos, deixando eu a apreciação qualitativa aos interessados). Interpreto isso apenas como despeito ou ciúmes de diplomatas graduados, para não mencionar razões de natureza política facilmente detectáveis para quem sabe ler...
3) O que é mais interessante na diplomacia?
PRA: Tudo, mas esse tudo depende dos pontos de vista dos diplomatas. Eu, por exemplo, aprecio tudo, ou quase tudo. Por exemplo, não me gostaria trabalhar em cerimonial, administração ou trabalhos burocráticos de maneira geral, ou talvez até consular e promoção comercial. Me interessam mais os aspectos clássicos da diplomacia, ou seja, negociações políticas, comerciais, ou sobre quaisquer outros aspectos, desde que no universo da diplomacia tradicional: informar, representar, negociar. Trata-se de um trabalho intelectual com essa diferença de que participamos do processo decisório em temas por vezes cruciais para o interesse nacional (como a abertura a novos acordos comerciais e de investimentos, por exemplo).
Tem também o lado “turístico” da diplomacia, que não deve ser desprezado: a possibilidade de viver em vários países, de viajar para várias dezenas de outros, de conhecer outros povos, aprender outras línguas, a história de outros continentes, enfim, tudo o que representa uma quebra de rotina me fascina e me encanta o mais possível. Sou um nômade por natureza, e minha mulher mais ainda; não existe posto em que chegamos numa segunda-feira e que, no fim de semana, já não estejamos com o pé na estrada, geralmente de carro próprio ou alugado, para descobrir mais ainda. Percorremos, possivelmente, milhares, talvez alguns milhões de quilômetros, em carro, trem, ônibus, avião e navio (sem falar a pé), faltando apenas camelo, elefante e riquixá (mas ainda vai vir, com certeza, pelo menos no que me concerne). São milhares de fotos, dezenas de álbuns, lembranças inesquecíveis, sem falar das surpresas, a maior parte agradável, algumas desagradáveis (mas isso também faz parte do encanto da diplomacia). Morando fora, aprendemos a relativizar os nossos problemas, que não são poucos, com certeza, mas devemos relembrar que o diplomata, onde esteja, sempre faz parte de uma elite, no bom sentido da palavra.
Enfim, do meu ponto de vista, a maior riqueza que adquiri na diplomacia, e que representa um prolongamento de minhas atividades intelectuais, foi mais conhecimento, mais aprofundamento nos problemas humanos, a possibilidade de traçar esquemas comparativos, de ver o que fizemos de bom (algumas coisas) e o que continuamos a fazer de errado (muita, muita coisa, impossível de tratar aqui, mas que está refletido em meus muitos trabalhos, que não deixam de recolher a experiência adquirida nessas viagens e leituras por países diversos).
4) Quais de seus trabalhos (livros, artigos, etc.), o senhor mais gostou?
PRA: Particularmente, eu gosto de todos, pois cada um reflete uma dedicação especial ao conhecimento do problema enfocado nos livros. Mas, digamos que a maior parte deles reflete síntese de conhecimentos e experiências acumuladas ao longo de uma dupla carreira de diplomata e de acadêmico. O que talvez englobe todos esses aspectos de pesquisa e reflexão é o meu Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império (Funag-Senac, duas edições, 2001 e 2005). Mas também gosto do meu Velhos e Novos Manifestos, que inaugurou minha série de clássicos revisitados, que eu já continuei com um Maquiavel (O Moderno Príncipe), e que eu pretendo fazer seguir de vários outros.
Tenho alguns artigos “seminais”, como diriam os acadêmicos, um deles sobre a historiografia das relações internacionais do Brasil, um outro sobre a própria produção acadêmica nessa área. Um outro sobre partidos políticos e política externa parece ser bastante consultado pelos estudantes e pesquisadores.
Sinceramente não sei dizer de qual mais gosto; seria como pedir a um pai escolher entre seus vários filhos, o que seria uma injustiça. Tem algumas pequenas peças de puro divertissement, que não tem absolutamente nada a ver com o trabalho diplomático, de que eu gosto muito também, que são os meus “mini-tratados” (das reticências, das entrelinhas, das interrogações, e outros em preparação...) e algumas outras brincadeiras pouco diplomáticas (tem, por exemplo, um dicionário dos disparates diplomáticos que ainda aguarda acabamento e publicação, talvez para tempos mais amenos).
5) E o papel do Brasil na América Latina, bem como o futuro do Mercosul?
PRA: Já escrevi muito sobre isso e permito-me remeter a diversos trabalhos sobre o assunto. Tem um que se chama precisamente “o futuro do Mercosul”. Se você se desse ao trabalho de pesquisar teria encontrado esses trabalhos.
6) Quais são as chances de o Brasil conseguir um assento permanente no conselho de segurança da ONU?
PRA: Poucas, para ser sincero. Aliás, se pretendesse ser cáustico, eu diria nenhuma, no futuro previsível. Talvez em um outro contexto político e econômico isto seja possível, mas não agora, e não com o Brasil sendo o que é. Não vou me estender sobre isso, posto que se trata de assunto de diplomacia ativa, e nós os diplomatas (com a minha possível exceção) somos bastante disciplinados para não ficar debatendo assuntos de serviço com o público at large. Mas já escrevi algo sobre isso também, bastando pesquisar. Sou razoavelmente realista para ser pessimista neste particular, o que me é autorizado pelas condições em que o tema vem sendo tratado no âmbito da ONU e sobretudo pelo Brasil.
7) Qual é a imagem do Brasil no cenário internacional e suas perspectivas do papel brasileiro nos assuntos de interesse mundial, como o envolvimento brasileiro nas questões de conflitos no Oriente Médio?
PRA: A imagem é atualmente muito boa, não talvez pelas razões que alguns gostariam de invocar (essa hiperatividade toda, a pirotecnia e o carnaval), mas pela seriedade na manutenção da estabilidade macroeconômica e o profissionalismo da diplomacia oficial (não a partidária, obviamente). O Brasil pode e deve envolver-se em todos os temas para os quais tenha contribuições substantivas e credíveis para oferecer, com base em seu conhecimento da situação, num domínio o mais perfeito ou acabado possível dos dados do problema, e com capacidade para influenciar efetivamente o curso das ações ligadas a determinados cenários, sem retórica vazia, sem arroubos de protagonismo superficial, sem essa pretensão a trazer um “outro olhar” a certos problemas que só podem querer dizer envolvimento propagandístico.
Com base no que escrevi acima, você pode deduzir facilmente o que eu penso a respeito do nosso pretendido envolvimento nos assuntos do Oriente Médio. Uma diplomacia que se pretenda séria e responsável evita expor o Brasil a situações ridículas e puramente de promoção pessoal.
Paulo Roberto de Almeida
(Shanghai, 9 de abril de 2010)
3 comentários:
Comentários são sempre bem-vindos, desde que se refiram ao objeto mesmo da postagem, de preferência identificados. Propagandas ou mensagens agressivas serão sumariamente eliminadas. Outras questões podem ser encaminhadas através de meu site (www.pralmeida.org). Formule seus comentários em linguagem concisa, objetiva, em um Português aceitável para os padrões da língua coloquial.
A confirmação manual dos comentários é necessária, tendo em vista o grande número de junks e spams recebidos.
Caro Professor,
ResponderExcluirPela oportunidade e se possível, gostaria de lhe pedir que comentasse a respeito de uma questão pontual a respeito da carreira, que julgo ser uma preocupação de outros eventuais cadidatos da geração Y, nascidos neste mundo extremamente volátil e incerto.
Os candidatos deveriam conceber a carreira no Itamaraty como algo para toda a vida ? Se por qualquer motivo o diplomata saia do órgão, restariam oportunidades para uma carreira no mercado, brasileiro ou mundial ? Até que ponto o fato de ter entrado e trabalhado no Itamaraty poderia ser um alto diferencial no currículo para novas oportunidades ? Pergunto tudo isso tendo em mente apenas aquela coisa do ‘plano B’, nosso porto-seguro diante das adversidades.
Acabei me estendendo, por isso peço desculpas. Desde já, agradeço muito ao sempre solícito e estimado Professor.
Abraços,
Julio S.
Só uma pequena correção, o ablativo plural de "sensus" é "sensibus" e não "sensi" (que nem existe), portanto no trecho "lato et stricto sensi" dever-se-ia ler "lato e stricto sensibus".
ResponderExcluiro plural de lato sensu + stricto sensu" é "lato et stricto sensibus", já que "sensu" é o ablativo singular de "sensus" e o ablativo plural é "sensibus".
ResponderExcluir