Não tenho certeza de ter, em algum momento, divulgado as respostas que dei a um trabalho de pesquisa de aluns da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) para um Projeto transdisciplinar de pesquisa sobre a carreira diplomática e suas relações com a academia.
Se não o fiz, esta é a oportunidade para fazê-lo, no quadro deste meu esforço de revisão de velhos trabalhos e atualização de registros.
Academia e diplomacia: um questionário sobre a formação e a carreira
Paulo Roberto de Almeida
Questões colocadas em mensagem de 1.10.2007:
1) Qual é sua formação acadêmica?
2) Quais motivos o levaram a optar por seguir a carreira diplomática?
3) Dentro da carreira diplomática, que função específica o Sr. desempenha?
4) Caso tenha alguma formação em Relações Internacionais, qual eram as perspectivas do curso na época em que iniciou seus estudos?
5) Qual a importância de haver um profissional internacionalista atuando no mercado hoje?
6) Que dificuldades um diplomata pode enfrentar na sua carreira?
7) Como o Sr. vê o futuro relacionado ao curso de Relações Internacionais? A profissão tende a crescer dentro do mercado mundial?
8) Quais conhecimentos em Fundamentos das Relações Internacionais, História das Relações Internacionais e Análise Microeconômica sua profissão exige?
1. Qual é sua formação acadêmica?
PRA: Bacharel e licenciado em Ciências Sociais, pela Universidade de Bruxelas (1975), Mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia (1977) e Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas (1984); Curso de Altos Estudos, do Instituto Rio Branco do MRE (1997).
2. Quais motivos o levaram a optar por seguir a carreira diplomática?
PRA: Puramente circunstanciais: eu era professor universitário em SP, logo após ter retornado do mestrado em 1977, quando tomei conhecimento da realização de um concurso direto para a carreira diplomática, exigindo formação superior completo (o que à época não era requisito para o vestibular para o Curso de Formação à Carreira Diplomática do Instituto Rio Branco). Resolvi tentar o concurso, apenas como “teste”, e acabei passando em segundo lugar. Assim, tornei-me diplomata quase por acaso, do contrário estaria ainda hoje na carreira acadêmica.
3. Dentro da carreira diplomática, que função específica o Sr. desempenha?
PRA: Sou ministro de segunda classe, imediatamente anterior à classe de ministro de primeira classe (ou embaixador, que é apenas um título); já fui ministro conselheiro na Embaixada em Washington (meu último posto) e chefe de seções econômicas em diversas embaixadas (Paris, Berna, Belgrado), além de ter servido nas delegações do Brasil junto aos organismo da ONU, em Genebra, e junto à Aladi, em Montevidéu.
4. Caso tenha alguma formação em Relações Internacionais, qual eram as perspectivas do curso na época em que iniciou seus estudos?
PRA: Não tenho nenhuma formação específica em RI e em minha época não havia nenhum curso de graduação funcionando em RI no Brasil (aliás, nem no exterior). O primeiro teve início na UnB, em 1974, com uma orientação talvez muito teórica. Aprendi RI na prática, e estudando por conta própria.
5. Qual a importância de haver um profissional internacionalista atuando no mercado hoje?
PRA: Minha visão pessoal é a de que existe um certo exagero quanto à possível absorção pelo mercado dessas centenas ou talvez milhares de estudantes que estão se formando cada ano nos muitos cursos que se constituíram desde meados dos anos 1990, ou seja, nos últimos dez anos, grosso modo. O mercado é relativamente restrito na parte governamental (diplomacia, analistas de comércio exterior ou de inteligência), na de organizações internacionais e no que se refere à própria academia (que absorveu certo número de egressos na medida em que os próprios cursos estava se expandindo, mas esse ritmo tende a diminuir), podendo, e de fato devendo, ser maior na vertente empresarial privada. Mas não tenho certeza de que os internacionalistas possam atender a todos os requisitos das empresas.
6. Que dificuldades um diplomata pode enfrentar na sua carreira?
PRA: Em diplomacia, existem vários momentos delicados quando se está negociando em nome do País. Uma situação complicada pode se apresentar numa destas duas hipóteses: ou não se dispõe de instruções suficientes para sustentar os interesses nacionais, ou as instruções dadas são inadequadas, na situação concreta da barganha negociadora. Nesse caso, o diplomata precisa agir segundo a sua melhor percepção de quais seriam os interesses nacionais, com base num estudo acurado da situação concreta e dos interesses em jogo.
Normalmente, o negociador que está na “frente de combate”, em oposição ao “burocrata” da capital, pode acabar tendo uma visão ampla dos processos em jogo e dos diferentes aspectos do interesse nacional, segundo uma percepção de mais longo prazo. Sua visão daquele problema – eventualmente fundamentada num estudo detido da questão e colocada em perspectiva comparada com as experiências e posições de outros atores – pode eventualmente se contrapor às instruções recebidas da capital, que podem estar baseadas numa visão meramente teórica ou burocrática do processo em causa.
Nesse momento, o diplomata em causa pode ficar numa situação muito difícil, pois que dominando o tema, e conhecendo o jogo de interesses dos diversos atores participantes (países ou grupos de paises), ele pode ter um melhor julgamento de qual seria a direção mais indicada a ser seguida, do ponto de vista do interesse nacional. Mas, aqui se coloca o dilema: as instruções recebidas vão num sentido contrário ou bastante diferente daquilo que o diplomata encarregado do tema na frente negociadora percebe como sendo a melhor postura a ser adotada. Ele quer acreditar ou sabe concretamente que uma posição diferente seria melhor indicada para defender o interesse nacional (este é um conceito e uma situação sempre difusos e muito difíceis de serem definidos na prática). Em todo caso, existe aqui um problema real de consciência e de postura, já que o diplomata não poderia, teórica e praticamente, opor-se às instruções recebidas da capital, mas sabe, concretamente, que nem sempre a burocracia institucional funciona da melhor forma possível, pois que ninguém é onisciente.
Existem, obviamente, várias outras dificuldades, de ordem logística, ou material, vinculadas, por exemplo, às dificuldades materiais, ou de qualquer outra ordem, em determinados postos da carreira que podem ser considerados “difíceis”, mas isto não é exclusivo dos diplomatas, afetando todos os demais funcionários do serviço exterior, os adidos militares ou mesmo enviados de empresas privadas. Eu me referi acima a dificuldades que acredito sejam específicas do diplomata, no desempenho de suas funções exclusivas.
7. Como o Sr. vê o futuro relacionado ao curso de Relações Internacionais? A profissão tende a crescer dentro do mercado mundial?
PRA: Certamente, mas não podemos nos iludir quanto a uma expansão exagerada. A maior parte dos países não possui cursos de graduação em RI, apenas cursos tradicionais em Ciência Política ou afins, sendo RI mais uma especialização do que uma graduação.
Os cursos de RI podem ser uma boa contribuição para a formação de especialistas em questões internacionais no Brasil, país relativamente fechado à economia mundial. Na verdade, a maior parte dos cursos de RI no Brasil foram e são oferecidos por instituições privadas, que visam preencher um nicho de mercado que não estava sendo suficientemente atendido pelas faculdades públicas. Ou seja, o que as motivou foram preocupações essencialmente mercantis, o que não impede que possam surgir bons cursos nessa área, mas talvez seja muito cedo par se fazer uma avaliação comparativa das dezenas de cursos existentes nesse área.
Não tenho uma visão clara sobre a evolução dos cursos de RI. Seria preciso conduzir uma pesquisa junto às instituições que já formaram diversas turmas, para verificar em que estão trabalhando seus egressos, de maneira a poder balizar algumas tendências quanto à evolução futura desses cursos. Minha percepção é a de que pode estar ocorrendo um fenômeno de saturação de mercado, e talvez ocorra algum pequeno refluxo na oferta de novos cursos ou de vagas, após o que deverá ocorrer algumas especializações “regionais” ou setoriais, em função das demandas locais, com ênfase mais empresarial em alguns grandes centros de negócios e dedicação mais acadêmica, ou “política”, em outros centros. Sem uma pesquisa junto aos próprios egressos, que poderia ser conduzida por entidades como a FENERI ou ABRI, fica difícil opinar sobre tendências futuras.
No plano estrito da formação, creio que nosso estágio, isto é, o dos cursos de RI no Brasil, ainda é relativamente inicial e recente, o que pode ser indiretamente comprovado pela parca bibliografia disponível. Ela ainda é bastante restrita em termos quantitativos e qualitativos, faltando aquilo que na linguagem acadêmica americana, se chama de text-books, ou seja, manuais sistemáticos para o estudo das diferentes disciplinas integrando as RI. Ainda que alguns centros de estudo pretendam que existe uma “escola de RI” de tal ou qual local, não creio que esse tipo de afirmação se sustente em vista da elaboração reflexiva e metodológica ainda relativamente incipiente nessa área. Teremos de acumular muitas monografias e estudos sistemáticos, ademais de muita pesquisa histórica e estudos de terreno – isto é, empiricamente embasados – para poder pretender rivalizar com os grandes centros de produção existentes no hemisfério norte.
Creio que as instituições acadêmicas, em coordenação com a CAPES, e auxiliadas pelas associações profissionais da área, deveriam fazer avaliações amplas sobre o funcionamento dos cursos e seus padrões curriculares. Algum núcleo básico, relativamente homogêneo, deve existir, mas a partir daí as instituições devem poder estabelecer especializações diversas em seus cursos, de modo a suprir demandas específicos dos diferentes nichos de mercado que podem variar de uma região a outra do país. Ou seja, o ideal é se dispor de um núcleo comum e um leque de opções diversas, nas diferentes vertentes disciplinares e setoriais que compõem as RI, de forma a assegurar flexibilidade e capacidade adaptativa às diferentes necessidades locais.
Quanto ao mercado, especificamente, ele sempre será muito diverso, em função das variadas possibilidades existentes. As oportunidades serão certamente crescentes, mas isso exigirá uma excelente formação por parte dos cursos de RI, do contrário o setor privado, que é o que mais emprega, tenderá a escolher profissionais vindos das vertentes mais tradicionais de estudo: economia, direito, administração etc.
8. Quais conhecimentos em Fundamentos das Relações Internacionais, História das Relações Internacionais e Análise Microeconômica sua profissão exige?
PRA: A rigor, a profissão não exige nenhuma fundamentação teórica específica, tanto que não se requer nenhuma área determinada ou circunscrita de estudos, bastando qualquer diploma de nível superior (mesmo, portanto, de áreas fortemente técnicas), mas os exames de entrada no IRBr são fortemente baseados no conhecimento da história em geral, da história do Brasil em particular, das relações internacionais de modo amplo (aqui, bem mais história do que teorias, obviamente) e alguma economia, tanto macro, quanto micro, mas sem aprofundamentos desnecessários.
No curso da carreira, seremos chamados a fazer novos exames de qualificação para a ascensão funcional – Curso de Aperfeiçoamento, quando se é Segundo Secretário, e Curso de Altos Estudos, para os Conselheiros – e há, digamos, uma necessidade empírica de aperfeiçoamento constante em algumas áreas, com vistas ao bom desempenho técnico em funções que exijam algum conhecimento especializado (em comércio internacional ou solução de controvérsias, por exemplo, ou em direito humanitário ou temas ambientais, em outras linhas). Tudo isso pode ser adquirido com a própria experiência profissional, complementado por leituras e informação adquiridas em bases individuais.
Respostas dadas por Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 1 de outubro de 2007.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comentários são sempre bem-vindos, desde que se refiram ao objeto mesmo da postagem, de preferência identificados. Propagandas ou mensagens agressivas serão sumariamente eliminadas. Outras questões podem ser encaminhadas através de meu site (www.pralmeida.org). Formule seus comentários em linguagem concisa, objetiva, em um Português aceitável para os padrões da língua coloquial.
A confirmação manual dos comentários é necessária, tendo em vista o grande número de junks e spams recebidos.