Paulo Roberto de Almeida
... E nunca teve a quem perguntar. Agora já tem: é o novo "Lamounier", cobrindo desta vez (quase) dois séculos de história política. Mas atenção: o livro não é para principiantes, nem do lado teórico, nem do lado prático, isto é, dos que são chamados a nos representar no parlamento e no executivo. Estes, como evidenciado nos casos de "fundos não contabilizados", acabam construindo um universo à parte dos que pagam impostos, que vêem os recursos auferidos serem dilapidados pelos poucos que, segundo a descrição apta de Milton Friedman, "são pagos para gastar o dinheiro dos outros".
Não se trata de uma simples "introdução" à história política brasileira, uma vez que o livro exige dos leitores um conhecimento mínimo dessa história e, ao mesmo tempo uma certa familiaridade com conceitos centrais da ciência política. Tampouco se trata de um "manual" para a reforma política e eleitoral à intenção dos que nos governam, pois eles dificilmente se deixariam guiar por critérios de racionalidade estrita do sistema partidário e representativo, preferindo cuidar dos seus interesses, acima de quaisquer considerações éticas. Como diz o autor na introdução: "O crafting institucional da democracia brasileira ostenta resultados contraditórios: organizamos bem a esfera eleitoral e criamos uma ética para o voto, mas não organizamos nem criamos uma ética para a esfera dos partidos e do parlamento". Difícil, assim, que os governantes sigam as recomendações da terceira parte, relativa, justamente, à reforma política, para introduzir um sistema de governo, uma organização partidária e um sistema eleitoral que correspondam às necessidades da nação, contra seus próprios interesses, enquanto classe organizada para o assalto (é o caso de se dizer) e a manutenção do poder.
As duas primeiras partes, em todo caso, constituem a mais completa análise de que se tem notícia na literatura sobre a evolução da política brasileira, não apenas pelo lado dos "episódios" políticos, mas também pelo lado da teorização sobre os regimes políticos, os sistemas partidários, as relações civil-militares e as "lições" de cada período. Um quadro analítico resume a evolução do sistema político de 1822 a 2005: cada um dos regimes - Império, Primeira República, Revolução de 1930, Estado Novo, República de 1946 e o regime militar - terminou em grave conflito político, geralmente sob a forma de golpes militares, com o apoio das classes médias. O regime militar, na verdade, se esvaiu numa "prolongada peleja política e eleitoral", ao cabo da qual as oposições coligadas viabilizaram o retorno ao governo civil. O novo regime democrático, obviamente, ainda não acabou, mas se supõe que seu destino seja menos dramático do que a meia dúzia de sistemas político-partidários que o precederam.
Lamounier examina a historiografia convencional - propondo sua revisão - e a literatura de cada época. Duas formas de reducionismo político são identificadas no protofascismo ("mescla de positivismo, nacionalismo e endeusamento do Estado") e no marxismo ("sobretudo na versão stalinista da Terceira Internacional"), intrinsecamente antiliberais e antiparlamentares, ambos avessos à consideração do sistema político enquanto esfera autônoma. A análise se estende ainda à construção e funcionamento dos sistemas partidários e representativos, sendo evidentes o crescimento paulatino do corpo eleitoral, a ampliação do sufrágio e a fragmentação gradual do sistema partidário.
Um texto de Hegel sobre a Inglaterra de 1830 é ironicamente recrutado para explicar o que é um "curral eleitoral", prática aliás bem viva no Brasil moderno, a julgar pela formação de um exército contemporâneo de assistidos por "mensalinhos" oficiais. A despeito disso, a competição aumentou, mas nem sempre foi assim: Rodrigues Alves (1918) e Washington Luís (1926), por exemplo, conquistaram a suprema magistratura com maiorias "albanesas" superiores a 98% dos votos válidos, ainda que com cerca de 2% de votantes sobre a população total (hoje a proporção de eleitores é superior a 60%). "Lula lá", em 2002, foi "a batalha que não houve": a manutenção do sistema político de maiorias frágeis mostra a amplitude das reformas políticas que precisam ser feitas para tornar o Brasil mais conforme à estabilidade já conquistada no terreno econômico. A julgar pelo "presidencialismo de mensalão", ainda estamos longe do ideal...
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Como sempre, posto também o meu texto original:
Tudo
o que você sempre quis saber sobre a política brasileira...
Bolivar Lamounier:
Da Independência a Lula: dois séculos de
política brasileira
São Paulo: Augurium Editora, 2005, 320 p.;
R$ 49,00
...e nunca teve a quem
perguntar. Agora já tem: é o novo “Lamounier”, cobrindo desta vez (quase) dois
séculos de história política. Mas atenção: o livro não é para principiantes,
nem do lado teórico, nem do lado prático, isto é, dos que são chamados a nos
representar no parlamento e no executivo. Estes, como evidenciado nos casos de
“fundos não contabilizados”, acabam construindo um universo à parte dos que
pagam impostos, que vêem os recursos auferidos serem dilapidados pelos poucos
que, segundo a descrição apta de Milton Friedman, “são pagos para gastar o dinheiro
dos outros”.
Não se trata de uma simples
“introdução” à história política brasileira, uma vez que o livro exige dos
leitores um conhecimento mínimo dessa história, ao mesmo tempo em que certa
familiaridade com conceitos centrais da ciência política. Tampouco se trata de
um “manual” para a reforma política e eleitoral à intenção dos que nos
governam, pois eles dificilmente se deixariam guiar por critérios de
racionalidade estrita do sistema partidário e representativo, preferindo cuidar
dos seus interesses, acima de quaisquer considerações éticas. Como diz o autor
na introdução: “O crafting
institucional da democracia brasileira ostenta resultados contraditórios:
organizamos bem a esfera eleitoral e criamos uma ética para o voto, mas não
organizamos nem criamos uma ética para a esfera dos partidos e do parlamento”.
Difícil, assim, que os governantes sigam as recomendações da terceira parte,
relativa, justamente, à reforma política, para introduzir um sistema de
governo, uma organização partidária e um sistema eleitoral que correspondam às
necessidades da nação, contra seus próprios interesses, enquanto classe
organizada para o assalto (é o caso de se dizer) e a manutenção do poder.
As duas primeiras partes, em
todo caso, constituem a mais completa análise de que se tem notícia na
literatura sobre a evolução da política brasileira, não apenas pelo lado dos
“episódios” políticos, mas também pelo lado da teorização sobre os regimes
políticos, os sistemas partidários, as relações civil-militares e as “lições”
de cada período. Um quadro analítico resume a evolução do sistema político de
1822 a 2005: cada um dos regimes – Império, Primeira República, Revolução de
1930, Estado Novo, República de 1946 e o regime militar – terminou em grave
conflito político, geralmente sob a forma de golpes militares, com o apoio das
classes médias. O regime militar, na verdade, se esvaiu numa “prolongada peleja
política e eleitoral”, ao cabo da qual as oposições coligadas viabilizaram o
retorno ao governo civil. O novo regime democrático, obviamente, ainda não
acabou, mas se supõe que seu destino seja menos dramático do que a meia dúzia
de sistemas político-partidários que o precederam.
Lamounier examina a
historiografia convencional – propondo sua revisão – e a literatura de cada
época. Duas formas de reducionismo político são identificadas no protofascismo
(“mescla de positivismo, nacionalismo e endeusamento do Estado”) e no marxismo
(“sobretudo na versão stalinista da Terceira Internacional”), intrinsecamente
antiliberais e antiparlamentares, ambos avessos à consideração do sistema
político enquanto esfera autônoma. A análise se estende ainda à construção e
funcionamento dos sistemas partidários e representativos, sendo evidentes o
crescimento paulatino do corpo eleitoral, a ampliação do sufrágio e a
fragmentação gradual do sistema partidário.
Um texto de Hegel sobre a Inglaterra de 1830 é
ironicamente recrutado para explicar o que é um “curral eleitoral”, prática
aliás bem viva no Brasil moderno, a julgar pela formação de um exército
contemporâneo de assistidos por “mensalinhos” oficiais. A despeito disso, a
competição aumentou, mas nem sempre foi assim: Rodrigues Alves (1918) e
Washington Luís (1926), por exemplo, conquistaram a suprema magistratura com
maiorias “albanesas” superiores a 98% dos votos válidos, ainda que com cerca de
2% de votantes sobre a população total (hoje a proporção de eleitores é
superior a 60%). “Lula lá”, em 2002, foi “a batalha que não houve”: a
manutenção do sistema político de maiorias frágeis mostra a amplitude das
reformas políticas que precisam ser feitas para tornar o Brasil mais conforme à
estabilidade já conquistada no terreno econômico. A julgar pelo
“presidencialismo de mensalão”, ainda estamos longe do ideal...
Paulo
Roberto de Almeida
[Brasília,
14 outubro 2005]
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