Na imediata sequência da reunião de cúpula de Mar del Plata, o presidente Lula deu uma entrevista, na qual confirmava sua postura em relação ao projeto, que ele ajudou a implodir. Li a entrevista e, reservadamente, registrei minha opinião sobre os argumentos do então presidente.
Nunca antes (com mil desculpas pelo bordão) havia revelado estas notas, que contestavam diretamente o presidente, em teoria meu chefe (mas não meu patrão, jamais meu mentor, nunca um guia).
Vão aqui reveladas pela primeira vez. (Devo ter um bocado de inéditos por aí, a menos que CIA já tenha tomado conhecimento.)
Transcrevo primeiro a matéria de referência, e depois meus comentários sobre os "argumentos" da implosão.
Paulo Roberto de Almeida
Lula afirma que tema Alca é inoportuno no momento
Denise Chrispim Marin
Agencia Estado, 5 Novembro 2005
Mar del Plata - O presidente Lula cravou claramente a posição do seu governo em relação à Área de Livre Comércio das Américas (Alca) ao afirmar que a discussão desse projeto de integração "não é oportuna" neste momento e poderá "atrapalhar" o andamento de negociações mais relevantes para o Brasil - as da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC). Lula defendeu que os países sul-americanos devem negociar acordos de livre comércio com nações mais desenvolvidas (leia-se, os Estados Unidos) somente depois de fortalecerem e estabilizarem suas economias.
Conforme argumentou, as economias sul-americanas "estão crescendo", os "empregos estão aparecendo", sem as mesmas as ilusões da década de 70, quando ocorria a "entrada fácil de dinheiro de fora", e dos anos 80, quando houve o "desmonte dos Estados nacionais e as privatizações". Para Lula, atualmente há consciência na região de que o crescimento econômico depende "da capacidade de desenvolvimento, da inteligência dos governantes e do povo, da política industrial, da política exterior".
"Temos a chance de quebrar os subsídios (agrícolas), de fazer com que os países (desenvolvidos) se envolvam de forma muito forte em encontrar uma solução para o comércio, sobretudo para ajudar os países pequenos. Tentar colocar a Alca nesse meio-termo é atrapalhar a OMC, que nós achamos que é um fórum mais adequado", afirmou Lula. "Na hora que a gente estiver forte, economicamente estável, vamos poder sentar com os países mais desenvolvidos e fazer acordos que sejam saudáveis para todo mundo."
Lula chegou a defender que as discussões sobre o comércio sejam baseadas em considerações práticas, e não "ideológicas". Insistiu ainda que, nos acordos que o Mercosul firmou e negocia com outras economias em desenvolvimento, as assimetrias e sensibilidades dos "menos avançados" são sempre levadas em conta. O mesmo princípio, em seu ponto de vista, deveria reger as negociações hemisféricas.
Lula ainda insistiu que os três temas das discussões em Mar del Plata eram "emprego, emprego e emprego" e que a Alca poderia ser apenas discutida como assunto de menor importância. "Nós achamos que essa discussão de livre comércio tem de ser feita na OMC. Qualquer coisa que nós fizermos antes da OMC (da conferência de Hong Kong), nós estaremos atropelando os fatos e criando, quem sabe, um empecilho para a própria reunião da OMC", argumentou.
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A Alca Inoportuna
Paulo Roberto de Almeida
(Reservado; não citar)
Aproveito matéria despachada pela
jornalista Denise
Chrispim Marin, ao término da IV Cúpula das Américas (Mar del Plata, 4 e 5 de
novembro de 2005), publicada na página eletrônica do jornal O Estado de São Paulo nessa mesma data
(ver link: http://www.estadao.com.br/nacional/noticias/2005/nov/05/40.htm),
para formular alguns comentários às questões suscitadas nessa matéria (cujo
teor vai reproduzido na íntegra,
para controle e referência direta).
1) Oportunidade da Alca:
Matéria: “O presidente Lula cravou
claramente a posição do seu governo em relação à Área de Livre Comércio das
Américas (Alca) ao afirmar que a discussão desse projeto de integração
"não é oportuna" neste momento e poderá "atrapalhar" o
andamento de negociações mais relevantes para o Brasil - as da Rodada Doha da
Organização Mundial do Comércio (OMC).”
PRA: Negociações comerciais para fins
de liberalização de acesso a mercados, de redução de entraves indevidos e de
regulação competitiva das normas que presidem a esses intercâmbios são sempre
oportunas, não dependendo de um timing
preciso, uma vez que a possibilidade antecipada de serem barganhadas condições
de acesso recíproco a novos mercados sempre contribuirá para o aumento dos
fluxos de bens e serviços entre as economias, como ensina a experiência
histórica. As empresas sabem disso e procuram estimular essas negociações,
quaisquer que sejam os foros negociadores.
Obviamente, existem questões ditas sistêmicas ou “estruturais”, que
não podem ser reguladas em âmbito geograficamente restrito, isto é, em escala
unicamente regional, dependendo justamente de um foro multilateral como o da OMC,
para encontrar um terreno comum de entendimento. É o caso, por exemplo, dos
subsídios agrícolas (medidas de apoio interno ou subvenções às exportações),
como também proteção à propriedade intelectual ou medidas de defesa comercial
(antidumping ou salvaguardas). Mas nada impede que questões como tarifas e
acesso a mercados de forma geral sejam discutidas nesses foros restritos,
simultaneamente, paralelamente, sucessivamente ou até antecipadamente a essas
negociações multilaterais.
Zonas de livre comércio em geral, como é o caso da Alca, não são
condicionadas a uma harmonização plena das condições de concorrência, podendo
ser implementadas em seus aspectos estritamente comerciais previamente a
qualquer norma reguladora das referidas condições. No que se refere a Alca em
particular, sua concepção e oferecimento em escala hemisférica precederam
inclusive à entrada em vigor dos acordos da Rodada Uruguai, os estudos
preliminares foram conduzidos na fase inaugural da OMC (segunda metade dos anos
1990), e o lançamento efetivo das negociações ocorreu (1999) antes mesmo da
terceira reunião ministerial da OMC (Seattle, novembro de 1999) e bem antes do
lançamento da atual Rodada de Doha (quarta reunião ministerial, novembro de
2001).
Nunca se disse que essas negociações da Alca estivessem atrapalhando
quaisquer outras negociações regionais (Mercosul-CAN, Mercosul-UE) ou
multilaterais, mesmo se determinadas questões – como as referidas acima –
requeressem encaminhamento uniforme num foro mais amplo, como o da Rodada Doha,
para seu equacionamento nas melhores condições possíveis. A Alca deveria ser
considerada não apenas oportuna, mas complementar às negociações da OMC, uma
vez que poderia resultar em acesso mais amplo aos mercados hemisféricos
recíprocos, do que o eventualmente resultante de um processo mais amplo e,
portanto, mais difícil, como o da Rodada Doha. Ela só poderia “atrapalhar” as
negociações da OMC se os acertos hemisféricos fossem feitos em oposição e em
detrimento das regras multilaterais, o que não parece ser o caso e nem seria
possível ou aceitável para a maior parte dos participantes.
2) Condições prévias para a negociação de acordos
comerciais
Matéria: “Lula defendeu que os países
sul-americanos devem negociar acordos de livre comércio com nações mais
desenvolvidas (leia-se, os Estados Unidos) somente depois de fortalecerem e
estabilizarem suas economias.”
PRA: Fortalecimento e estabilização
são dois conceitos relativos, que implicam uma avaliação subjetiva das
dinâmicas econômicas nacionais, uma vez que qualquer economia pode estar se
fortalecendo ou se estabilizando o tempo todo, ou ao contrário, criando
rigidezes e pontos de debilidade que tornariam sempre adiáveis quaisquer
compromissos a serem negociados no plano internacional.
Acordos de livre comércio, em geral,
podem envolver economias muito diversificadas, em diferentes estágios de
desenvolvimento e dotadas de graus diversos de estabilização macroeconômica. Os
países mais “frágeis” da Europa, por exemplo, como são Portugal e Espanha, não
estavam em situação brilhante ao ingressarem na então CEE em 1986, como
provavelmente a Irlanda, em 1972. Sua eventual condição “frágil” não foi um
impedimento absoluto à negociação e implementação da adesão.
Se as nações hemisféricas devem
fortalecer suas economias antes de negociar com os EUA, esse processo vai
provavelmente requerer algumas dezenas de anos antes de ser complementado, o
que poderia remeter a Alca para algum momento depois de 2050 ou
mesmo mais além. Por outro lado, os EUA também precisam fortalecer sua
economia, hoje enfrentando enormes déficits comerciais e orçamentários, que
alcançam proporções inéditas do PIB desse país.
3) Assimetrias e
ideologia
Matéria: “Lula chegou a defender que as
discussões sobre o comércio sejam baseadas em considerações práticas, e não
"ideológicas". Insistiu ainda que, nos acordos que o Mercosul firmou
e negocia com outras economias em desenvolvimento, as assimetrias e
sensibilidades dos "menos avançados" são sempre levadas em conta. O
mesmo princípio, em seu ponto de vista, deveria reger as negociações
hemisféricas.”
PRA: Exatamente. A ideologia é o
principal obstáculo a negociações comerciais serenas e focadas exclusivamente
nos interesses comerciais dos países participantes. A noção de assimetrias
impeditivas de comércio, por exemplo, é uma das principais ideologias que
obstaculizam negociações de liberalização comercial. Todo e qualquer comércio,
em qualquer época histórica e lugar, é sempre baseado em algum tipo de
“assimetria”, do contrário ele simplesmente não existiria. Essas “assimetrias”
confrontam diferentes dotações naturais de fatores produtivos, alocações
diferenciadas de capitais, recursos desiguais de marketing, tamanhos e
características diferentes e desiguais dos mercados consumidores, costumes e
hábitos nacionais que precisam ser adaptados pelos ofertantes em mercados
estrangeiros, enfim, um conjunto variado de condições naturais, estruturais e
adquiridas que sempre integram aquilo que os economistas chamam de requisitos
“ricardianos”, ou vantagens comparativas relativas (não absolutas, portanto).
Pretender eliminar “assimetrias” entre economias diferentes seria
retirar algumas das vantagens existentes para o deslocamento de fatores
produtivos – investimentos externos diretos procurando locais de produção com
abundância de matérias primas ou mão-de-obra barata, por exemplo –, o que
impediria, ipso facto, a exploração
das vantagens comparativas pelos empresários. Como argumentado acima, a
eliminação das “assimetrias” entre os EUA – uma economia de quase 13 trilhões
de dólares – e as demais economias hemisféricas exigiria um período histórico
superior, provavelmente, a duas gerações, para não dizer mais. Os negociadores
da Alca estariam presumivelmente aposentados ou mortos quando da conclusão das
negociações.
4) Empregos,
livre-comércio e Alca na OMC
Matéria: “Lula ainda insistiu que os três
temas das discussões em Mar del Plata eram "emprego, emprego e
emprego" e que a Alca poderia ser apenas discutida como assunto de menor
importância. "Nós achamos que essa discussão de livre comércio tem de ser
feita na OMC. Qualquer coisa que nós fizermos antes da OMC (da conferência de
Hong Kong), nós estaremos atropelando os fatos e criando, quem sabe, um
empecilho para a própria reunião da OMC", argumentou.”
PRA: Emprego, junto com educação e
outros temas sociais, faz parte da agenda das cúpulas hemisféricas, mas as
negociações comerciais são um de seus temas mais importantes. Não se compreende
bem, em contrapartida, o que a OMC teria a ver com a Alca, uma vez que acordos
regionais podem ser feitos paralelamente às negociações multilaterais, desde
que respeitem os princípios básicos do sistema multilateral de comércio. Os
esquemas sub-regionais têm contribuído, paradoxalmente, para o avanço das
negociações multilaterais, uma vez que antecipam concessões que depois serão
ampliadas ao conjunto dos parceiros do sistema multilateral.
A criação e destruição de empregos
podem se dar de diversas maneiras, tanto por razões externas, como por fatores
internos. Geralmente, a criação de empregos é facilitada por um ambiente
macroeconômico favorável aos investimentos e à inovação, com estabilidade de
regras, uma microeconomia competitiva, boa qualidade da mão-de-obra e abertura
ao comércio exterior e aos investimentos externos. Empregos também podem ser
destruídos pela inversão relativa de qualquer dos fatores acima apontados e
também pela competição agressiva de parceiros externos mais modernos e de alto
desempenho.
A opção pelo protecionismo é geralmente a pior receita para a
preservação dos empregos existentes, razão pela qual a realização de uma Alca
(de qualquer tipo) pode representar uma ameaça setorial a determinados
empregos, mas também deve criar oportunidades novas de agregação de valor em
diversas linhas produtivas (as de maior vantagem relativa, precisamente, entre
as quais se situam as indústrias labour-intensive
que podem usar desse fator relativamente abundante e, portanto mais barato na
América Latina (comparativamente ao fator escasso, que seria o capital). Desse
ponto de vista, não teríamos o que temer da Alca (e inversamente é isso que
temem os sindicatos dos EUA).
De modo geral, a experiência histórica ensina que a liberalização
comercial cria mais e melhores empregos do que os destrói, em todos os casos
examinados até aqui, e que os empregos assim criados, justamente por estarem
vinculados ao comércio exterior, possuem uma maior agregação de valor do que
aqueles ligados ao mercado interno. Uma boa recomendação para uma reunião
multilateral como a cúpula das Américas seria, portanto, a de que o
livre-comércio contribuiria favoravelmente para a criação de mais empregos na
região, mais bem remunerados, em todo caso, do que aqueles existentes
tradicionalmente.
Uma última observação caberia, nesse sentido, a todos os protestos
deslanchados pela realização da IV Cúpula, em Mar del Plata: a consecução dos
objetivos pleiteados pelos manifestantes seria, simplesmente, a não-Alca, ou
seja, tudo isso que já está aí. Desse ponto de vista, os manifestantes são essencialmente
conservadores, amantes do status quo
ou mesmo reacionários, pois se opõem a que novos desafios venham obrigar os
países da região a continuar na via das reformas e da melhoria dos padrões de
vida.
Paulo
Roberto de Almeida
Brasília,
5 de novembro de 2005
Paulo, perdoe-me por invadir o seu espaço e importuná-lo com uma pergunta simplória, mas a certa altura você menciona que "os países mais “frágeis” da Europa, por exemplo, como são Portugal e Espanha, não estavam em situação brilhante ao ingressarem na então CEE em 1986, como provavelmente a Irlanda, em 1972. Sua eventual condição “frágil” não foi um impedimento absoluto à negociação e implementação da adesão."
ResponderExcluirSua condição de fragilidade não foi um impedimento à adesão e hoje é encarada como a causa de seu fracasso econômico, dada a disparidade das economias. Este não seria um argumento contrário à sua tese central (de que acordos de livre-comércio e integração são sempre positivos)?
Fernando Leme,
ResponderExcluirSe um país é pobre, fraco, salários reduzidos, ele vai apresentar vantagens para os investidores externos, que poderão ali produzir a custos mais baixos do que em seu país de origem.
O país tem de fazer algumas reformas e obras de infraestrutura para aproveitar esses investimentos, mas a generosa UE sempre distribuiu recursos para os mais debeis economicamente.
Não vejo onde possa estar o problema, mesmo sem ajuda governamental.
A integração funciona até melhor com grandes disparidades, do que com economias semelhantes...
Paulo Roberto de Almeida