É proibido interpretar a Constituição
Joaquim Falcão
Professor de direito da Fundação Getulio Vargas (FGV)
Correio Braziliense, 10/02/2013
Recentemente, o governo da Venezuela, atrás da Comissão Nacional de Telecomunicação (Conatel), proibiu a rede de televisão Globovisión de veicular notícias sobre a interpretação do art. 231 da Constituição bolivariana. Dependendo da interpretação dada a esse artigo, Chávez teria que, pessoalmente, comparecer à Venezuela para assumir o novo mandato.
A Globovisión era contrária à posição do governo, que dispensava a presença de Chávez e acabou prevalecendo na prática. Difundiu então vídeos com entrevistas de representantes do chavismo, que defendiam o adiamento da posse e confrontava essa posição com os artigos da Constituição. A Globovisión mostrava que o adiamento era impossível. E que se deveria caminhar para novas eleições. Exibia Chávez dizendo “dentro da Constituição, tudo. Fora dela, nada”, expondo a contradição entre a interpretação do governo e o texto da Constituição.
O governo entendeu que esses vídeos incitavam o ódio, a intolerância e alterações da ordem pública. Proibiu-os. Censurou-os. Proibiu de se interpretar a Constituição.
Dificilmente se viu, de um país que se propõe a ser democrático e à obedecer a Constituição, uma censura tão explícita, direta e específica ao acesso dos cidadãos ao conhecimento jurídico. Tentativa de fazer com que a opinião pública aceite, como única, a interpretação constitucional oficial: Chávez não precisaria estar presente para assumir o novo mandato. Tentativa de evitar o contraditório da interpretação constitucional no julgamento da opinião pública.
Esse ato de força revela mais fraqueza do que força. Revela que o debate sobre interpretação constitucional não é de interesse restrito de profissionais jurídicos, magistrados, políticos ou da elite econômica de um país. Tem imensas consequências para a legitimidade do poder. Revela também a força mobilizatória que a convicção no desrespeito à Constituição pode produzir. Interpretação constitucional é mobilizatória das consciências, na política, nas ruas, nos votos futuros.
O fato é que toda Constituição é autolimitação que o país se impõe, e a seus governos. Os partidários de Chávez teriam também que respeitar essa autolimitação. Do contrário, crescerá a desconfiança do eleitor. Daí porque o próprio presidente diz: “Dentro da Constituição, tudo; fora, nada”. Constituição incapaz de impor limites aos governantes é Constituição menor, ou como se diz, Constituição apenas semântica.
Constituição nenhuma é texto tranquilo. Ao contrário. Quase sempre é intranquilo. Mas quando se chega ao ponto de se proibir o debate livre, o contraditório constitucional, é intranquilo demais. Significa que a relação entre política e Constituição está com febre. Tensões. Organismo contra organismo. Inflamações. Células contra células. O regime político vai mal.
A comparação com o Brasil é inevitável. Durante mais de quatro meses, no mensalão, o Brasil constatou pela televisão, jornal, rádio e mídias sociais nossa Constituição transformada em intranquila arena de interpretações, na qual discutiam ministros entre si, advogados e procuradores, defesa e acusação, blogs, editoriais, associações. Esse debate é o caminho da cura. Indispensável na democracia. A censura, não.
Mesmo em direções opostas, o decreto venezuelano e a TV Justiça no Brasil demonstram que a interpretação nunca se limita aos autos e ao plenário do Supremo. Inclui a opinião pública. Seja para estimular sua presença, como no Brasil, seja para forçar sua ausência, como na Venezuela.
Nesse caso, controlar a mídia é evitar o contraditório, retirar o direito de defesa constitucional de pelo menos parte da opinião pública que não detém o poder da força. Mas detém o poder da influência. A influência que, em seu conjunto, faz o voto. Voto que em sua maioria faz a liberdade. Liberdade que, assegurada, faz a democracia.
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