Segue um trabalho efetuado em 2011. Ele justamente não foi feito para ser divulgado, mas
como subsídio a uma biografia que está sendo feito fora do Brasil de um
estrangeiro que conheceu o Brasil, como jornalista, e aqui esteve durante a
ditadura militar, com uma postura simpática aos militantes da esquerda armada.
Não é o caso, aqui e agora, de revelar quem
seja, inclusive por que isso não tem nenhuma importância para a história do Brasil; e como
foi feito sob a forma de um depoimento pessoal sobre essa pessoa, a quem
conheci muito pouco, na verdade, eu me permito suprimir as passagens pessoais,
justamente, porque esses aspectos não interessam à história objetiva.
Deixo apenas meu registro do processo
histórico, que é a primeira parte do depoimento...
Paulo Roberto de
Almeida
A esquerda brasileira nos
primeiros dez anos do regime militar:
um depoimento pessoal
Paulo Roberto de Almeida
Depoimento oferecido como contribuição a uma biografia
estrangeira.
Precedentes
O Brasil do início dos
anos 1960 enfrentava uma típica crise de instabilidade do sistema político, não
muito diferente de dezenas de outras, que surgem, se desenvolvem e desaparecem
em quaisquer outros sistemas políticos, especialmente na América Latina. Desde
meados dos anos 1950, a classe política, extremamente dividida quanto a
soluções consensuais típicas de países em crescimento – inflação, gastos do
governo, tributação, reformas estruturais e administrativas, etc. – não
conseguia encontrar mecanismos democráticos para encaminhar as pressões do
crescimento e das demandas por participação popular. Daí o velho recurso e o
apelo dos políticos aos militares, como “pesos decisivos” na balança política,
para “corrigir os problemas”.
De fato, os militares
tinham uma longa tradição de intervenção nos assuntos políticos, desde o
próprio golpe de derrocada da monarquia e de proclamação da República, até as
crises político-militares dos governos JK e Jânio Quadros, passando pelas
revoltas tenentistas dos anos 1920, pela revolução que derrubou a Velha
República, pelo golpe de instauração da ditadura do Estado Novo, em 1937, e
também pelo que determinou sua extinção, em outubro de 1945. Depois foram
ativos participantes dos diversos episódios de turbulência da República de 1946,
até culminar na implantação do parlamentarismo, em 1961, e na própria derrubada
dessa República três anos depois. Aqui a historiografia brasileira ainda se
divide quanto à natureza do golpe, suas origens políticas, suas raízes sociais,
suas justificativas econômicas ou geopolíticas, segundo se é contra ou a favor,
ainda hoje, em relação a esse evento decisivo no Brasil moderno. A esquerda,
obviamente, interpreta o golpe militar como o avanço das forças reacionárias,
alinhadas ao imperialismo, contra a ascensão dos “movimentos populares”, em
favor de reformas democráticas; a direita coloca o golpe como uma reação às
forças comunistas que ameaçavam tomar o poder e colocar o Brasil – como uma
nova Cuba, ou uma nova China – na esfera do movimento comunista internacional,
liderado pela URSS. No caso do Brasil, curiosamente, as forças de “direita”
ganharam, mas a História foi escrita pela “esquerda”, assim que todo o processo
político que levou às crises político-militares dos anos 1954-1964 e o próprio
golpe e seus efeitos mediatos e imediatos são interpretados segundo a ótica dos
“perdedores”, que, aliás, ascenderiam ao poder em 2003.
Seja qual for a
interpretação que se decida adotar ainda hoje, o golpe militar de 1964 contra o
regime de João Goulart – ou a “revolução”, segundo seus promotores –
provavelmente não representou nada de muito diferente do que ocorreu na mesma
época em diversos outros países latino-americanos; talvez não tenha sido
realmente nada de muito diferente inclusive no que respeita às forças de
esquerda que lutavam contra os regimes oligárquicos ou de burguesias alinhadas
ao imperialismo americano durante a era da Guerra Fria: depois de uma primeira
preeminência dos partidos comunistas de orientação (e subserviência) soviética,
ocorreram as primeiras divisões na esquerda latino-americana, basicamente
representadas pela criação de partidos comunistas pró-chineses (tendentes a
apoiar o conceito de guerra popular de base camponesa, conforme o modelo
maoísta) e de movimentos identificados com a visão foquista-guerrilheira do
processo de luta contra o Estado burguês, privilegiando os métodos
fidelistas-guevaristas de tomada do poder. A esquerda brasileira também
acompanhou essas divisões dos movimentos de oposição aos regimes pró-EUA e
passou a se organizar em função dos modelos respectivos de lutas políticas e
militares.
Engajamento
Assisti a esses primeiros
desenvolvimentos da esquerda brasileira basicamente como um espectador
indeciso, pois até meados dos anos 1960 não tinha condições de realmente
compreender quais conceitos, processos e métodos de luta eram os mais
apropriados para o Brasil e seus reformistas radicais. Até 1964, pelo menos,
ou seja, até o golpe militar, meu
conhecimento do marxismo era perfunctório, se algum, consistindo apenas na
leitura do que constava em livros e enciclopédias estudantis e em algum
material anticomunista traduzido das “seleções” do Reader’s Digest, publicada em português com apoio oficial do
governo dos EUA. Minha politização, algo confusa, começou com a revolução
cubana, e seus episódios posteriores, mas me lembro particularmente da crise
dos foguetes de outubro de 1962, por causa dos temores de uma possível guerra
nuclear entre EUA e URSS. Obviamente não tinha nenhuma posição nessa época, mas
comecei a ler mais intensamente sobre esses temas, e a buscar livros sobre os
mais importantes movimentos políticos do século XX: a revolução bolchevique, os
fascismos dos anos 1920 e 30, a dominação soviética sobre metade da Europa e
alguns episódios da Guerra Fria.
Nenhum foi tão marcante,
justamente, quanto a revolução cubana, e seu desfilar de “guerrilheiros
heroicos” lutando contra um ditador de opereta. Ché Guevara simbolizava essa
luta e foi com ele que nos identificamos todos os jovens que também pensavam
libertar o Brasil da hegemonia americana e instaurar um regime de justiça
social e de democracia popular, basicamente identificado com os socialismos
russo e chinês. Cuba era um exemplo de como se podia derrocar um regime
corrupto e criar o “homem novo”, base de toda a transformação radical que se
esperava fazer.
Minha evolução para
posições marxistas ocorreu, assim, naturalmente, acelerada que foi pelo golpe
militar de 1964 e pelas primeiras reações ensaiadas pelos militantes que
recusavam a via reformista e pacifista do Partido Comunista Brasileiro e
pensavam que só a luta armada poderia representar a verdadeira libertação do
Brasil. Posso confirmar que fui um dos mais entusiastas apoiadores da revolução
cubana, como em geral toda a esquerda no Brasil, ainda que divergindo quanto
aos caminhos a seguir a partir do golpe militar. Entre 1964 e 1966 li
intensamente meus primeiros livros de marxismo teórico, e até alguns de
“revolucionário prático”, como pode ter sido o pequeno ensaio de Regis Debray, Révolution dans la révolution, em uma
edição brasileira clandestina (sem entender muito bem suas posições, pois
confesso que não percebia claramente as diferenças táticas, ou até
estratégicas, entre as diferentes formas de luta preconizadas e suas relações
com o alinhamento de forças de que seria preciso dispor para cada uma delas).
Minha atividade política,
quando no ciclo colegial de estudos – curso “clássico”, constante de três anos
de humanidades, depois de 4 anos de ginásio – entre 1966 e 1968, consistiu em
uma intensa participação em manifestações estudantis contra o regime militar,
contra a visita de dirigentes americanos ao Brasil – entre eles David
Rockefeller, em 1968 – e também na tentativa de vinculação a alguns dos grupos
políticos que então tentavam se organizar para lutar contra o regime,
derrocá-lo e, depois, gloriosamente, implantar um modelo de “democracia
popular” muito similar ao modelo cubano. O período que vai de 1964 a 1968 é o
da ascensão dos movimentos de resistência ao regime militar, de organização das
primeiras ações armadas e dos primeiros reveses, também.
Todos os que militavam na
esquerda brasileira sabiam das divisões nos grupos tradicionais, sobretudo em
detrimento do “Partidão” (o “velho” PCB) e foram muitas as ocorreram,
geralmente com o sentido de “passar à ação”, de acentuar a importância das
correntes e tendências que pretendiam “começar a luta armada”, atendendo ao
apelo das conferências realizadas em Havana, a Tricontinental (reunindo
militantes dos três continentes do Terceiro Mundo) e a dos movimentos
guerrilheiros da América Latina, da qual resultou a criação da OLAS,
Organização Latino-Americana de Solidariedade, uma mini-internacional que
pretendia estimular o modelo cubano em todos os países do continente.
Repercutia então – em torno de 1966 – a palavra de ordem de Ché Guevara que era
a de “criar dois, três, muitos Vietnãs”, como forma de vencer o imperialismo.
Não se sabia, então, onde estava o comandante Ché Guevara, que se tinha
despedido oficialmente de Cuba, e de seus cargos cubanos, desde 1965, para
continuar, como diziam os líderes cubanos, sua obra de revolucionário em outros
continentes. Dois anos depois ele terminaria a vida nas selvas da Bolívia,
maltrapilho e entregue à sua sorte.
Em 1966, o dirigente do
PCB Carlos Marighella tinha participado das reuniões de Havana e de fato
rompido com o Comitê Central, que não pretendia segui-lo no caminho cubano. Com
vários outros companheiros e jovens recrutas do movimento estudantil, ele criou
a Ação de Libertação Nacional e passou a emitir palavras de ordem
imediatamente, todas no sentido de atacar os militares e outros representantes
da ditadura. Numa primeira fase se tratava de ações simbólicas, e logísticas –
ou seja, de levantamento de fundos – que seriam seguidas, esperava-se, de
revoltas populares e de greves de trabalhadores, que todas contribuiriam para o
“acirramento de contradições” e a passagem à fase ulterior da luta, com
brigadas e unidades completas armadas, que seriam capazes de vencer o exército
a serviço da burguesia e do imperialismo. Outros grupos também se constituíram
em várias regiões do Brasil, em alguns casos envolvendo militares, em outros
militantes de classe média, geralmente do movimento estudantil, que estava na
vanguarda da resistência ao governo militar.
Como vários outros
estudantes de minhas relações, eu esperava passar logo de manifestações de rua
para ações mais ousadas, armadas se possível. Mas não era fácil contatar os
grupos guerrilheiros, obviamente clandestinos e com um esquema de
enclausuramento muito forte, para evitar perdas na fase de construção de
forças. Os grupos organizados que atuavam dentro do movimento estudantil –
Partidão, PCdoB, Ação Popular – tinham suas próprias prioridades, e não eram
suficientemente cubanos, ou guevaristas, segundo nossas prioridades da época.
(...)
O ano de 1968 parecia
ensejar grandes progressos para os movimentos de resistência à ditadura. A
despeito da morte de Ché Guevara, na Bolívia, em outubro de 1967, pipocavam por
todas as partes, na região e no Brasil, ações armadas que pareciam prenunciar a
ascensão dos grupos guerrilheiros que iriam se lançar na “guerra” contra o
regime militar. Não se percebia muito bem que, por mais espetaculares que
fossem as ações do punhado de militantes que tinham decidido pegar em armas –
assaltos a bancos, roubos de armas, ataques a quartéis, “justiçamento” de um
“espião americano” (como o capitão Charles Chandler) ou de algum “esbirro da
ditadura” –, elas não iriam levar, por si só, à formação das colunas
guerrilheiras (ao estilo cubano) ou do “exército popular” (como no exemplo
chinês) que nos conduziria à tomada do poder.
A população permanecia
relativamente indiferente a esses apelos à “luta armada”, e os trabalhadores já
tinham preocupação suficiente com a defesa de seus salários, num ambiente
inflacionário que permanecia renitentemente inercial e sustentado. A relativa
intensidade dos ataques a bancos e a outros alvos táticos dava a impressão que
os movimentos de luta armada estavam crescendo, quando na verdade eles apenas
procuravam sustentar-se a si próprios, independentemente de qualquer debate
político mais estratégico ou de ações efetivas de organização da população.
(...)
Paulo
Roberto de Almeida, Brasília, 16/10/2011
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