Filhos da democracia: a descarioquização da diplomacia brasileira, por Rogério de Souza Farias e Géssica Carmo
Em
1934, após uma longa viagem de trem, o médico João Guimarães Rosa
chegou ao Rio de Janeiro. Sentiu-se “estonteado com o ambiente
barulhento” e, depois, “com o luxo magnificente do [Palácio] Itamaraty.”
Ele estava no grande salão da biblioteca para prestar um concurso para o
cargo de cônsul com outros 58 candidatos. Na prova de francês, a
primeira etapa, pediu-se para traduzir trecho do livro Nouvelle Anthropologie,
de Henri de Lanteuil, e fazer uma versão do livro de João Ribeiro,
História do Brasil. Um candidato levantou e abandonou a prova. Parecia
impossível. Guimarães Rosa conseguiu chegar ao final, mas tinha certeza
que não passara. Saiu da prova e pegou uma barca no cais Pharoux. Ficou
indo e vindo de Niterói ao Rio de Janeiro, imerso em um profundo
sentimento de insegurança. O resultado saiu e 30 foram reprovados — mas
não ele. O mineiro passou nas sucessivas etapas, até as provas orais.
Presenciada por numerosa plateia, o médico demonstrou uma segurança e um
porte incomuns para evento de tal natureza. A reação de todos era de
pasmo. Era um desconhecido. Não frequentara os saraus literários do Rio
de Janeiro ou de São Paulo; tampouco, as redações de jornal ou as rodas
intelectuais da capital. Era, talvez, o único dos dez concorrentes
habilitados sem ter colocado os pés na Europa. Um amigo da família, que
esteve na plateia, relatou a reação dos examinadores: estavam comovidos,
atônitos e surpresos [1]. De onde saíra aquele talento?
O espanto com o fato de um médico que
vivia no interior de Minas Gerais ter desempenho tão expressivo no
concurso fazia sentido. A diplomacia era uma profissão predominantemente
de cariocas e de uma minoria das elites das capitais regionais. Essa
característica não foi monopólio brasileiro. A concentração social e
regional foi algo que afetou todos os serviços exteriores até pelo menos
o final da primeira metade do século XX. Nos Estados Unidos, entre 1898
e 1914, dois terços provinha da Costa Leste, tendo estudado em escolas
particulares, como Groton, ou/e em Harvard, Yale e Princeton. Em
Portugal, no serviço exterior salazarista (1926-1974), a maioria
provinha de Lisboa, com formação em direito em Coimbra; na Alemanha,
após a unificação, os diplomatas, em sua maioria, provinham de três das
211 fraternidades estudantis; na França, predominava a elite parisiense,
particularmente os mais ricos ou com parentes na cúpula do aparelho de
Estado. No Império austro-húngaro, havia um pouco mais de dispersão
geográfica, mas somente 6% não era aristocrata em 1914[2].
A maioria dos serviços exteriores mudou
substantivamente o padrão de seu recrutamento no século XX. O Brasil não
foi diferente. Dando continuidade à série “Filhos da Democracia”,
examinaremos o grupo de diplomatas que acedeu ao IRBr de 1985 a 2010 no
aspecto específico do local de nascimento. Antes de iniciar, no
entanto, deve-se levar em conta que, no período examinado, o país passou
por várias mudanças do ponto de vista federativo. Optou-se por utilizar
a distribuição existente em 2010, data final do marco temporal do
estudo.
A primeira informação relevante é que o
serviço exterior brasileiro foi caracterizado por uma elevada proporção
de cariocas em suas fileiras no início do período republicano. No
período Vargas (1930-1945), eles eram mais de 40%. Do governo Sarney
para o Governo Lula, contudo, a participação de diplomatas nascidos no
Rio de Janeiro passou por uma radical diminuição — caindo de 51% para
22%. Outra queda importante foi o número de servidores que nasceram no
exterior. Se utilizarmos tal categoria como uma proxy, ainda que
imperfeita, de filhos de diplomatas, pode-se dizer que o período
posterior ao quadriênio Collor/Itamar levou a uma carreira menos
endógena. As unidades da federação que mais avançaram, no mesmo período,
foram Minas Gerais e São Paulo, sendo a segunda um caso especialmente
relevante (ver tabela abaixo).
Tabela 1: Distribuição de diplomatas por estado de nascimento [3].
Outra forma de analisar essa mudança é
examinar pela categoria de cidade de nascimento (Mapa 1 e Tabela 2) [4].
Entre 1930-1945, há uma concentração tanto na região sudeste como na
fronteira sul do Rio Grande do Sul. Já nos governos Sarney e
Collor/Itamar, há uma concentração em poucas cidades. Seria só no
governo FHC que diminuiria o peso das capitais, tendência essa avançada
pelo governo Lula.
Tabela 2 e Mapa 1: Distribuição de diplomatas por cidade de nascimento.
Essa mudança no status relativo do
serviço exterior brasileiro, no entanto, não pode ser celebrada como uma
nova era de abertura do método de recrutamento. Uma forma de analisar
os dados é pelo filtro da distribuição regional. A desagregação dos
dados por esse critério (Tabela 3) demonstra que a participação da
região sudeste permaneceu praticamente a mesma. Há, certamente, uma
tendência de queda se compararmos com o período Sarney (de 62,96% para
59,85%), mas ainda está acima do período 1930-1945 (58,68%). Essa
situação vai de encontro com as tendências demográficas do país (Tabela
4), onde o sudeste ocupa somente 21,58% do contingente populacional – em
uma tendência levemente declinante. Enquanto demograficamente as
regiões norte e nordeste representam mais de 50% da população, há menos
de 15% de diplomatas oriundos dessas áreas, apesar do leve crescimento
no governo Lula.
Tabela 3: Distribuição de diplomatas por região de nascimento.
Tabela 4: Distribuição populacional do Brasil. Fonte: IBGE.
Examinar só por estado e cidade de
nascimento é uma análise incompleta. Há, no Brasil, relativa mobilidade
populacional. Pode haver casos, portanto, de pessoas nascidas em
determinadas cidades que tiveram toda sua vida estudantil e profissional
em outras localidades. Qual seria o impacto dessa situação na
concentração regional e estadual de diplomatas? A questão, aqui, é saber
identificar esse fluxo. Para formatar esses dados, foi criada uma
categoria compreendendo as cinco unidades da federação com maior
participação na carreira (Minas Gerais, Distrito Federal, Rio de
Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo) mais o exterior. Com base nela,
foi feita uma tabela com a proporção, por período, de todos os
diplomatas que não nasceram e nem fizeram graduação nessas localidades
(Tabela 5). Antes de apresentá-la, é necessário considerar, primeiro,
que quase metade dos diplomatas do período 1930-1945 não tinham ensino
superior completo (ou a informação não foi reproduzida nos anuários).
Isso limita a comparabilidade deste período com os demais. Segundo, não
foram computadas atividades de pós-graduação e empregos anteriores da
posse — foi utilizada somente a graduação. Os resultados são chocantes.
Mesmo com a expansão do governo Lula, menos de 12% dos diplomatas
recrutados não nasceram e tampouco estudaram nessas seis localidades.
Isso quer dizer que um indivíduo nascido nas 22 unidades federativas
remanescentes que não fizesse pelo menos sua graduação em uma das
instituições de ensino superior dos cinco estados ou no exterior estaria
em grande desvantagem.
Tabela 5: proporção de diplomatas que
não nasceram e não cursaram o ensino superior em Minas Gerais, Distrito
Federal, Rio de janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e exterior.
Isso é um problema. Enquanto,
demograficamente, ocupam 52% do contingente populacional brasileiro, os
oriundos desses estados enfrentam sérias dificuldades quando não se
dirigem para os centros de ensino nas grandes metrópoles do país.
Pode-se dizer, dessa maneira, que hoje a diplomacia brasileira
representa melhor a composição regional do país se comparado com aquele
momento em que Guimarães Rosa entrara no Itamaraty. Mas a concentração
ainda permanece em pessoas que nasceram ou estudaram em Minas Gerais,
Distrito Federal, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e/ou no
exterior. Transpor essa barreira é um grande desafio porque está
associada à própria desigualdade da infraestrutura educacional do país.
Não há dados padronizados do ensino superior, mas utilizando os da área
de humanas do Exame Nacional de Ensino Médio de 2013, nas variáveis
média por escola e percentual de alunos que tiraram notas mais altas,
percebemos que, das mais de 14.700 escolas de ensino médio do país,
poucas de fora do grupo selecionado (DF, MG, RJ, SP e RS) tem alto
padrão de desempenho.
Gráfico 1: médias das notas em
humanas e percentual de todos os alunos no Nível 5 do ENEM. Dados do
sítio eletrônico do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira. O tamanho de cada referência refere-se ao
número de alunos participantes por instituição de ensino médio.
No ensino superior, a situação é quase a
mesma. Utilizando os 192 primeiros colocados do Ranking Universitário da
Folha de São Paulo de 2014, observamos que 51% das instituições de
ensino superior estão concentradas no grupo de cinco estados
selecionados acima. Se utilizarmos o critério das vinte primeiras
colocadas, no entanto, a proporção chega a 75% [5]. O recrutamento do
Itamaraty, dessa forma, só reflete (e reforça) um problema mais amplo da
sociedade.
Mas o que fazer para dirimir esse
problema? Pensou-se, no final da década de 1950, que a realização das
provas para o Instituto Rio Branco em outros estados fosse ser um passo
importante na melhor distribuição regional dos diplomatas brasileiros.
Isso começou em 1961, com a realização da prova em sete cidades. Em 1995
foram dez, e em 2011, pela primeira vez, todas as fases do concurso
foram aplicadas em todas as capitais da federação. Infelizmente, a
realização das provas em um estado só teve impacto no recrutamento
quando a infraestrutura educacional dessa localidade permitiu a
apresentação de candidatos competitivos. Quando esse elemento não estava
disponível, não há evolução significativa – como a introdução das
provas em Cuiabá, Campo Grande e Manaus em 2005.
No final do governo Lula e no primeiro
mandato do governo Dilma Rousseff, há relatos sobre viagens de alguns
alunos do Instituto Rio Branco para acompanhar a execução das provas e
realizar palestras em instituições de ensino em capitais mais afastadas.
Não se tem notícia, contudo, se essa atividade continua sendo executada
e se teve algum impacto sobre o interesse de estudantes dessas
localidades pela carreira. Ademais, a iniciativa trabalha um aspecto
meritório, a divulgação, a qual infelizmente tem impactos limitados
sobre o tipo de problema apresentado acima – a carência de
infraestrutura educacional.
Nessa dimensão, cabe apresentar o papel
positivo que a Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG) desempenhou, no
período examinado, na tarefa de vulgarizar o conhecimento de matérias
cruciais para o bom desempenho no concurso. Essa pode ser uma via a ser
explorada no futuro. Pode-se cogitar, por exemplo, o uso de aulas
virtuais sobre aspectos relacionados ao concurso promovidas pela
Fundação, usando o canal já existente no Youtube. Pode-se questionar tal
iniciativa indicando que tal tarefa caberia ao setor privado.
Infelizmente, nas franjas dos grandes centros urbanos do país, há
escassa capacidade de o setor privado fazer oferta equivalente de
material de estudo. A inação, aqui, serviria somente para reforçar a
desigualdade. Mas isso não significa que o sistema atual seja ideal. Há a
necessidade de maior diálogo entre a diretoria do IRBr e a FUNAG, além
de estudos quantitativos mais adequados para identificar, com base nos
candidatos ao concurso, qual material pode ser melhorado e quais foram
julgados mais importantes.
Utilizar o modelo do atual Programa de
Ação Afirmativa de Bolsa-Prêmio de Vocação para as áreas geográficas
assinaladas acima seria uma proposta mais efetiva. Assim, a concessão de
bolsas para alunos promissores de regiões sem a capacidade
institucional de formar bons candidatos poderia dirimir o problema.
Ainda que os desafios analisados acima sejam consequência de uma
desigualdade geral da sociedade brasileira em termos regionais, uma
política de bolsas seria um mecanismo para o Itamaraty ser novamente
surpreendido pelos Guimarães Rosas de todos os rincões do país.
Referências:
- Bruley, Yves e Soutou, Georges-Henri. Le Quai d’Orsay impérial: histoire du Ministère des Affaires étrangères sous Napoléon III. Paris: Editions A. Pedone, 2012.
- Cecil, Lamar. The German diplomatic service, 1871-1914. Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1976.
- Godsey Jr., William D. The culture of diplomacy and reform in the Austro-Hungarian foreign office, 1867-1914. In: Mosslang, Markus e Riotte, Torsten. The diplomat’s world: a cultural history of diplomacy, 1815-1914. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 59-81.
- Heinrichs, Waldo H. American ambassador: Joseph C. Grew and the development of the United States diplomatic tradition. New York: Oxford University Press, 1986.
- Moskin, J. Robert. American statecraft: the story of the U.S. foreign service. New York: St. Martin’s Press, 2013.
- Oliveira, Pedro Aires. O corpo diplomático e o regime autoritário (1926-1974). Análise social, n. 178, p. 145-66. 2006.
- Rosa, Vilma Guimarães. João Guimarães Rosa, meu pai. 2ª edição: Nova Fronteira, 1999.
[1] Rosa: 1999, 311; Atas do concurso
para terceiro oficial (1934). Concursos, relatórios, resultados finais.
Lata 580. Maço 1. AHI-RJ. Maço 13.120. AHI-RJ.
[2] Moskin: 2013, 342; Heinrichs: 1986, 97; Oliveira: 2006; Bruley e
Soutou: 2012, 338-48; Godsey Jr.: 2008, 17; Cecil: 1976, 64 e 79[3] No período 1930-1945, estão na categoria diplomatas os servidores das carreiras consular e de Secretaria de Estado e não se diferenciou o Rio de Janeiro do Distrito Federal.
[4] Na Tabela 2 foram selecionadas as cidades que em qualquer dos cinco casos tivesse pelo menos 1,5% dos diplomatas no respectivo período.
[5] http://ruf.folha.uol.com.br/2014/. Acesso em: 2 de março de 2015.
Todos os dados quantitativos foram retirados da base de dados referida no primeiro artigo da série “Filhos da Democracia”.
Rogério de Souza Farias is visiting
scholar do Lemann Institute for Brazilian Studies e associate do Center
for Latin American Studies da Universidade de Chicago, Estados Unidos
(rofarias@gmail.com)
Géssica Carmo é Bacharelanda em
Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU
(gessicafdcarmo@gmail.com)
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