Contra todos os maniqueísmos; pela total liberdade de
opções
Paulo Roberto de Almeida
Tomar banho é uma das
minhas grandes aventuras intelectuais. Digo isto sem qualquer ironia: quando
estou debaixo da ducha, me ensaboando ou passando shampoo nos cabelos, que é
quando justamente não consigo ler nem escrever – atividades que, como todos
sabem, distraem o espírito e nos impedem de pensar direito –, aí sim é que
costumo ter algumas ideias novas, como a deste artigo, por exemplo. Penso em
coisas que não poderia pensar, ao ter em frente de mim uma página de livro,
jornal ou revista, ou telas de um computador, que servem apenas para consolidar
ideias já concebidas anteriormente, ou seja, sem qualquer inovação momentânea
ou surpreendente. A ducha é o momento da centelha inovadora. Tentem a aventura vocês
também: ao tomar banho, na próxima vez, experimentem pensar em coisas nunca
antes pensadas. É o que faço regularmente, e o que me dá mais prazer; daí certas
duchas prolongadas...
Pois bem, ao tomar a minha
ducha num hotel na Filadélfia, terra de Benjamin Franklin, o maior, talvez
único, filósofo americano (sans blague),
estava pensando em como é chato ter de se classificar de alguma forma para se
fazer entender pelos outros. Não só os jornalistas – que são maniqueístas e
simplificadores por profissão, e vocação estupidamente entranhada nas
faculdades de jornalismo –, mas também as pessoas comuns, aquelas como eu e
você – que passamos a vida lendo e escrevendo – sentem uma necessidade para mim
incompreensível de catalogar a si mesmas, e aos outros, segundo certos cânones
pré-fabricados: “ah, você agora é liberal?”; ou então: “mas você ainda é
marxista, de esquerda?” A coisa avança por aí: “Não sou de direita, mas...”, ou
“Desculpe, mas isso é muito neoliberal; você acha mesmo que o mercado resolve
tudo?; certas coisas têm de ser feitas pelo Estado.”
Faz muito tempo que cansei
de todos os maniqueísmos. Tendo vindo do, ou me criado no marxismo acadêmico –
até por força da literatura e dos debates disponíveis no mercado intelectual
dos anos 1960, eu naturalmente me classificava à esquerda, sempre identificado
com a “justiça social” – até por uma questão de situação de família – e com as
causas “progressistas’’, o que sempre significou, naquela e em todas as épocas,
com a contenção do mercado e a regulação estatal de grande parte das atividades
produtivas. Mesmo quando eu estava lendo o meu Marx, ou achando o Ché Guevara
um grande sujeito, eu não deixava de ler o Roberto Campos e refletir sobre tudo
aquilo que estava sendo feito pela ditadura militar, teoricamente a serviço do
imperialismo e do capitalismo monopolista internacional (era assim que
definíamos as polaridades naqueles anos conturbados). Ao partir para a Europa,
no início dos anos 1970, continuei a ler Jean-Paul Sartre, mas nunca deixei de
também ler Raymond Aron, ainda que buscando recusar, bestamente, os bons fundamentos
dos argumentos que defendiam, respectivamente, Roberto Campos ou Raymond Aron
(nunca consegui, confesso).
Como eu sempre li muito,
demasiadamente talvez, mas justamente aproveitava os momentos de não leitura –
no banho, ou na penumbra das vigílias noturnas – para pensar, refletir sobre o
que havia visto e lido, durante o dia, para, a partir daí, formar a minha
própria opinião sobre as coisas do mundo. Por isso mesmo, cansei rapidamente de
todos os fundamentalismos, de todos os tipos, e um dos primeiros foram os
dogmas religiosos da Igreja Católica. Como leitor precoce de Monteiro Lobato,
era impossível aceitar aquelas explicações furadas do padre no preparatório da
primeira comunhão: eram tão primárias e risíveis as “verdades da fé”, que
desisti de prestar atenção ao catecismo para começar a pensar sobre aqueles
ritos que me pareciam ridículos. Por isso comecei por me definir como ateu – ou
algo próximo disso – já entre 12 e 13 anos, mas como isso causasse certa
suspeição entre os próximos, o jeito era apelar para algo mais aceitável: o
agnosticismo. Mais tarde, verifiquei que tudo isso continha uma referência
inevitável à religião, ou a um deus – ateu, aquele que nega a existência de
deus – e passei simplesmente a me classificar como irreligioso. Pronto, isso
resolve a questão.
No que se refere aos
dogmas políticos e às escolas econômicas, ao aderir ao marxismo e ao
socialismo, eu nunca deixe de estudar a história do capitalismo e de examinar,
com lupa e sofreguidão, as supostas conquistas do socialismo e dos regimes de
esquerda, em todas as partes do mundo que fui dado visitar e conhecer
diretamente. O problema dos marxistas brasileiros, ou latino-americanos, assim
como de acadêmicos em quase todos os países de economia capitalista, é que eles
nunca vivenciaram, de fato, o socialismo real, em toda a sua extensão. Este não
foi o meu caso. Tanto por força do exílio voluntário, quanto de minha profissão
adulta, o nomadismo, a compulsão por viagens, a sede de conhecimento, a busca
pela razão última das coisas me levaram, todas elas, a conhecer, e a refletir
sobre, todos os regimes políticos, todos os sistemas econômicos realmente
existentes, do capitalismo ideal (onde?) ao socialismo surreal (depois eu conto
onde), das economias de mercado as mais avançadas do mundo ao estatismo mais
subdesenvolvido, da prosperidade insolente à miséria alucinante. Creio ter
visto um pouco de tudo em minhas andanças – por todos os meios disponíveis de
locomoção, nos últimos 38 anos sempre com Carmen Lícia – e reflexões peregrinas.
Isso me tornou mais
modesto em certos julgamentos “definitivos” sobre certos arranjos econômicos e
sociais, me ensinou a ser mais tolerante com a opinião de outros estudiosos ou
atores sociais, mas também mais crítico em relação a certos “engenheiros
sociais” das academias, geralmente os seres mais alienados que encontrei em uma
vida repleta de boas e más experiências (estas últimas costumam ensinar bem
mais do que as primeiras). Passei a recusar modelos ou projetos de qualquer
coisa, esses mesmos saídos das pranchetas desses ideólogos da felicidade alheia,
ou apenas considerar experimentos fracassados como dignos de serem objetos de
reflexão ponderada. E passei a recusar essas classificações simplistas e
maniqueístas que costumam dividir os interlocutores em dois campos opostos (e
desprezo aquelas páginas de jornal com artigos a favor e contra qualquer coisa
que esteja na agenda do momento).
Com isso, passei a
surpreender, ou a decepcionar muita gente, de todas as latitudes e quadrantes
do espectro político. Já recebi vários convites para escrever um capítulo de
livro, ou um artigo de opinião, de publicações marxistas, ou progressistas,
para depois ser confrontado a uma recusa de aceitação, pelo fato de minhas
opiniões ou argumentos não se encaixarem no molde conceitual dos organizadores.
Uma revista acadêmica de esquerda, com a qual colaborei durante dez anos –
certamente irritando os colegas do conselho editorial – me “demitiu”
sumariamente depois de dois ou três artigos provocadores: “A cultura da esquerda:
sete pecados dialéticos que atrapalham seu desenvolvimento” (http://www.espacoacademico.com.br/047/47pra.htm);
“Falácias acadêmicas, 15: o modo repetitivo de produção do marxismo vulgar no
Brasil” (http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/13823/7221);
“Pode uma pessoa inteligente pretender-se comunista, hoje em dia?; Reflexões
sobre um paradoxo acadêmico brasileiro” (http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/14334/7601).
Assim ocorreu em outras instâncias, igualmente, quando os companheiros
começaram a me classificar como de direita, ou “neoliberal”, apenas porque
ousei contestar certos dogmas estatizantes – mais por serem estúpidos
economicamente, do que propriamente estatais – que se encontram disseminados em
pasquins medíocres.
Mas isso aconteceu
igualmente no espectro da direita, ou daquilo que se entende como tal no
Brasil: grupos liberais, ou conservadores, me convidaram para palestras ou para
escrever artigos, e depois devem ter se decepcionado com o fato de eu não me
classificar politicamente à direita, ou sequer como liberal econômico. Sou
apenas e tão somente, como eu sempre digo, um racionalista e um praticante do
ceticismo sadio, o que me habilita a ser um questionador de todo e qualquer
fundamentalismo político ou de quaisquer dogmatismos econômicos que possam
existir. Na verdade, não tenho uma filosofia determinada, a não ser essa sadia
desconfiança questionadora, e não pretendo que minhas ideias, ou “soluções”
tentativas para qualquer coisa sejam justamente outra coisa que não tentativas
racionais de ensaio e erro para ver o que pode ser feito de mais eficiente, e
eficaz, no encaminhamento dos grandes problemas da humanidade.
E quais são eles? Os de
sempre: segurança alimentar, segurança física, liberdade de pensamento, de
inovação, de empreender, direito de propriedade, de acumulação de bens, de
prosperidade, de bem-estar, de felicidade pessoal, capacidade de ser aceito e ser
reconhecido por seus méritos próprios, sem necessitar de pertencer a um grupo,
a uma tribo, sem a obrigação de aderir uma
religião, ponto e paro por aí. Esses são os grande problemas e as grandes
tragédias da humanidade, pelo menos daquela parte (certamente imensa) que ainda
não construiu sua prosperidade com base nas liberdades individuais, o que
inclui o direito de empreender sem a mão extratora dos Estados intrusivos e
cerceadores da liberdade de empreender, justamente.
Esses são meus critérios e
esta é a minha filosofia: existem certas coisas que funcionam, no mundo, e
outras coisas que não funcionam. Prefiro, obviamente, ficar com as primeiras, e
rejeito tolerantemente as segundas, que entendo serem patrocinadas por mentes
simples, ignorantes, ou de má-fé. Por exemplo: educação universal, de boa qualidade,
aberta a todos os talentos, capacidades e condições sociais, é uma boa coisa em
si: populações educadas sempre serão mais prósperas, mais propensas a rejeitar
políticos demagogos e tiranos sanguinários (o que nem sempre é o caso, como
vimos no triste exemplo do nazismo alemão, mas ele surgiu numa situação de
profunda crise social e econômica, de exacerbação dos espíritos, justamente,
com maniqueísmos bem implantados por todos os lados). Se essa educação vai ser
feita pelas famílias – ou seja, pelos mercados – ou pelo Estado, esse é um bom
debate econômico, que aceito com prazer, pois disso depende o futuro da
humanidade, e modestamente do Brasil.
As questões certamente não
são simples: certos serviços coletivos – água, saneamento, infraestrutura,
transportes e segurança – devem ser buscados nos mercados ou fornecidos pelo
Estado? Tudo depende de como a sociedade se organiza, e de como os seus agentes
privados – indivíduos e empresas – podem ser habilitados e liberados para se
exercerem nessas áreas, sob concessão, monopólio, competição aberta? Tudo isso
é muito difícil, e não é possível ter respostas prontas – liberais ou estatais
– para cada um dos desafios que se apresentam em sociedades complexas,
altamente burocratizadas como as nossas. Não tenho a pretensão de ter todas as
respostas corretas, ou definitivas, e por isso mesmo costumo repetir: vamos
raciocinar juntos, vamos nos munir dos melhores estudos e testes de
proficiência, de análises custo-benefício e de simulações de desempenho antes
de adotar uma solução de âmbito parcial, de escopo estritamente dirigido ao
objeto em questão, e de temporalidade variável (ou seja, podendo ser modificada
assim que se modificarem as circunstâncias que determinaram a escolha de uma ou
outra solução). Isso é puro pragmatismo, ou apenas racionalidade instrumental,
ou seja, adequação entre meios e fins, como todo engenheiro verdadeiro poderia
determinar.
O problema tampouco se
colocar como sendo o da melhor teoria, ou o do melhor argumento racional que
deveria prevalecer. Não existem respostas teóricas a problemas práticos, que
tenham a virtude de ganhar um debate apenas porque são superiores em sua
racionalidade intrínseca às respostas de menor qualidade que são oferecidas, e
implementadas, por quem tem o poder de fazê-lo. Apenas relembrando um famoso
debate intelectual – um dos poucos – que ocorreu no Brasil, três gerações
atrás: aquele que opôs o intelectual, economista, Eugênio Gudin, liberal, ao
industrialista, e também intelectual, Roberto Simonsen, protecionista e
estatal-industrializante. Esse debate refletia, de certo modo, aquele que
ocorria no mesmo momento entre o economista, e filósofo social, John Maynard
Keynes e o filósofo social, e economista, Friedrich Hayek, a propósito das
mesmas questões: o que devemos privilegiar, as soluções de mercado, ou os
arranjos dos governos.
Quem ganhou o argumento
teórico? Certamente Hayek e Gudin, do ponto de vista puramente racional,
intelectual. Mas quem ganhou o argumento prático, com “respostas” que foram
implementadas pelos governos, foram Keynes e Simonsen. O mundo ficou melhor? Impossível
de dar uma resposta simples a essa questão, pois as outras soluções, as
liberais, não foram implementadas, e não sabemos, assim, se teriam tido a
melhor eficácia resolutiva, a melhor adequação entre meios e fins, a maior dose
de prosperidade com a menor cota de sacrifícios pessoais. As liberdades
certamente recuaram, mas talvez a maior parte dos indivíduos prefiram a
segurança prometida pelos Estados do que a concorrência aberta oferecida pelos
mercados. Esses são os dilemas. É isso que eu tento resolver todos os dias.
Sempre tentando, sempre refletindo, sempre pensando no que pode ser melhor para
todos, na maior extensão possível.
Isso é liberalismo?
Provavelmente, mas não no sentido comum da expressão, enquanto doutrina ou
conjunto de princípios guardando certa coerência com seus pressupostos básicos
e objetivos finalistas. Liberdade a mais completa possível, por certo, com a
menor intrusão possível por parte do Estado, que cede precedência aos direitos
e liberdades individuais. Estado mínimo, por que não?, já que devemos pagar ao
Estado apenas para que ele faça aquilo que não podemos fazer enquanto indivíduos
ou a própria sociedade civil, organizada tanto quanto possível diretamente. Mercados
livres, certamente, mas de uma forma não dogmática e não fundamentalista, pois no
caso de sociedades complexas, as nossas, com muitas assimetrias de informação,
alguma regulação estatal pode, ou deve, ser necessária. Tudo isso sempre considerando
o que pode ser feito da melhor forma, ao menor custo, o que indica para soluções
de mercado mesmo no caso de prestações públicas. Algumas soluções serão provavelmente
estatais, por impossibilidade prática de fazer de outra forma. Mas que o seja
da forma menos coercitiva possível, com o maior grau de liberdade para todos...
Vale!
Filadélfia, 2851: 2 agosto 2015, 6 p.
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