domingo, 2 de agosto de 2015

Contra todos os maniqueismos; pela total liberdade de opcoes - Paulo Roberto de Almeida


Contra todos os maniqueísmos; pela total liberdade de opções

Paulo Roberto de Almeida


Tomar banho é uma das minhas grandes aventuras intelectuais. Digo isto sem qualquer ironia: quando estou debaixo da ducha, me ensaboando ou passando shampoo nos cabelos, que é quando justamente não consigo ler nem escrever – atividades que, como todos sabem, distraem o espírito e nos impedem de pensar direito –, aí sim é que costumo ter algumas ideias novas, como a deste artigo, por exemplo. Penso em coisas que não poderia pensar, ao ter em frente de mim uma página de livro, jornal ou revista, ou telas de um computador, que servem apenas para consolidar ideias já concebidas anteriormente, ou seja, sem qualquer inovação momentânea ou surpreendente. A ducha é o momento da centelha inovadora. Tentem a aventura vocês também: ao tomar banho, na próxima vez, experimentem pensar em coisas nunca antes pensadas. É o que faço regularmente, e o que me dá mais prazer; daí certas duchas prolongadas...
Pois bem, ao tomar a minha ducha num hotel na Filadélfia, terra de Benjamin Franklin, o maior, talvez único, filósofo americano (sans blague), estava pensando em como é chato ter de se classificar de alguma forma para se fazer entender pelos outros. Não só os jornalistas – que são maniqueístas e simplificadores por profissão, e vocação estupidamente entranhada nas faculdades de jornalismo –, mas também as pessoas comuns, aquelas como eu e você – que passamos a vida lendo e escrevendo – sentem uma necessidade para mim incompreensível de catalogar a si mesmas, e aos outros, segundo certos cânones pré-fabricados: “ah, você agora é liberal?”; ou então: “mas você ainda é marxista, de esquerda?” A coisa avança por aí: “Não sou de direita, mas...”, ou “Desculpe, mas isso é muito neoliberal; você acha mesmo que o mercado resolve tudo?; certas coisas têm de ser feitas pelo Estado.”
Faz muito tempo que cansei de todos os maniqueísmos. Tendo vindo do, ou me criado no marxismo acadêmico – até por força da literatura e dos debates disponíveis no mercado intelectual dos anos 1960, eu naturalmente me classificava à esquerda, sempre identificado com a “justiça social” – até por uma questão de situação de família – e com as causas “progressistas’’, o que sempre significou, naquela e em todas as épocas, com a contenção do mercado e a regulação estatal de grande parte das atividades produtivas. Mesmo quando eu estava lendo o meu Marx, ou achando o Ché Guevara um grande sujeito, eu não deixava de ler o Roberto Campos e refletir sobre tudo aquilo que estava sendo feito pela ditadura militar, teoricamente a serviço do imperialismo e do capitalismo monopolista internacional (era assim que definíamos as polaridades naqueles anos conturbados). Ao partir para a Europa, no início dos anos 1970, continuei a ler Jean-Paul Sartre, mas nunca deixei de também ler Raymond Aron, ainda que buscando recusar, bestamente, os bons fundamentos dos argumentos que defendiam, respectivamente, Roberto Campos ou Raymond Aron (nunca consegui, confesso).
Como eu sempre li muito, demasiadamente talvez, mas justamente aproveitava os momentos de não leitura – no banho, ou na penumbra das vigílias noturnas – para pensar, refletir sobre o que havia visto e lido, durante o dia, para, a partir daí, formar a minha própria opinião sobre as coisas do mundo. Por isso mesmo, cansei rapidamente de todos os fundamentalismos, de todos os tipos, e um dos primeiros foram os dogmas religiosos da Igreja Católica. Como leitor precoce de Monteiro Lobato, era impossível aceitar aquelas explicações furadas do padre no preparatório da primeira comunhão: eram tão primárias e risíveis as “verdades da fé”, que desisti de prestar atenção ao catecismo para começar a pensar sobre aqueles ritos que me pareciam ridículos. Por isso comecei por me definir como ateu – ou algo próximo disso – já entre 12 e 13 anos, mas como isso causasse certa suspeição entre os próximos, o jeito era apelar para algo mais aceitável: o agnosticismo. Mais tarde, verifiquei que tudo isso continha uma referência inevitável à religião, ou a um deus – ateu, aquele que nega a existência de deus – e passei simplesmente a me classificar como irreligioso. Pronto, isso resolve a questão.
No que se refere aos dogmas políticos e às escolas econômicas, ao aderir ao marxismo e ao socialismo, eu nunca deixe de estudar a história do capitalismo e de examinar, com lupa e sofreguidão, as supostas conquistas do socialismo e dos regimes de esquerda, em todas as partes do mundo que fui dado visitar e conhecer diretamente. O problema dos marxistas brasileiros, ou latino-americanos, assim como de acadêmicos em quase todos os países de economia capitalista, é que eles nunca vivenciaram, de fato, o socialismo real, em toda a sua extensão. Este não foi o meu caso. Tanto por força do exílio voluntário, quanto de minha profissão adulta, o nomadismo, a compulsão por viagens, a sede de conhecimento, a busca pela razão última das coisas me levaram, todas elas, a conhecer, e a refletir sobre, todos os regimes políticos, todos os sistemas econômicos realmente existentes, do capitalismo ideal (onde?) ao socialismo surreal (depois eu conto onde), das economias de mercado as mais avançadas do mundo ao estatismo mais subdesenvolvido, da prosperidade insolente à miséria alucinante. Creio ter visto um pouco de tudo em minhas andanças – por todos os meios disponíveis de locomoção, nos últimos 38 anos sempre com Carmen Lícia – e reflexões peregrinas.
Isso me tornou mais modesto em certos julgamentos “definitivos” sobre certos arranjos econômicos e sociais, me ensinou a ser mais tolerante com a opinião de outros estudiosos ou atores sociais, mas também mais crítico em relação a certos “engenheiros sociais” das academias, geralmente os seres mais alienados que encontrei em uma vida repleta de boas e más experiências (estas últimas costumam ensinar bem mais do que as primeiras). Passei a recusar modelos ou projetos de qualquer coisa, esses mesmos saídos das pranchetas desses ideólogos da felicidade alheia, ou apenas considerar experimentos fracassados como dignos de serem objetos de reflexão ponderada. E passei a recusar essas classificações simplistas e maniqueístas que costumam dividir os interlocutores em dois campos opostos (e desprezo aquelas páginas de jornal com artigos a favor e contra qualquer coisa que esteja na agenda do momento).
Com isso, passei a surpreender, ou a decepcionar muita gente, de todas as latitudes e quadrantes do espectro político. Já recebi vários convites para escrever um capítulo de livro, ou um artigo de opinião, de publicações marxistas, ou progressistas, para depois ser confrontado a uma recusa de aceitação, pelo fato de minhas opiniões ou argumentos não se encaixarem no molde conceitual dos organizadores. Uma revista acadêmica de esquerda, com a qual colaborei durante dez anos – certamente irritando os colegas do conselho editorial – me “demitiu” sumariamente depois de dois ou três artigos provocadores: “A cultura da esquerda: sete pecados dialéticos que atrapalham seu desenvolvimento” (http://www.espacoacademico.com.br/047/47pra.htm); “Falácias acadêmicas, 15: o modo repetitivo de produção do marxismo vulgar no Brasil” (http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/13823/7221); “Pode uma pessoa inteligente pretender-se comunista, hoje em dia?; Reflexões sobre um paradoxo acadêmico brasileiro” (http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/14334/7601). Assim ocorreu em outras instâncias, igualmente, quando os companheiros começaram a me classificar como de direita, ou “neoliberal”, apenas porque ousei contestar certos dogmas estatizantes – mais por serem estúpidos economicamente, do que propriamente estatais – que se encontram disseminados em pasquins medíocres.
Mas isso aconteceu igualmente no espectro da direita, ou daquilo que se entende como tal no Brasil: grupos liberais, ou conservadores, me convidaram para palestras ou para escrever artigos, e depois devem ter se decepcionado com o fato de eu não me classificar politicamente à direita, ou sequer como liberal econômico. Sou apenas e tão somente, como eu sempre digo, um racionalista e um praticante do ceticismo sadio, o que me habilita a ser um questionador de todo e qualquer fundamentalismo político ou de quaisquer dogmatismos econômicos que possam existir. Na verdade, não tenho uma filosofia determinada, a não ser essa sadia desconfiança questionadora, e não pretendo que minhas ideias, ou “soluções” tentativas para qualquer coisa sejam justamente outra coisa que não tentativas racionais de ensaio e erro para ver o que pode ser feito de mais eficiente, e eficaz, no encaminhamento dos grandes problemas da humanidade.
E quais são eles? Os de sempre: segurança alimentar, segurança física, liberdade de pensamento, de inovação, de empreender, direito de propriedade, de acumulação de bens, de prosperidade, de bem-estar, de felicidade pessoal, capacidade de ser aceito e ser reconhecido por seus méritos próprios, sem necessitar de pertencer a um grupo, a uma tribo,  sem a obrigação de aderir uma religião, ponto e paro por aí. Esses são os grande problemas e as grandes tragédias da humanidade, pelo menos daquela parte (certamente imensa) que ainda não construiu sua prosperidade com base nas liberdades individuais, o que inclui o direito de empreender sem a mão extratora dos Estados intrusivos e cerceadores da liberdade de empreender, justamente.
Esses são meus critérios e esta é a minha filosofia: existem certas coisas que funcionam, no mundo, e outras coisas que não funcionam. Prefiro, obviamente, ficar com as primeiras, e rejeito tolerantemente as segundas, que entendo serem patrocinadas por mentes simples, ignorantes, ou de má-fé. Por exemplo: educação universal, de boa qualidade, aberta a todos os talentos, capacidades e condições sociais, é uma boa coisa em si: populações educadas sempre serão mais prósperas, mais propensas a rejeitar políticos demagogos e tiranos sanguinários (o que nem sempre é o caso, como vimos no triste exemplo do nazismo alemão, mas ele surgiu numa situação de profunda crise social e econômica, de exacerbação dos espíritos, justamente, com maniqueísmos bem implantados por todos os lados). Se essa educação vai ser feita pelas famílias – ou seja, pelos mercados – ou pelo Estado, esse é um bom debate econômico, que aceito com prazer, pois disso depende o futuro da humanidade, e modestamente do Brasil.
As questões certamente não são simples: certos serviços coletivos – água, saneamento, infraestrutura, transportes e segurança – devem ser buscados nos mercados ou fornecidos pelo Estado? Tudo depende de como a sociedade se organiza, e de como os seus agentes privados – indivíduos e empresas – podem ser habilitados e liberados para se exercerem nessas áreas, sob concessão, monopólio, competição aberta? Tudo isso é muito difícil, e não é possível ter respostas prontas – liberais ou estatais – para cada um dos desafios que se apresentam em sociedades complexas, altamente burocratizadas como as nossas. Não tenho a pretensão de ter todas as respostas corretas, ou definitivas, e por isso mesmo costumo repetir: vamos raciocinar juntos, vamos nos munir dos melhores estudos e testes de proficiência, de análises custo-benefício e de simulações de desempenho antes de adotar uma solução de âmbito parcial, de escopo estritamente dirigido ao objeto em questão, e de temporalidade variável (ou seja, podendo ser modificada assim que se modificarem as circunstâncias que determinaram a escolha de uma ou outra solução). Isso é puro pragmatismo, ou apenas racionalidade instrumental, ou seja, adequação entre meios e fins, como todo engenheiro verdadeiro poderia determinar.
O problema tampouco se colocar como sendo o da melhor teoria, ou o do melhor argumento racional que deveria prevalecer. Não existem respostas teóricas a problemas práticos, que tenham a virtude de ganhar um debate apenas porque são superiores em sua racionalidade intrínseca às respostas de menor qualidade que são oferecidas, e implementadas, por quem tem o poder de fazê-lo. Apenas relembrando um famoso debate intelectual – um dos poucos – que ocorreu no Brasil, três gerações atrás: aquele que opôs o intelectual, economista, Eugênio Gudin, liberal, ao industrialista, e também intelectual, Roberto Simonsen, protecionista e estatal-industrializante. Esse debate refletia, de certo modo, aquele que ocorria no mesmo momento entre o economista, e filósofo social, John Maynard Keynes e o filósofo social, e economista, Friedrich Hayek, a propósito das mesmas questões: o que devemos privilegiar, as soluções de mercado, ou os arranjos dos governos.
Quem ganhou o argumento teórico? Certamente Hayek e Gudin, do ponto de vista puramente racional, intelectual. Mas quem ganhou o argumento prático, com “respostas” que foram implementadas pelos governos, foram Keynes e Simonsen. O mundo ficou melhor? Impossível de dar uma resposta simples a essa questão, pois as outras soluções, as liberais, não foram implementadas, e não sabemos, assim, se teriam tido a melhor eficácia resolutiva, a melhor adequação entre meios e fins, a maior dose de prosperidade com a menor cota de sacrifícios pessoais. As liberdades certamente recuaram, mas talvez a maior parte dos indivíduos prefiram a segurança prometida pelos Estados do que a concorrência aberta oferecida pelos mercados. Esses são os dilemas. É isso que eu tento resolver todos os dias. Sempre tentando, sempre refletindo, sempre pensando no que pode ser melhor para todos, na maior extensão possível.
Isso é liberalismo? Provavelmente, mas não no sentido comum da expressão, enquanto doutrina ou conjunto de princípios guardando certa coerência com seus pressupostos básicos e objetivos finalistas. Liberdade a mais completa possível, por certo, com a menor intrusão possível por parte do Estado, que cede precedência aos direitos e liberdades individuais. Estado mínimo, por que não?, já que devemos pagar ao Estado apenas para que ele faça aquilo que não podemos fazer enquanto indivíduos ou a própria sociedade civil, organizada tanto quanto possível diretamente. Mercados livres, certamente, mas de uma forma não dogmática e não fundamentalista, pois no caso de sociedades complexas, as nossas, com muitas assimetrias de informação, alguma regulação estatal pode, ou deve, ser necessária. Tudo isso sempre considerando o que pode ser feito da melhor forma, ao menor custo, o que indica para soluções de mercado mesmo no caso de prestações públicas. Algumas soluções serão provavelmente estatais, por impossibilidade prática de fazer de outra forma. Mas que o seja da forma menos coercitiva possível, com o maior grau de liberdade para todos...
Vale!

Filadélfia, 2851: 2 agosto 2015, 6 p.

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