Uma vida entre dois séculos: um balanço retrospectivo
Paulo Roberto de Almeida
1. Por que um balanço retrospectivo? Por que agora?
Nasci na exata
metade do século 20, quando a Guerra Fria recém deslanchava e quando o
socialismo marxista aparentava possuir brilhantes perspectivas diante de si, forçando,
aliás, comparações humilhantes para com o velho e injusto capitalismo. Era
natural, portanto, que, nas leituras e reflexões juvenis, eu me inclinasse em
favor dessa promessa de um futuro de justiça social, de desenvolvimento
harmônico, de igualdade numa crescente prosperidade. Pouco antes de 1960, Nikita
Kruschev, o líder soviético que sucedeu a Stalin (depois de eliminar
concorrentes), prometia superar o capitalismo em dez anos e construir uma
sociedade comunista acabada até o início dos anos 1980.
Minha crença
nos poderes supostamente redentores do socialismo perdurou até o início dos anos
1970, justamente, quando tive a oportunidade de conhecer, pessoal e
diretamente, o socialismo real, na chamada “cortina de ferro”. Constatei de
imediato a imensa fraude do futuro prometedor do socialismo, um regime já sem
qualquer futuro, sem esperança de mudanças substantivas, com promessas apenas
de mais repressão, de mais penúria material, mais miséria moral. Muitos dos de
minha geração que tinham entretido ilusões semelhantes, fizeram o mesmo tipo de
constatação, por caminhos diversos, mesmo sem ter conhecido o socialismo real: a
maior parte se rendeu às evidências, mas muitos outros continuaram insistindo
nos mitos do passado, contra todas as evidências (mesmo hoje). Data daí minha
verdadeira caminhada intelectual, embora eu já fosse um leitor eclético desde
muito cedo, lendo todos os tipos de obras políticas e históricas, o que aliás nunca
deixei de fazer, ainda hoje, quando percorro invariavelmente todo o espectro da
literatura política: do bom, do mau e do feio.
Pois bem, chegamos
agora ao final do terceiro
lustro do século 21, quando praticamente já não existem mais
socialismos no mundo, à exceção de duas fortalezas stalinistas miseráveis, nas
antípodas do planeta, além de uma fauna variável de órfãos desse sistema inventado,
que nunca entregou o que prometeu (ou que entregou o contrário do que tinha
prometido). Eu nunca me inclui nessa fauna de órfãos – integrada em geral por
ingênuos e ignorantes, mas também por muitas pessoas desonestas, por terem
todas as condições de se render à realidade dos fatos, mas que persistem no engano
coletivo –, embora eu seja honesto o suficiente para reconhecer o poderoso impacto
de algumas das ideias marxistas no ambiente universitário e em minha própria
produção de natureza acadêmica. Quando se é sociólogo de formação, já se é um
pouco marxista, o que me parece inevitável na construção da teoria social e na
determinação econômica de muitos processos sociais.
Mas eu nunca
fui da vertente religiosa do marxismo: ao mesmo tempo em que lia Marx e Lênin, eu
também lia Raymond Aron e Roberto Campos e qualquer outro teórico da sociedade
que tivesse ideias inteligentes a expor. Tendo acumulado, portanto, algumas
décadas de leituras, de reflexões e de viagens ao redor do mundo, por todos os
capitalismos e socialismos existentes, das economias mais avançadas às mais
atrasadas, é chegada a hora de rever o itinerário intelectual percorrido,
detectar algumas constantes e discorrer livremente sobre algumas de minhas
peculiaridades (ou bizarrices).
2. Uma vida de leitor obsessivo, de anotador regular, de escrevinhador
errático
O que mais me
distingue, justamente, no meio século transcorrido desde que me decidi por uma
carreira intelectual, feita basicamente de aulas e de escritos voluntários, é a
variedade e a quantidade da produção de textos acumulados desde meados dos anos
1960, o que me habilita agora a um balanço mais ou menos livre da enorme
quantidade de escritos em diversos gêneros, tanto inéditos quanto publicados. Quem
ousa percorrer minhas listas de trabalhos – todas disponíveis em meu site
pessoal – constataria que os trabalhos ditos originais, ou seja, textos
acabados, aproximam-se de três mil, ao passo que os publicados, em formato
impresso ou digital, já somam mais de 1.200, o que me parece, com 41%, uma boa
marca de aproveitamento dos escritos produzidos. Textos apenas esboçados, ou
semiescritos, notas diversas, projetos de trabalhos, esquemas de futuros
livros, espalhados por dezenas de working
files em meu computador, são em número igualmente impressionante, mas estão
numa bagunça indescritível.
Não é minha
intenção, contudo, oferecer no presente texto mais uma avaliação quantitativa
da produção realizada ao longo do período, ou nos últimos anos. Pretendo, sim,
efetuar um balanço qualitativo desses escritos, com foco mais em seus méritos
próprios do que propriamente em seu autor. Livros e artigos publicados devem
ser julgados e avaliados pelo que eles representam de substantivo,
independentemente de quem seja seu autor, como aliás recomendava Machado de
Assis em relação ao trabalho analítico do crítico literário. Com efeito, o patrono
da literatura brasileira dizia que, na avaliação de uma obra, o crítico deveria
esquecer, e até mesmo varrer para debaixo do tapete, o autor da obra, ignorar
sua existência, e se concentrar exclusivamente na obra em si, sem outras
considerações do que o mérito próprio da escrita, suas qualidades (ou falta
de), o estilo e a elegância dos argumentos e situações, o caráter dos
personagens, enfim, a obra tal qual exposta, em sua natureza e essência puramente
literárias.
No meu caso, entretanto,
os textos produzidos ao longo desse meio século, em especial os do período
recente, estão inextricavelmente ligados à natureza de minhas duas “profissões”,
de um lado a carreira diplomática, que constitui a minha ocupação principal desde
o final dos anos 1970, de outro as atividades acadêmicas, que exerci de modo
regular (por vezes intermitente, em função da carreira justamente) por um
período bem mais longo do que esse, praticamente desde sempre. Sobretudo nos
últimos vinte e cinco anos, os escritos se concentraram nos temas mais
frequentes de minhas tarefas diplomáticas e das aulas e pesquisas na vertente
acadêmica: as relações econômicas internacionais, com destaque para a
diplomacia econômica brasileira, e as políticas públicas em geral, com ênfase
nas políticas macroeconômicas e setoriais no Brasil.
Assim, as eventuais
qualidades (ou falta de) desses textos, a coerência (ou não) das ideias
defendidas, a pertinência dos argumentos em relação à materialidade dos fatos
tratados, sua adequação aos objetos descritos (quais sejam, as políticas dos
governos, as posturas diplomáticas, o sucesso ou insucesso relativo de trajetórias
de desenvolvimento, etc.), tudo isso se explica, provavelmente, pela
personalidade do autor e sua posição especial, talvez bizarra, certamente
diferente, no chamado establishment diplomático brasileiro. O que é esse
“establishment diplomático”?
Trata-se de
uma corporação estatal dotada de bons quadros governamentais, bem formados em
função do background familiar e de estudos de qualidade, depois treinados e
socializados na academia diplomática, mas que nem sempre dispõe de suficiente
experiência na vida prática – ou seja, a das empresas privadas, a dos reais
criadores de riqueza social – para construir um discurso diplomático adequado
às necessidades do país. Por este simples enunciado percebe-se claramente minha
postura crítica em face de minha própria corporação, uma vez que, ao mesmo
tempo em que defendo as posturas diplomáticas oficiais, tendo a manter uma
visão essencialmente crítica com respeito a essas posições, sempre buscando fazer
uma espécie de anatomia da carreira.
O fato de que
o Brasil seja um país de sucesso apenas relativo no seu processo de
industrialização, de construção de uma base respeitável no tocante às suas
forças produtivas – o que certamente se deve à sua classe empresarial, agrícola
ou industrial, grande parte dela formada por imigrantes – mas que ele também
seja um país de claro insucesso na construção de uma sociedade menos desigual,
excessivamente marcado pela corrupção, por outros aspectos de uma
institucionalidade falha (o que me parece evidente), essa contradição se deve
certamente, mais do que a obstáculos técnicos ou materiais, à baixa qualidade
de sua democracia, o que revela uma espécie de falência de suas elites
dirigentes, que certamente incluem, pelo menos em parte, os diplomatas.
Que seja
exatamente um diplomata a reconhecer esse insucesso relativo do Brasil abre a
questão de saber quem é esse diplomata, o que fez na vida, antes de tornar-se
diplomata, e o que ele sobretudo fez depois de se tornar diplomata (talvez por
acidente). Para tornar este balanço retrospectivo um pouco mais destacado de
certo subjetivismo inerente a este gênero de depoimento, conviria talvez falar
do personagem como sendo uma terceira pessoa, esperando com isto separar o que
sou hoje do itinerário percorrido desde o início de minhas aventuras
intelectuais, que se estendem, justamente, de um século a outro, período no
qual minha trajetória de vida e o acumular de escritos diversos se confundem
com as transformações ocorridas no sistema internacional e no próprio Brasil. Como
diria Ortega y Gasset, um homem não pode ser visto separado de suas
circunstâncias, e são estas que passo a expor agora, da maneira mais livre
possível.
3. No começo, o marxismo e o socialismo, rapidamente revistos
Vindo do
caldeirão do marxismo universitário do final dos anos 1960, quando o Brasil
vivia o início dos anos de chumbo da ditadura militar, o futuro diplomata – que
sequer sonhava com a carreira nessa época, pensando apenas perseguir uma
carreira acadêmica, depois de terminar de expulsar os militares do poder, como
tantos outros jovens idealistas – teve a boa sorte, e a reflexão preventiva, de
não ser preso, como tantos outros colegas de sua geração, embarcados na
aventura da oposição armada ao regime. Escolheu auto-exilar-se na Europa, onde
buscou o das real existierenden
Sozialismus, não por que apreciasse sobremaneira a gerontocracia
esclerosada do neoestalinismo soviético, mas porque achava que encontraria ali
– mais exatamente na Universidade 17 de Novembro, de Praga, a instituição que
acolhia os estudantes do Terceiro Mundo – facilidades para continuar os estudos
de Ciências Sociais que havia iniciado, e abandonado logo no segundo ano, na
venerável Fefelech, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, então ainda repleta de “founding fathers” da chamada
“escola paulista de sociologia” (que seriam cassados logo em seguida pelo
regime militar). Ao me ver desprovido dos professores cujas obras eu já
conhecia em grande medida por leituras antecipadas, e ao visualizar os perigos
de uma possível captura pela máquina de repressão do regime, preferi o
autoexílio, que imaginava ser de duração relativamente curta. Não foi
exatamente o caso.
A curta estada
– de apenas três meses – no socialismo real, acompanhada da leitura de Kafka e
de alguns outros livros sugestivos para a ocasião, convenceu-o, se não
definitivamente, pelo menos fortemente, que aquele não era, certamente, o
regime que queria para o Brasil. A migração do socialismo surreal para o
capitalismo ideal – na Bélgica, mas com incursões em todas as outras
democracias da Europa ocidental, amainou o seu leninismo mais prático do que
teórico, e o convenceu de que a social democracia era talvez um modelo
apropriado para se tentar na terra natal.
Tem início
então um longo período de estudos solitários e de reflexões críticas sobre
todos os modelos possíveis e factíveis de desenvolvimento econômico e social, com
estadas prolongadas em bibliotecas universitárias, apenas entrecortadas por
viagens a cada ocasião aberta à sua curiosidade intelectual. Sete anos se
passaram nesse trabalho de construção de uma Weltanschauung, uma visão do mundo própria, que se alimentava não
apenas das leituras de livros, dos debates teóricas nas academias, mas
sobretudo de uma reflexão derivada de um contato direto com as mais diversas
realidades. Cadernos e mais cadernos de notas resultaram de tais reflexões, além
de um três dissertações acadêmicas, entre elas uma tese de doutorado deixada
temporariamente interrompida.
4. Da academia para a diplomacia, com um pé atrás...
A volta ao
Brasil, quase sete anos depois, assistiu à surpresa da troca inesperada da
perspectiva acadêmica pela carreira de servidor do Estado (que eu combatia,
ainda) na área diplomática, provavelmente a mais intelectualizada de toda a
burocracia federal. Foi um impulso, mas também uma maneira de desligar-se dos
vínculos antigos, na cidade de origem, e de testar a ficha policial (mais
propriamente política) em face de um aparato de segurança que ainda era dominado
pela paranoia do comunismo e da subversão. Os primeiros anos na vida
diplomática ainda viram o recém servidor do Estado no Serviço Exterior assinar
diversos artigos de política e de análise de conjuntura com o mesmo “nom de
plume” que tinha usado durante seu período de autoexílio, um cuidado apenas
elementar em vista da resistência dos bolsões da ultradireita militar aos
ensaios de abertura e de distensão política do regime ditatorial.
A volta à
democracia, no Brasil, em 1985, coincidiu com um primeiro retorno dos dois
postos inaugurais no exterior, período que foi aproveitado para concluir um doutoramento
que tinha ficado interrompido quando da volta ao Brasil, ainda sob o regime
militar. A nova condição de “doutor em Ciências Sociais” o habilitou a
tornar-se professor da academia diplomática, o prestigioso Instituto Rio
Branco, e do mestrado em sociologia da Universidade de Brasília. Tem início aí
uma fecunda, prolífica, certamente abundante produção intelectual, nos mais
diversos campos da sociologia política, da economia do desenvolvimento, e das
relações internacionais, que não mais se interromperia desde então, resultando
na elaboração cumulativa de centenas de artigos, duas dezenas de livros, e de
várias dezenas de capítulos em livros editados no Brasil ou no exterior. Poucos
diplomatas, se algum, conseguem equiparar-se, pelo menos em termos de volume, à
produção publicada – ainda maior computando-se os inéditos e os working files – por esse Stakhanov da
pena, ou melhor, do computador.
O mais
interessante, porém, quando se pensa na independência da escrita, na liberdade
de expressão, na autonomia da palavra, e na postura crítica em face das
questões de trabalho, é que nada na produção publicada desse escritor
compulsivo traz a marca habitual da chamada “langue de bois”, o diplomatês
insosso da maior parte dos textos de chancelaria, a postura “chapa branca” dos
argumentos defendidos, a adesão a posições oficiais ou a políticas
governamentais, de qualquer espécie, época ou partido. Jamais se poderia
acusa-lo de dobrar-se às conveniências do estilo diplomático, cheio de palavras
elegantes que representam um esforço elegante para circular em torno do nada,
senão a propósito da cooperação, do diálogo, da construção de pontes para
contemplar mútuos objetivos e interesses recíprocos, tudo em prol do
desenvolvimento e da prosperidade dos povos respectivos, enfim, essas
platitudes aborrecidas que costumam enfeitar os discursos de chancelaria. Nada,
nem um traço dessas baboseiras conceituais, que parecem constituir o ganha-pão
dos escrevinhadores oficiais da diplomacia.
Não que o
nosso diplomata acidental, eclético à sua maneira, tenha deixado de também produzir
textos propriamente oficiais, o que seria praticamente impossível. No curso da
carreira, além dos incontáveis telegramas e memorados – com sua linguagem
técnica, especializada, contida pela necessária concisão a que se deve atender
nos processos decisórios, restrita ao tratamento objetivo dos assuntos em pauta
– é preciso também fazer discursos e artigos para os graduados, os barões da
Casa. Nessa atividade de ghost-writer,
muitos se perdem nos floreios góticos e nas filigranas jurídicas, naquele
estilo pomposo que faria a distinção de acadêmicos da periferia, com todo
respeito por nossos irmãos “periféricos”. Nunca foi o caso deste personagem, e
talvez alguns de seus textos elevados à consideração superior, tenham sofrido
cortes num ou noutro gabinete, talvez para podar as sociologices, ou,
justamente, para corrigir a linguagem não diplomática, ou insuficientemente
burocrática. Aliás, também foram preservados alguns registros de censura a seus
próprios textos destinados a publicação, trechos cortados aqui e ali por algum secretário
zeloso dos gabinetes, preocupado com observações realistas e sinceras que
costumam percorrer os argumentos alinhados.
No Itamaraty
desses tempos de discursos finamente costurados, e de exposição de diplomatas
aos grandes órgãos da imprensa, sobretudo no Rio de Janeiro, costumava-se dizer
que “você só assina artigos quando não mais os escreve”; ou seja, aos nègres da carreira, aos secretários com
bom manejo da pena se atribuía o encargo de redigir as peças literárias ou os
discursos diplomáticos que depois passavam a figurar sob o nome e a
responsabilidade do chanceler ou de algum barão da Casa. Não era o caso do
diplomata em causa: não apenas assinava o que tinha escrito, como também tinha
a surpresa de ver cortados ou mudados determinados parágrafos de seus textos
antes de sua publicação. Foi o que ocorreu, por exemplo, com seu primeiro livro
sobre o Mercosul, podado em parte por conter algumas considerações não
politicamente corretas sobre o ingresso do Paraguai no bloco comercial. Mas
isso é pouco relevante numa trajetória feita de muitos outros escritos ainda
mais polêmicos, a ponto de o diplomata ter de recorrer, em mais de uma ocasião
e em plena “democracia”, a novos “noms de plume” e a outros subterfúgios do
gênero, para escapar de uma censura não menos real por ser mais disfarçada, ou
discreta do que aquela grosseira e paranoica do regime militar. O expediente se
repetiria, com frequência ainda maior, durante o reinado dos companheiros,
quando o “pensamento único” se abateu não só sobre o Itamaraty, mas igualmente
sobre todas as demais agências do Estado. Mas este é um episódio bem mais recente,
e ainda não encerrado de todo, para ser avaliado com o distanciamento necessário
a uma reflexão ponderada sobre as ironias políticas da vida pública.
5. A preservação da independência intelectual na burocracia estatal
Uma das
grandes etapas da carreira do personagem em questão, das mais gratificantes no
plano intelectual, ocorreu em Washington, a capital da maior biblioteca pública
do planeta – e possivelmente da galáxia – a Library of Congress, capaz de
contentar qualquer pesquisador sobre qualquer assunto humanamente concebível.
Na Library of Congress nosso diplomata pode encontrar todos os livros de que
tinha ouvido falar alguma vez na vida e que nunca tinha tido o prazer de
encontrar antes. Como por exemplo, este aqui: Quatro
regras de diplomacia (Lisboa: Livraria Ferreira, 1881),
escrito por um diplomata monárquico português da segunda metade do século 19,
Frederico Francisco de la Figanière, que expunha quatro regras simples do
trabalho diplomático, quais sejam, nominalmente: 1) agradar; 2) ser leal; 3) antepor a palavra à pena; e 4) ter
concisão e ordem no redigir (muito útil esta última). O livrinho, anacrônico
como se imagina, com sua linguagem empolada, permitiu a confecção de um texto
alternativo bem mais heterodoxo, as “dez regras modernas de diplomacia” (http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/800RegrasDiplom.html) que se
converteram em um sucesso imediato entre os candidatos à carreira, a despeito
de oferecer uma visão da carreira e do trabalho diplomático em muitos aspectos
numa linha contrária, e até oposta, ao que se espera de um diplomata conformado
e obediente.
Este é, em
qualquer hipótese, o espírito iconoclasta, desafiador e até provocador, que
marcam a maior parte dos escritos desse diplomata não convencional, numa Casa
que costuma afirmar que a sua melhor tradição é saber renovar-se com
continuidade, mas que exibe, mais exatamente, certos traços mais encontráveis
nos ambientes militares e no inner
sanctum do Vaticano: a hierarquia e a disciplina. Nosso diplomata não
respeita nem a hierarquia, nem se pauta pela disciplina, sempre quando o que
está em jogo é, não o cumprimento de instruções de chancelaria – o que convém
acatar e seguir, por mais que se discorde delas –, mas a formulação tentativa
do processo decisório, quando o que se espera não é exatamente a subserviência
às posições superiores, mas o exercício da inteligência, o manejo da
fundamentação empírica, a argumentação racional em torno da adequação entre
meios e fins, mais do que o acatamento servil de alguma opinião mais elevada na
hierarquia.
Como ele
próprio costuma dizer: “não deixo o cérebro em casa quando vou trabalhar, nem o
deposito na portaria no momento de adentrar nos locais de trabalho”. Dito:
cérebros ativos são feitos para pensar, e não para se conformar com o conforto
das posições estabelecidas, aquilo que Flaubert chamava de “platitude des idées
reçues”, ou seja, o senso comum, geralmente torto, daqueles que se recusam a
usar a inteligência e que se contentam em reproduzir aquilo que recebem já
pronto. Assim é que o diplomata em questão nunca deixou de levantar o dedinho
cada vez que uma proposta mal pensada, mas elaborada e mal sustentada vinha
servir de base para instruções que lhe pareciam contrárias ao interesse nacional
(sim, tão difícil de ser definido quando as preferências em matéria de times de
futebol ou opções gastronômicas).
O tal de
“interesse nacional” é muitas vezes concebido simplesmente em termos de
patriotismo rastaquera ou nacionalismo rústico, duas “bêtes noires” que o nosso
diplomata nunca deixou de combater, pelo simplismo evidente, pelas
inconsistências lógicas, pela simples falta de eficácia na vida prática. Diplomatas
acidentais servem para isso mesmo: contestar “idées reçues”, inovar
conceitualmente, desafiar posições arraigadas, sob risco de se chocar com as
verdades reveladas, os maus hábitos do passado, o conforto da inércia e a não
disposição em pensar, coisas que nosso diplomata abomina num grau apenas inferior
à desonestidade intelectual e a ignorância ilustrada (que é diferente da
ignorância ingênua daqueles que não deram estudar e se informar).
6. Um contrarianista numa Casa conformista
Estas são,
resumindo, as linhas mestras do pensamento e das atitudes do diplomata
acidental, uma mistura de Dom Quixote da pena e daquele personagem do
cartunista francês Sempé, o homenzinho solitário que está sempre no movimento
inverso ao das grandes manifestações de opinião, indo a contrário senso do que
se espera dos integrantes da manada. A despeito do custo pessoal, e funcional,
dessas tomadas de posição a contrario
senso da maior parte da burocracia diplomática, nosso diplomata não se
arrepende, em nenhum momento, de defender ideias próprias, e de ousar expressar
publicamente suas opiniões, mesmo quando isso pode ocasionar algum “desajuste
administrativo”, ou mesmo um corte nas perspectivas de carreira. Mais
importante do que ser passivo, ou conformista, é obter satisfação em dizer tudo
o que se pensa, assumir plena responsabilidade por tudo o que se escreve e
publica, ao defender certas ideias que
não estão em conformidade com o espírito da época, o chamado Zeitgeist (que, na maior parte das vezes,
é apenas a expressão beócia de servilismo funcional).
Olhando em retrospecto,
Raymond Aron, na França, Roberto Campos no Brasil, tantos dissidentes no
ambiente soviético e muitos outros destoantes em vários regimes, também se
sentiram isolados em determinadas épocas, alguns nem mesmo tendo o prazer de
ver suas posições confirmadas e legitimadas pouco mais adiante, no itinerário
sempre torto da História. O próprio dos homens livres é exercer o livre
arbítrio, pensar com sua própria cabeça, usando a lógica, velando pela plena
adesão de seus argumentos aos dados da realidade, e ousar sustentar suas ideias
mesmo num ambiente hostil ou conformista. Esta satisfação compensa quaisquer désagrements temporários ou ocasionais. Vale
!
Paulo Roberto de Almeida
Hartford,
22 de setembro de 2015; Anápolis, 26 de dezembro de 2015
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