Paulo Roberto de Almeida
Quem deu o golpe, e contra quem?
RESUMO Para o autor, decisão da Câmara a favor do processo de impeachment da presidente Dilma ameaça a democracia. Em texto que retoma ideias já expostas aqui e em seu livro mais recente, diz que esta crise, como outras, contou com a manipulação, mediada pela imprensa, da classe média pela "elite de dinheiro".
*
O golpe foi contra a democracia como princípio de organização da vida
social. Esse foi um golpe comandado pela ínfima elite do dinheiro que
nos domina sem ruptura importante desde nosso passado escravocrata.
O ponto de inflexão da história recente do Brasil contra a herança escravocrata foi a revolução comandada por contraelites subordinadas que se uniram em 1930.
A visão pessoal de Getúlio Vargas transformou o que poderia ter sido um mero conflito interno de elites em disputa em uma possibilidade de reinvenção nacional.
O sonho era a transformação do Brasil em potência industrial com forte mercado interno e classe trabalhadora protegida, com capacidade de consumo. Nossa elite do dinheiro jamais sequer "compreendeu" esse sonho, posto que "afetivamente" nunca sentiu compromisso com os destinos do país.
Desde então o Brasil é palco de uma disputa entre esses dois projetos: o sonho de um país grande e pujante para a maioria; e a realidade de uma elite da rapina que quer drenar o trabalho de todos e saquear as riquezas do país para o bolso de meia dúzia.
A elite do dinheiro manda pelo simples fato de poder "comprar" todas as outras elites.
É essa elite, cujo símbolo maior é a bela avenida Paulista, que compra a elite intelectual de modo a construir, com o prestígio da ciência, a lorota da corrupção apenas do Estado, tornando invisível a corrupção legal e ilegal do mercado que ela domina; que compra a política via financiamento privado de eleições; e que compra a imprensa e as redes de TV, cujos próprios donos fazem parte da mesma elite da rapina.
De acordo com a conjuntura histórica, sempre que o Executivo está nas mãos do inimigo, imprensa e Congresso, comprados pelo dinheiro, se aliam a um quarto elemento que é o que suja as mãos de fato no golpe: as Forças Armadas antes, e o complexo jurídico-policial do Estado hoje em dia.
A história do Brasil desde 1930 é um movimento pendular entre esses dois polos. Getúlio caiu, como o desafeto histórico maior desta elite, por um conluio entre Congresso comprado, imprensa manipuladora e Forças Armadas que se imaginavam pairar acima dos conflitos sociais.
O suicídio do presidente adia em dez anos o golpe formal, que acontece em 1964 pela mesma articulação de interesses. O curioso, no entanto, é que dentro das Forças Armadas existia a mesma polarização que existia na sociedade.
INFRAESTRUTURA
O nacionalismo autoritário das Forças Armadas articula, por meio do 2º PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) do presidente Geisel, uma versão ambiciosa do sonho getulista: investimento maciço em infraestrutura e setores-chave da vanguarda tecnológica com a disseminação de universidades e centros de pesquisa em todo o país.
Ainda que o capital privado fosse muito bem-vindo, a condução do projeto de longo prazo era do Estado. Foi o bastante para que os jornais se lançassem em uma batalha ideológica contra a "república socialista do Brasil" e os empresários descobrissem, de uma hora para outra, sua inabalável "vocação democrática".
O processo de redemocratização comandado pela elite do dinheiro tem tal pano de fundo. As Diretas-Já, na verdade, espelham a volta da rapina de curto prazo e uma nova derrota do sonho de um "Brasil grande".
Aqui já poderia ter ocorrido a conscientização de que a rapina selvagem é o fio condutor, e que a forma autoritária ou democrática que ela assume é mera conveniência. Mas o processo de aprendizado foi abortado. O público ficou sem saber por que o golpe tinha ocorrido e, depois, por que ele havia sido criticado. Criou-se uma anistia do "esquecimento" no mesmo sentido da queima dos papéis da escravidão por Rui Barbosa: para que jamais saibamos quem somos e a quem obedecemos.
Com o governo FHC, essa elite da rapina de curto prazo se insere, enfim, não apenas no mercado mas também, com todas as mãos, no Estado e no Executivo.
A festa da privatização para o bolso da meia dúzia de sempre, da riqueza acumulada pela sociedade durante gerações, se deu a céu aberto. A maior eficiência dos serviços, prometida à sociedade e alardeada pela imprensa, sempre solícita e sócia de todo saque, se deixa esperar até hoje.
Como uma imprensa a serviço do saque e do dinheiro não pode fazer todo mundo de tolo durante todo o tempo, e como ainda existem sonhos que o dinheiro não pode comprar, o Executivo mudou de mãos em 2002.
O novo governo tentou o mesmo projeto desenvolvimentista anterior, de apoio à indústria e à inteligência nacional. Mas seu crime maior foi a ascensão dos setores populares via, antes de tudo, a valorização real do salário mínimo.
Os mais pobres passaram a ocupar espaços antes exclusivos às classes do privilégio.
Parte da classe média sofria profundo incômodo diante dessa nova proximidade em shopping centers e aeroportos, mas "pegava mal" expressar o descontentamento em público. Pior, a classe média temia que essa classe ascendente pudesse vir a disputar os seus privilégios e os seus empregos.
O discurso da "corrupção seletiva" manipulado pela mídia permite que se enfrente agora o medo mais mesquinho com um discurso moralizador e uma atitude de pretenso "campeão da moralidade". O que antes se dizia a boca pequena entre amigos agora pode ser dito com a camisa do Brasil e empunhando a bandeira nacional. Está criada a "base popular", produto da mídia servil à elite da rapina.
A luta contra os juros desencadeada pela presidente Dilma em 2012 reedita a eterna crença da esquerda nacionalista brasileira na existência de uma "boa burguesia", ou seja, a fração industrial supostamente interessada em um projeto de longo prazo de fortalecimento do mercado interno.
Mas todas as frações da elite já mamam na mesma teta dos juros altos que permite transferir recursos de todas as classes para o bolso dos endinheirados de modo invisível, funcionando como uma "taxa" que encarece todos os preços e transfere parte de tudo o que é produzido para os rentistas –inclusive da classe média feita de tola pela imprensa comprada.
Quando em abril de 2013 as taxas de juros voltam a subir, a elite está armada e unida contra a presidente. As "jornadas de junho" daquele ano vêm bem a calhar e, por força de bem urdida campanha midiática, transformam protestos localizados em uma recém-formada coalizão entre a elite endinheirada e a classe média "campeã da moralidade e da decência" contra o projeto inclusivo e desenvolvimentista da esquerda.
Como os votos dos pobres recém-incluídos são mais numerosos, no entanto, perde-se a campanha de 2014. Mas a aliança entre endinheirados e moralistas de ocasião se mantém e se fortalece com um novo aliado: o aparato jurídico-policial do Estado.
Construído pela Constituição de 1988 para funcionar como controle recíproco das atividades investigativas e jurisdicionais, todo esse aparato passa por mudanças expressivas desde então. Altos salários e demanda crescente por privilégios de todo tipo associados ao "sentimento de casta" que os concursos dirigidos aos filhos das classes do privilégio ensejam transformam esses aparelhos que tudo controlam, mas não são controlados por ninguém, em verdadeiros "partidos corporativos" lutando por interesses próprios dentro do aparelho de Estado.
A manipulação da "corrupção seletiva" pela imprensa é o discurso ideal para travestir, também aqui, os mais mesquinhos interesses corporativos em suposto "bem comum". O troféu de "campeão da moralidade pública" passa a ser disputado por todas as corporações e se estabelece um conluio entre elas e a imprensa, que os vazamentos seletivos cuidadosamente orquestrados comprovam tão bem.
Esse é o elemento novo do velho golpe surrado de sempre. Ainda que o golpe tenha se dado no circo do Congresso em uma palhaçada denunciada por toda a imprensa internacional, sem o trabalho prévio dos justiceiros da "justiça seletiva" ele não teria acontecido.
O Estado policial a cargo da "casta jurídica" já está sendo testado há meses e deve assumir o papel de perseguir, com base na mesma "seletividade midiática", o princípio: para os inimigos a lei, e para os amigos a "grande pizza".
A "pizza" para os amigos já está em todos os jornais e acontece à luz do dia. O acirramento da criminalização da esquerda é o próximo passo. Esse é o maior perigo. Muita injustiça será cometida em nome da Justiça.
Mas existe também a oportunidade. Nem toda classe média é o aprendiz de fascista que transforma seu medo irracional em ódio contra os mais fracos, travestindo-o de "coragem cívica".
Ainda que nossa classe média esteja longe de ser refletida e inteligente como ela se imagina, quem quer que tenha escapado do bombardeio diário de veneno midiático com dois neurônios intactos não deixará de estranhar o mundo que ajudou a criar: um mundo comandado por um sindicato de ladrões na política, uma justiça de "justiceiros" que os protege, uma elite de vampiros e uma sociedade condenada à miséria material e à pobreza espiritual. Esse golpe precisa ser compreendido por todos. Ele é o espelho do que nos tornamos.
JESSÉ SOUZA, 56, autor de "A Tolice da Inteligência Brasileira"
(Leya), presidente do Ipea, é professor titular de ciência política da
UFF e foi professor convidado na Universidade de Bremen.
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A objetividade contra o discurso sectário
RESUMO Em resposta a texto de Jessé Souza publicado neste caderno
no último domingo (24/4), o autor discorda da tese de que o impeachment
da presidente Dilma Rousseff seja golpe da elite em resposta à ascensão
dos pobres. O embate político brasileiro seria, na verdade, entre dois
diferentes projetos para o desenvolvimento.
Agora as circunstâncias mudaram. Temos um governo a serviço do partido, que já abandonou qualquer projeto de ajuste e que se mostra incapaz de governar. Enquanto isso, a economia não dá sinais de melhora, e o desemprego já passa dos 10%; não podemos nos dar ao luxo de esperar mais três anos. Nessa conjuntura, defender o governo com unhas e dentes não é tarefa fácil. Não faltam, contudo, intelectuais dispostos a fazê-lo, com variável grau de seriedade.
Em "Quem deu o golpe, e contra quem?" (Ilustríssima, 24/4), Jessé Souza apresenta uma leitura de nossa história amplamente guarnecida de adjetivos e juízos de valor, mas desprovida de fatos. Faz acusações sem prova e rebaixa a discussão, tudo para proteger um projeto de poder particularmente criminoso, cuja incompetência tem destruído o sonho de milhões de brasileiros.
Para Souza, nossa história é dominada por uma "elite de rapina" que sabota qualquer esforço mais generoso de promover a ascensão social do restante do país, como supostamente era o objetivo do PT e de Dilma. Não só o golpe de 64, mas também as Diretas-Já e os protestos de 2013 foram ardis da elite malvada contra as classes trabalhadoras.
Nos raros momentos em que não está atribuindo finalidades escusas a seus desafetos e interpretando a linha do tempo seletiva e minguada que ele mesmo constrói, Souza comete inverdades flagrantes, como a afirmação de que a imprensa internacional tem "denunciado" o processo de impeachment como golpe.
Uma rápida pesquisa revela que nenhum jornal importante o fez. Aliás, publicações de peso como "Le Monde", "The Economist" e "Washington Post" rejeitaram explicitamente a tese do golpe em seus editoriais. Tal tese existe apenas entre nossa elite cultural engajada.
ALIANÇAS
Para manter a narrativa moralista em nível quase de caricatura, ele ignora por completo as complexidades de alianças políticas que, se lembradas, refutam sua leitura. A "av. Paulista", símbolo máximo das forças do mal, era, até pouco tempo atrás, aliada de Dilma. Basta lembrar que a Fiesp elogiou a redução tarifária da eletricidade e as isenções e desonerações de setores e empresas.
O subsídio do BNDES a grandes corporações, conhecido como "bolsa empresário" (que supera em valor o Bolsa Família), fez a alegria do alto empresariado brasileiro. O setor bancário lucrou como nunca, e sua atitude oscilava entre o apoio explícito e o silêncio omisso. A mudança de trajetória dos juros, ademais, foi consequência direta da piora de nossos fundamentos econômicos, causados por esse mesmo governo.
A afirmação de que o que move o impeachment é o ódio contra a ascensão econômica dos pobres não resiste à mais simples constatação: a luta para derrubar o governo só tomou fôlego a partir de 2015, justamente quando o desemprego passa a subir rapidamente e a inflação corrói a renda dos mais pobres. Naquela época dourada em que o PT podia se gabar de que pobre andava de avião, não havia nenhum movimento minimamente forte que defendesse o impeachment.
Para completar, Souza omite e relativiza os crimes e a corrupção. O petrolão, maior esquema de corrupção da história do Brasil, nem é mencionado. Cabe dizer que ele não é uma consequência inevitável do capitalismo –mesmo porque países muito mais capitalistas que o Brasil não têm a mesma corrupção que nós–, e sim fruto de um projeto de captura do Estado que viola as regras mais elementares de nosso sistema. O mesmo vale para a fraude fiscal cometida pelo governo Dilma e que dá a base legal do impeachment.
Apesar do viés, o artigo nos leva a considerar horizontes mais amplos. Para além da grave ilegalidade cometida pelo governo Dilma ao fraudar as contas para esconder o rombo fiscal, é possível buscar uma narrativa maior por trás do impeachment –o embate de forças históricas que disputam os rumos do Brasil. Não vejo, contudo, a luta maniqueísta entre espíritos generosos, de um lado e aves de rapina, do outro.
O real embate de nossa política é entre a busca do desenvolvimento em algum atalho facilmente trilhado pela canetada política e pelo gasto irresponsável –os crentes no poder mágico do Estado–, e a crença de que o importante é ter um sistema funcional e sustentável para promover o desenvolvimento de longo prazo.
PÉS PELAS MÃOS
Intenções boas e más existem em todos os lados. Elas em nada alteram os resultados práticos de diferentes políticas. Saído de uma ditadura estatizante, burocrática e autoritária, o Brasil meteu os pés pelas mãos repetidamente. Inflação, desemprego e uma "década perdida" foram os resultados de governos supostamente preocupados com o desenvolvimento.
A discussão séria de políticas públicas prescinde da avaliação moral dos participantes. Suponhamos que a política monetária dos anos 1980 estivesse de fato munida das melhores e mais generosas intenções ao atribuir ao Banco Central a missão de financiar o desenvolvimento do Brasil. Funcionou? Não. Apenas gerou a hiperinflação que só seria vencida com o Plano Real. Foi somente no governo FHC que, contrapondo-se à demagogia populista de curto prazo, se conseguiu o equilíbrio fiscal e a estabilidade monetária que permitiram ao país crescer. O primeiro mandato de Lula manteve essas conquistas e trouxe um importante foco em políticas de transferência de renda para a base da pirâmide.
O que poderia ser um novo caminho para um Brasil mais sério, contudo, foi abortado pelo projeto de poder do Partido dos Trabalhadores. A partir de 2006, machucado pelo mensalão, o governo fez o que se chamou na época de uma "inflexão desenvolvimentista", e voltamos aos velhos vícios.
As obras vistosas do PAC, a miragem do pré-sal, a aposta na expansão do crédito ao consumo, a política de campeões nacionais, o controle de preços, a piora de nossa dívida pública, as aventuras geopolíticas. Se foram mesmo reflexos de boas intenções eu não sei, o fato é que nos lançaram no que já é uma nova década perdida. Década que foi antecedida por muitas oportunidades perdidas.
O Brasil surfou a onda internacional favorável, quando nossas exportações valiam muito, e não fez nenhuma reforma significativa: nosso Estado não investiu em nossos gargalos e criou dificuldades para o investimento privado; nada se fez pela educação básica; nossa arcaica legislação trabalhista (que mantém 40% da mão de obra na informalidade) ficou intocada; a bomba-relógio da Previdência foi empurrada para o futuro incerto; nossos impostos continuaram superiores aos de países com a mesma renda per capita, sem falar de nossa complexidade tributária, que é recordista mundial inconteste.
Em suma, apostamos na demanda sem nada fazer para resolver as limitações de nossa oferta. O desenvolvimento ilusório deu lugar à recessão.
E agora, quando o Brasil precisa encontrar saídas, ficamos presos à polarização crescente. O terrorismo eleitoral governista impediu qualquer debate nos anos decisivos de 2010 e 2014. Perdeu-se de vista qualquer ideia de projeto para o Brasil.
É o retumbante fracasso teórico e prático do projeto governista que cria a necessidade da demonização de propostas alternativas. O resultado é o empobrecimento do debate público e a entronização de um discurso altamente moralista que, como sempre acontece, serve para justificar práticas corruptas.
Quais países na América Latina e na África têm tido mais sucesso? Os que criam instituições sólidas e regras claras, com equilíbrio fiscal, respeito à propriedade e facilidade de empreender e investir, ou os que, em nome de algum ideal, gastam o que não têm e criam entraves ao trabalho e ao lucro?
Essa escolha determinará nosso futuro, para o nosso bem, ela deve ser discutida sem partir do pressuposto de que o lado contrário é mau por natureza.
Uma política séria, madura e democrática (que aceita e respeita a existência de uma oposição) não demoniza adversários, discute soluções. Essa evolução –que é também institucional– tem sido combatida ferozmente pelo governo e por sua tropa de choque intelectual. Felizmente, ninguém mais acredita no discurso oficial.
O governo responsável por lançar 3 milhões de famílias da classe C para a classe D segue dizendo que governa para os pobres. Resta à oposição ter a grandeza e a maturidade que a gestão do PT não teve. Onde vigora o espírito sectário, devemos cultivar a objetividade. Ou então reeditaremos o fracasso petista em uma versão verde e amarela.
*
Em outras ocasiões, defendi nesta Folha que o impeachment não era
ilegítimo (ou seja, não é golpe) mas que tampouco era desejável. O
governo Dilma se emendaria, seguiria contrito e bem ou mal faria o
ajuste fiscal necessário; o governo estaria bastante desgastado, e o
projeto fracassado do PT seria rechaçado nas urnas em 2018.
Agora as circunstâncias mudaram. Temos um governo a serviço do partido, que já abandonou qualquer projeto de ajuste e que se mostra incapaz de governar. Enquanto isso, a economia não dá sinais de melhora, e o desemprego já passa dos 10%; não podemos nos dar ao luxo de esperar mais três anos. Nessa conjuntura, defender o governo com unhas e dentes não é tarefa fácil. Não faltam, contudo, intelectuais dispostos a fazê-lo, com variável grau de seriedade.
Em "Quem deu o golpe, e contra quem?" (Ilustríssima, 24/4), Jessé Souza apresenta uma leitura de nossa história amplamente guarnecida de adjetivos e juízos de valor, mas desprovida de fatos. Faz acusações sem prova e rebaixa a discussão, tudo para proteger um projeto de poder particularmente criminoso, cuja incompetência tem destruído o sonho de milhões de brasileiros.
Para Souza, nossa história é dominada por uma "elite de rapina" que sabota qualquer esforço mais generoso de promover a ascensão social do restante do país, como supostamente era o objetivo do PT e de Dilma. Não só o golpe de 64, mas também as Diretas-Já e os protestos de 2013 foram ardis da elite malvada contra as classes trabalhadoras.
Nos raros momentos em que não está atribuindo finalidades escusas a seus desafetos e interpretando a linha do tempo seletiva e minguada que ele mesmo constrói, Souza comete inverdades flagrantes, como a afirmação de que a imprensa internacional tem "denunciado" o processo de impeachment como golpe.
Uma rápida pesquisa revela que nenhum jornal importante o fez. Aliás, publicações de peso como "Le Monde", "The Economist" e "Washington Post" rejeitaram explicitamente a tese do golpe em seus editoriais. Tal tese existe apenas entre nossa elite cultural engajada.
ALIANÇAS
Para manter a narrativa moralista em nível quase de caricatura, ele ignora por completo as complexidades de alianças políticas que, se lembradas, refutam sua leitura. A "av. Paulista", símbolo máximo das forças do mal, era, até pouco tempo atrás, aliada de Dilma. Basta lembrar que a Fiesp elogiou a redução tarifária da eletricidade e as isenções e desonerações de setores e empresas.
O subsídio do BNDES a grandes corporações, conhecido como "bolsa empresário" (que supera em valor o Bolsa Família), fez a alegria do alto empresariado brasileiro. O setor bancário lucrou como nunca, e sua atitude oscilava entre o apoio explícito e o silêncio omisso. A mudança de trajetória dos juros, ademais, foi consequência direta da piora de nossos fundamentos econômicos, causados por esse mesmo governo.
A afirmação de que o que move o impeachment é o ódio contra a ascensão econômica dos pobres não resiste à mais simples constatação: a luta para derrubar o governo só tomou fôlego a partir de 2015, justamente quando o desemprego passa a subir rapidamente e a inflação corrói a renda dos mais pobres. Naquela época dourada em que o PT podia se gabar de que pobre andava de avião, não havia nenhum movimento minimamente forte que defendesse o impeachment.
Para completar, Souza omite e relativiza os crimes e a corrupção. O petrolão, maior esquema de corrupção da história do Brasil, nem é mencionado. Cabe dizer que ele não é uma consequência inevitável do capitalismo –mesmo porque países muito mais capitalistas que o Brasil não têm a mesma corrupção que nós–, e sim fruto de um projeto de captura do Estado que viola as regras mais elementares de nosso sistema. O mesmo vale para a fraude fiscal cometida pelo governo Dilma e que dá a base legal do impeachment.
Apesar do viés, o artigo nos leva a considerar horizontes mais amplos. Para além da grave ilegalidade cometida pelo governo Dilma ao fraudar as contas para esconder o rombo fiscal, é possível buscar uma narrativa maior por trás do impeachment –o embate de forças históricas que disputam os rumos do Brasil. Não vejo, contudo, a luta maniqueísta entre espíritos generosos, de um lado e aves de rapina, do outro.
O real embate de nossa política é entre a busca do desenvolvimento em algum atalho facilmente trilhado pela canetada política e pelo gasto irresponsável –os crentes no poder mágico do Estado–, e a crença de que o importante é ter um sistema funcional e sustentável para promover o desenvolvimento de longo prazo.
PÉS PELAS MÃOS
Intenções boas e más existem em todos os lados. Elas em nada alteram os resultados práticos de diferentes políticas. Saído de uma ditadura estatizante, burocrática e autoritária, o Brasil meteu os pés pelas mãos repetidamente. Inflação, desemprego e uma "década perdida" foram os resultados de governos supostamente preocupados com o desenvolvimento.
A discussão séria de políticas públicas prescinde da avaliação moral dos participantes. Suponhamos que a política monetária dos anos 1980 estivesse de fato munida das melhores e mais generosas intenções ao atribuir ao Banco Central a missão de financiar o desenvolvimento do Brasil. Funcionou? Não. Apenas gerou a hiperinflação que só seria vencida com o Plano Real. Foi somente no governo FHC que, contrapondo-se à demagogia populista de curto prazo, se conseguiu o equilíbrio fiscal e a estabilidade monetária que permitiram ao país crescer. O primeiro mandato de Lula manteve essas conquistas e trouxe um importante foco em políticas de transferência de renda para a base da pirâmide.
O que poderia ser um novo caminho para um Brasil mais sério, contudo, foi abortado pelo projeto de poder do Partido dos Trabalhadores. A partir de 2006, machucado pelo mensalão, o governo fez o que se chamou na época de uma "inflexão desenvolvimentista", e voltamos aos velhos vícios.
As obras vistosas do PAC, a miragem do pré-sal, a aposta na expansão do crédito ao consumo, a política de campeões nacionais, o controle de preços, a piora de nossa dívida pública, as aventuras geopolíticas. Se foram mesmo reflexos de boas intenções eu não sei, o fato é que nos lançaram no que já é uma nova década perdida. Década que foi antecedida por muitas oportunidades perdidas.
O Brasil surfou a onda internacional favorável, quando nossas exportações valiam muito, e não fez nenhuma reforma significativa: nosso Estado não investiu em nossos gargalos e criou dificuldades para o investimento privado; nada se fez pela educação básica; nossa arcaica legislação trabalhista (que mantém 40% da mão de obra na informalidade) ficou intocada; a bomba-relógio da Previdência foi empurrada para o futuro incerto; nossos impostos continuaram superiores aos de países com a mesma renda per capita, sem falar de nossa complexidade tributária, que é recordista mundial inconteste.
Em suma, apostamos na demanda sem nada fazer para resolver as limitações de nossa oferta. O desenvolvimento ilusório deu lugar à recessão.
E agora, quando o Brasil precisa encontrar saídas, ficamos presos à polarização crescente. O terrorismo eleitoral governista impediu qualquer debate nos anos decisivos de 2010 e 2014. Perdeu-se de vista qualquer ideia de projeto para o Brasil.
É o retumbante fracasso teórico e prático do projeto governista que cria a necessidade da demonização de propostas alternativas. O resultado é o empobrecimento do debate público e a entronização de um discurso altamente moralista que, como sempre acontece, serve para justificar práticas corruptas.
Quais países na América Latina e na África têm tido mais sucesso? Os que criam instituições sólidas e regras claras, com equilíbrio fiscal, respeito à propriedade e facilidade de empreender e investir, ou os que, em nome de algum ideal, gastam o que não têm e criam entraves ao trabalho e ao lucro?
Essa escolha determinará nosso futuro, para o nosso bem, ela deve ser discutida sem partir do pressuposto de que o lado contrário é mau por natureza.
Uma política séria, madura e democrática (que aceita e respeita a existência de uma oposição) não demoniza adversários, discute soluções. Essa evolução –que é também institucional– tem sido combatida ferozmente pelo governo e por sua tropa de choque intelectual. Felizmente, ninguém mais acredita no discurso oficial.
O governo responsável por lançar 3 milhões de famílias da classe C para a classe D segue dizendo que governa para os pobres. Resta à oposição ter a grandeza e a maturidade que a gestão do PT não teve. Onde vigora o espírito sectário, devemos cultivar a objetividade. Ou então reeditaremos o fracasso petista em uma versão verde e amarela.
JOEL PINHEIRO DA FONSECA, 30, é economista, mestre em filosofia e trabalha na comunicação do Partido Novo.
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