Escravidão e
fome no comunismo chinês
Revista Amálgama, 15/05/2017
Um estudo
indispensável de Frank Dikötter sobre as muitas formas de destruição e morte
durante o Grande Salto Adiante.
“A Grande Fome de Mao: A história da catástrofe mais
devastadora da China, 1958-1962”, de Frank Dikötter (Record, 2017, 532 páginas)
1.
A razão
principal para os recentes trabalhos do historiador holandês Frank Dikötter
terem sido tão louvados é que ele, perito na língua e cultura da China, teve
acesso a uma massa de arquivos chineses apenas recentemente abertos a um
público menos restrito – antes disponível apenas para poucos historiadores
ligados ao Partido Comunista – e entrevistou pessoalmente diversos indivíduos
do povo comum que viveram os horrores de eventos como o Grande Salto Adiante, a
Revolução Cultural e a própria revolução comunista. Ao acessar essas pessoas e
documentos, Dikötter escreve uma história que revisa, no bom sentido, muito da
visão que o senso comum tinha dessas tragédias chinesas.
Tome o Grande
Salto Adiante, objeto deste A Grande Fome de
Mao. Nome oficial para as políticas ditadas por Mao Tsé-Tung
entre os anos de 1958 e 1962, o Grande Salto ficaria associado nas décadas
seguintes quase que exclusivamente a mortes pela fome. Assim, por muito tempo,
o número de mortos nesse período rondou cifras que iam dos 15 milhões
reconhecidos pelo governo chinês como vítimas de “desastres naturais”, até os
30 milhões da maioria dos historiadores. Frank Dikötter, por sua vez, levou a
cifra para cerca de 45 milhões de mortos.
Por quê? Porque
o Grande Salto causou principalmente, mas não somente, mortes pela fome.
As políticas dos planejadores chineses produziu uma gama incrível de tipos de
morte, relacionados mais ou menos com as políticas para a agricultura que
causaram o grosso das mortes no período.
Não apenas isso.
A pesquisa de Dikötter vai além dos custos do Grande Salto em termos de vida
humana, e pormenoriza uma série de desastres para a natureza e para
propriedades públicas e privadas na China. O retrato total da destruição,
pintado em A Grande Fome de Mao, é nada menos do que apocalíptico.
A marca
principal do Grande Salto Adiante, é verdade, foi a fome em massa. E o
esqueleto do Grande Salto foi a planificação econômica. É um dos grandes
méritos de Dikötter dar uma ótima noção desta estrutura, começando pela própria
origem do termo “economia planificada” – que vem do alemão “Befehlswirtschaft”,
originalmente aplicado à economia nazista, depois servindo para caracterizar a
economia soviética, até criar raízes próprias em solo chinês. Sim, é isso
mesmo: a planificação econômica esteve umbilical e naturalmente associada aos
três totalitarismos mais assassinos da história.
Em tal sistema,
os oficiais alocados para cuidar de fazendas ou indústrias coletivizadas não
raro tomam medidas sem qualquer sentido em termos de efetividade, apenas por
sabujismo a superiores hierárquicos, preocupando-se apenas, de tempos em
tempos, em maquiar números de produtividade e comandar assassinatos de alguns
trabalhadores para manter um nível mínimo de trabalho. Na China, a economia
planejada contribuiu, entre outras coisas, para o apodrecimento de grãos
armazenados e esquecidos; colapso de um sistema ferroviário que não suportou a
carga de bens que teve que transportar de um lado a outro do país; infinita
produção de bens de segunda categoria, de móveis a fiações elétricas, que se
desmanchavam com pouco tempo de uso e haviam saído de fábricas apenas pelo
esforço de se cumprir metas de produção; corrupção e roubo, por parte de
oficiais de vários níveis, de bens que deveriam ser distribuídos para o
populacho; erosão contínua do poder de compra dos mais pobres, que o
planejamento econômico ditava que deviam ter acesso a vários bens por um baixo
preço, quando na prática ocorria o contrário.
Antes da
revolução de 1949, a China possuía uma forte tradição de pequeno comércio e
valorização da propriedade privada. O capítulo 19 de A Grande Fome de Mao
traz descrições, emocionantes mesmo, de parte dessa realidade pré-comunismo.
Mesmo após a chegada do Partido Comunista ao poder, muito dessa tradição
chinesa persistiu, mas com o início do Grande Santo ela seria sufocada. Na
província de Yunnan, por exemplo, os 200 mil burros e mulas que levavam comidas
e outros bens para aldeias distantes foram substituídos por um sistema
centralmente administrado de carretas puxadas por cavalos, cavalos que custavam
muito em ração, ração que era incompetentemente administrada pelo Estado, o que
levou os cavalos à fome e as aldeias a ficarem privadas de bens essenciais.
Em um verdadeiro
pesadelo estatista,
À
medida que gigantes estatais substituíam lojas pequenas, a responsabilidade por
bens defeituosos afastou-se da rua em direção a remotas e impenetráveis
burocracias. O plano [econômico], naturalmente, tinha uma resposta para esse
problema, instalando “estações de serviços” (fuwuzu) para o benefício
das grandes massas. Mas elas eram poucas e muito afastadas umas das outras,
incapazes de dar conta do dilúvio de bens malfeitos e, acima de tudo,
profundamente desinteressadas em prestar serviço ao povo. Então, em um país
pobre, o custo de consertar um objeto com frequência superava o custo de
substituí-lo.
Os indivíduos
eram na prática propriedades do Estado. Se este passava, como passou, por uma
“febre do aço”, em que qualquer material do tipo era requerido para ser
derretido e regredir à sua matéria-prima, então o povão chinês era “convidado”
a doar para o poder central até mesmo utensílios domésticos e ferramentas
agrícolas. Para os moradores do campo, isso foi mais um passo rumo à fome, pois
mesmo nos raros casos em que conseguiam uma brecha para escapar do trabalho
escravo em fazendas coletivizadas, não tinham muitos meios técnicos para fazer
um plantio próprio, de subsistência.
À medida que a
coletivização se aprofundava, os oficiais na chefia das comunas usavam os
poucos alimentos reservados para os escravos como forma de recompensa ou
punição. Na prática, era uma forma de deixar morrer os que não poderiam ser
escravizados por muito tempo, devido a doenças ou idade avançada, por exemplo.
Como disse o próprio Mao para líderes do partido em 1959, “quando não há o
bastante para comer, as pessoas morrem de fome. É melhor deixar metade das
pessoas morrerem para que a outra metade possa se saciar”.
Uma mulher moribunda e sua família. (foto: Getty
Images)
2.
Na China, os
grãos e outros bens primários eram armas em uma guerra geopolítica, e, como
tais, deveriam ser rigorosamente controlados pelo Estado.
Indivíduo de
ambições desmedidas, Mao instituiu, pelo menos em sua cabeça, uma corrida páreo
a páreo com a União Soviética pela liderança do mundo socialista. Quando
Kruschev anunciou em 1957 que em poucos anos seu país alcançaria os Estados
Unidos na produção de carne, leite e manteiga, Mao não perdeu tempo em
“sugerir” aos inferiores que a China deveria ultrapassar tanto URSS quanto EUA
nesse aspecto econômico, e talvez em outras áreas. A liderança chinesa poderia
ser alcançada mesmo em curto prazo – com muito esforço, em curtíssimo prazo.
Seus vassalos no Partido logo acharam esse um projeto razoável.
Nessa batalha
rumo ao topo, caberia aos camponeses, por meio do trabalho em terras
coletivizadas, o papel de alimentar as cidades e prover bens de exportação. Sua
própria sobrevivência vinha apenas em um distante terceiro lugar. Quantidade
assombrosa de alimentos foi vendida no período do Grande Salto, e o dinheiro
convertido na importação de equipamentos industriais e militares.
No sistema
planificado chinês, funcionava assim: os líderes do país pariam no papel
estimativas delirantes de produção interna, a fim de firmarem acordos
comerciais indispensáveis para colocar a China no topo. Para tais acordos serem
cumpridos, as estimativas teriam que se concretizar, e essa era a ordem dada às
lideranças locais. Se as projeções tivessem sido realistas e
concretizadas, daria para o país exportar e se alimentar. Como não foram,
acabou dando apenas para se alimentar ou exportar, e a escolha pela
exportação já havia sido feita. Durante todo o período do Grande Salto, quanto
mais a fome se aprofundava, mais as quotas de exportação aumentavam. Daí as 45
milhões de “mortes desnecessárias” calculadas por Frank Dikötter.
Nos anos
iniciais do Grande Salto, Mao e seus esbirros não aceitavam sequer críticas em
privado das políticas chinesas – que dizer em público. Repressões em aldeias e
expurgos nos quadros do Partido foram características da época. A culpa pela
média de milhares de mortos por dia era posta nos “desastres naturais”, quando
não, claro, nos “inimigos do povo”.
Quando a
realidade da fome em massa começou a se impor entre a liderança, outro problema
concorreu para que as mortes continuassem a varrer os campos: o orgulho da
elite comunista. Foi por orgulho que ela recusou ajuda em alimentos de países
do bloco socialista – a fome no gigante asiático já era do conhecimento de meio
mundo. A oferta de ajuda da Cruz Vermelha também foi rejeitada. Mesmo os grãos
que a China comprou durante o período foram em grande parte exportados
– ou seja, não tinham o objetivo de matar a fome dos chineses, mas de fazer a
roda da política de exportações continuar a rodar. O país também nunca parou de
doar grãos para países como Cuba, para manter a imagem de farol do
socialismo bem sucedido.
Apenas a partir
do final de 1960, quando o planejamento econômico foi em pequena parte reduzido
e aldeões puderam cultivar suas próprias hortas e o comércio local deixou de
ser crime, é que a fome começou em diminuir.
Crianças de rua agonizantes. (foto: Life Magazine)
3.
As “mortes
desnecessárias” de Frank Dikötter incluem, além da maioria por fome, mortes por
acidentes, doenças, violência (inclusive no laogai, o gulag chinês) e
por canibalismo (um número comparativamente insignificante, mas ainda assim
simbólico das realizações do comunismo).
Como era de se
esperar, os sete capítulos que compõem a sexta parte de A Grande Fome de Mao,
intitulada “Modos de morrer”, trazem as páginas mais fortes da obra. Por
exemplo: Um camponês de Guangdong, chamado Wang Ziyou cometeu o crime de
desenterrar uma batata para matar a fome e foi punido pela administração local
com o corte de uma orelha, pernas amarradas com arame farpado, uma pedra de 10
quilos atirada sobre as costas e marcação na pele com ferro em brasa. Em
parágrafo que lembra o totalitarismo islamista de nossos dias, Dikötter narra
que pessoas eram trancadas em porões e deixadas lá até a morte, em meio a
gritos atrozes de desespero. Outras eram queimadas vivas. Enquanto isso, idosos
eram empilhados em asilos, e crianças muitas vezes iam parar em instituições
que fariam qualquer Febem paulista parecer uma utopia.
Como ocorre em
todo tempo e lugar em que se tenta fundar o paraíso socialista e o “novo homem
socialista”, também na China a espécie humana foi reduzida a seus aspectos mais
degradantes. No sistema de comunas, os laços familiares eram apagados, com
crianças sem mães, mulheres sem maridos e idosos sem parentes. Nas fábricas, os
escravos não podiam abandonar seus postos facilmente, e urinavam e defecavam no
próprio chão em que estavam trabalhando. Mulheres eram comumente humilhadas e
abusadas por chefes locais (“o estupro se espalhou como um contágio em uma
paisagem moral angustiada”, escreve Dikötter), e tinham muitas vezes que
trabalhar nuas, para “quebrar tabus feudais”.
A mentira, o
roubo, o contrabando, a trapaça, a manipulação, eram formas não apenas de
camponeses se voltarem contra o Estado, mas também uns contra os outros. “No
campo”, pontua o autor, “a feroz competição pela sobrevivência gradualmente
corroeu qualquer sentido de coesão social”.
É por ligar
esses diversos aspectos da tragédia do Grande Salto – a Grande Fome, sim, mas
também toda uma gama de mortes no campo e nas cidades; a destruição de
propriedades privadas; a destruição da natureza; as decisões da cúpula do
Partido e os modos de sobrevivência das massas – que o livro de Dikötter é
leitura básica para quem deseja compreender a China moderna.
Não só este
livro, aliás, mas também seus volumes sobre a revolução comunista e a Revolução
Cultural – duas obras que também deverão sair no Brasil, pela mesma editora que
nos trouxe este A Grande Fome de Mao.
Cartaz de propaganda chinês da época do Grande Salto
Adiante
Editor da
Amálgama
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Agora, entre nós: o preço deste livro é extorsivo. Por isso recomendo comprar uma edição em inglês, em qualquer sebo da rede Abebooks: vejam abaixo, mesmo na Amazon fica mais barato, ainda pagando 10 ou 15 dólares de frete.
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