O Homem que Pensou o Brasil: Roberto Campos ainda
atual
Paulo Roberto de Almeida
[Apresentação
do livro sobre Roberto Campos; publicação digital]
Paulo Roberto de Almeida (org.):
O Homem que Pensou o
Brasil: trajetória intelectual de Roberto Campos
(Curitiba: Editora Appris, 2017, 373 p.; ISBN: 978-85-473-0485-0)
Ives Gandra da Silva Martins; Paulo Rabello de Castro (orgs.):
Lanterna na proa: Roberto Campos Ano 100
(São Luís: Resistência Cultural, 2017, 340 p.;
ISBN: 978-85-66418-13-2)
Ambos livros pedem
outros livros, mais exatamente os do próprio Roberto Campos. Ao tomar a
iniciativa de organizar o primeiro livro, no final de 2016, já prevendo uma
possível homenagem pelo centenário do grande estadista brasileiro da segunda
metade do século XX. Eu já conhecia razoavelmente bem o pensamento, a ação, as
derrotas de Roberto Campos, um dos poucos solitários liberais num país, que,
desde o pós-guerra até os nossos dias, se situou consistentemente do lado do
estatismo, do intervencionismo, do protecionismo, do nacionalismo, do
distributivismo, numa palavra, em prol de medidas e políticas de cunho
caracterizadamente socialdemocrata (ainda que conservadores tenham ocupado a
presidência e os centros de decisão econômico ao longo do período).
Roberto Campos esteve,
com brevíssimas exceções – quando foi ministro do planejamento do primeiro
governo do regime militar, por exemplo, ou nos seus primeiros anos como
tecnocrata –, do lado exatamente inverso: contra os excessos do
intervencionismo estatal, pela abertura econômica e a liberalização comercial,
pela inserção do Brasil nas correntes mais dinâmicas da economia mundial,
segundo regras de mercado, contra o nacionalismo introvertido e oposto aos
investimentos estrangeiros, em favor da educação para ganhos de produtividade,
antes que assistencialismo estatal. Ele sempre viu antes, mais e melhor do que
seus contemporâneos, mas foi derrotado cada vez que pretendeu reformar o Brasil
com base em seu profundo conhecimento da economia – adquirida não apenas nos
livros, mas também nos cenários negociadores internacionais e nos mais altos
cargos de planejamento econômico nacional – e do mundo, como diplomata
experimentado que era. Sua lógica implacável, adquirida nos seminários, o
colocava a contracorrente dos hábitos nacionais, bem mais “flexíveis”.
Para saber de tudo isso,
não é preciso ler o primeiro livro, ou o segundo, quase equivalente nos seus
objetivos, ainda que diferente na concepção, com muitos mais colaboradores do
que os que reuni (apenas dez) em meu livro: a obra coordenada por Ives Gandra
Martins e Paulo Rabello de Castro congregou mais de seis dezenas de autores –
mas para temas circunscritos a 3 ou 4 páginas cada, entre eles eu mesmo, com
três “capítulos”, sobre Bretton Woods, BNDE e receitas para desenvolver um país
– e oferece uma boa introdução ao que pensava Roberto Campos sobre uma enorme
gama de assuntos. O ideal seria ler diretamente Roberto Campos, mas o problema
é que seus primeiros livros estão há muito tempo fora do mercado, só
disponíveis em poucos sebos e na posse de colecionadores dotados de afinidades
intelectuais com o grande pensador. Com exceção de suas memórias, Lanterna na Popa, e de suas duas últimas
antologias, em edições da Topbooks, uma outra dúzia de obras simplesmente
desapareceu dos catálogos, tanto porque Campos circulou por diferentes editoras
ao longo de mais de quarenta anos. Na impossibilidade, portanto, de ler Roberto
Campos, esses dois livros cumprem bastante bem o objetivo buscado de apresentar
seu pensamento, sua ação política e econômica, seu legado exitoso no plano de
uma “projeção utópica” das reformas necessárias e seu registro frustrado de
reformas propostas e não realizadas.
O livro de Gandra e
Castro é necessariamente mais superficial, pela opção por textos curtos, quase
sem referências bibliográficas ou transcrições de originais. O que eu coordenei
deixou os colaboradores à vontade para discorrerem sobre seus temas de escolha,
na extensão desejada e com ampla liberdade metodológica. Eu mesmo tomei a
liberdade de me estender sobre toda a obra escrita deixada por Campos, partindo
de suas memórias, examinando inicialmente sua dissertação de mestrado na George
Washington University, em 1948 (que Schumpeter considerou uma verdadeira tese
de doutorado), passando por seus trabalhos econômicos mais importantes dos anos
1950 (ainda marcados por uma confiança indisfarçável no planejamento estatal),
e seguindo depois por mais de meio século de artigos semanais nos grandes
jornais do Rio de Janeiro e São Paulo, ademais de sua atividade diplomática
(embaixador em Washington e Londres) e política (ministro do planejamento e
parlamentar durante 16 anos, primeiro senador, depois deputado).
Meu capítulo ocupa a
metade do livro O Homem que Pensou o
Brasil, mas é o último, o que me habilita a falar agora dos onze primeiros
capítulos. O primeiro, na verdade, também é meu, e se dedica precisamente a
apresentar em grandes traços o “rebelde com causa”, o “tecnocrata erudito”, e o
“filósofo do pragmatismo”, na feliz definição de Gilberto Paim, autor de um
livro exatamente com esse título. Seu irmão, Antonio Paim, comparece com um
breve texto sobre a contribuição de Campos para a modernização do Brasil. Em
seguida, Ives Gandra Martins, um dos dois coordenadores do segundo livro,
também oferece um depoimento curto sobre suas afinidades eletivas com Campos,
irmãos na “luta comum contra a irracionalidade”. Rogerio Farias, um jovem
pesquisador trata especificamente da
carreira diplomática, “heterodoxa”, do grande economista, discorrendo sobre um
período pouco conhecido de sua atividade no Itamaraty: sua participação na
comissão de reforma da carreira e da estrutura da chancelaria, na primeira
metade dos anos 1950. O filósofo Ricardo Vélez-Rodríguez, ex-seminarista como
Roberto Campos, aborda a questão do patrimonialismo em sua obra, tema no qual o
próprio Ricardo é um dos maiores especialistas brasileiros.
O cientista político
Reginaldo Teixeira Perez, autor de uma tese publicada sobre o “pensamento
político de Roberto Campos”, examina a racionalidade e a autonomia na obra de
Campos, em ensaio com variadas referências a Max Weber, o autor que mais tratou
das diferentes éticas na vida pública e das relações entre ciência e ideologia.
O ex-diretor do Banco Central, criado por Roberto Campos, economista Roberto
Castello Branco desmente as visões de ortodoxia, de austeridade ou de
monetarismo associadas frequentemente a Campos, demonstrando que ele era um
desenvolvimentista, mas muito consciente da importância de sólidos fundamentos
macro e microeconômicos para que taxas de crescimento sustentado pudesse
realmente desembocar num processo de desenvolvimento consistente, com
distribuição social de seus benefícios. Rubem de Freitas Novaes, ex-diretor do
BNDES e professor na FGV, oferece uma verdadeira aula de economia liberal,
revisando todas as principais correntes de pensamento econômico do século XX,
aquelas que justamente acompanharam a atividade de Roberto Campos.
Carlos Henrique Cardim,
colega diplomata e ex-presidente da Editora da UnB, onde publicou as grandes
obras clássicas e centenas de outras, todas elas de referência nas humanidades,
revela o papel de Roberto Campos na abertura política, ao enfocar sua
participação nos encontros internacionais que ele organizou na UnB, ao início
dos 80s. Antonio José Barbosa, assessor parlamentar e professor de história
brasileira na UnB, percorre os 16 anos das atividades parlamentares de Campos,
entre 1983 e 1999, e não deixa de sublinhar tanto o acertado de seus
diagnósticos e prescrições sobre os problemas brasileiros, quanto as
frustrações que ele enfrentou durante todo o período. O cientista político,
professor na UnB e também assessor parlamentar Paulo Kramer fecha a lista dos
colaboradores convidados com uma brilhante comparação entre Campos e Raymond
Aron, ambos liberais clássicos, ambos enfrentando a oposição da esquerda e dos
estatizantes no Brasil e na França, embora absolutamente corretos, ambos, nas
suas análises antecipatórias sobre o triunfo das democracias de mercado sobre
as economias socialistas e seus regimes autoritários.
Numa avaliação global,
os dois livros oferecem “visitas” oportunas e muito bem fundamentadas em seus
escritos e ações, sobre a vida, a obra, o pensamento e as atividades do insigne
economista-diplomata-tecnocrata-ministro-parlamentar que foi Roberto Campos, um
homem sempre à frente do seu tempo e, infelizmente, pouco feliz em suas tentativas
de convencimento (visando sobretudo as elites) de que as liberdades econômicas,
a contenção do intervencionismo estatal e a abertura ao capital estrangeiro
teriam levado o Brasil a uma condição bem diversa desta hoje ostentada, ou
seja, uma economia aberta, inserida nos grandes intercâmbios mundiais, com
maior capacidade de competição (e, portanto, de inovação) e grau razoável de
crescimento da produtividade, com base numa educação de boa qualidade. Retomo,
pois, o terceiro capítulo de minha autoria no livro de Gandra-Rabello, sobre a
receita, fundamentada em Roberto Campos, para desenvolver um país: 1)
estabilidade macroeconômica; 2) competição microeconômica; 3) boa governança;
4) alta qualidade do capital humano; 5) abertura a comércio internacional e a
investimentos estrangeiros.
Os livros já estão
disponíveis nas principais redes de distribuição online e com alguma presença
física em livrarias, ou podem ser encomendados diretamente às editoras. O ideal
seria, obviamente, que os interessados na obra do grande economista e diplomata
lessem toda a sua obra, ou pelo menos suas memórias (1.500 páginas) e suas
antologias mais recentes ainda disponíveis. Na dificuldade de encontrá-las, ou
na preguiça de mergulhar em milhares de páginas, estes dois livros oferecem um
atalho muito conveniente, fiável e ao mesmo tempo profundo ao seu pensamento
sempre atual. Roberto Campos certamente se frustrou ao não conseguir convencer
os membros das elites econômicas e políticas brasileiras a adotarem outro curso
de ação do que aquelas que foram seguidas no meio século durante o qual ele foi
um ativo participantes das propostas de políticas públicas, muito erráticas e
incapazes de tirar o Brasil, como ele dizia, da pobreza evitável para colocá-lo
num patamar de prosperidade possível.
Mas ele teria se
frustrado muito mais se, vivo na década que se seguiu ao seu falecimento em
2001, tivesse assistido à Grande Destruição de riqueza produzida pela grande
inépcia econômica e enorme corrupção política dos companheiros. Se resta um
consolo em face dessas frustrações acumuladas, seria este: todas as suas
propostas (e mesmo projetos de lei) teriam plena validade operacional e total
adequação racional aos dias que correm, quando ainda discutimos reformas que
ele propôs, e que poderiam ter sido feitas desde os anos 1960, cujo teor basta
examinar em qualquer um dos dois livros aqui resenhados. Não há nenhuma dúvida:
Roberto Campos permanece incrivelmente atual. Confiram...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3117, 15 de maio de 2017
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