A diplomacia imperial – que também conheceu um diplomata de nome Azambuja, talvez um hoje ignorado ancestral do embaixador Marcos Castrioto de Azambuja, falecido em 28 de maio de 2025, aos 90 anos completos – teve muitos barões, título fartamente distribuído pelo protocolo do Segundo Império para aliciar seus protetores e financiadores voluntários. O título de barão não era transmissível, mas era escalável na distinção, podendo por exemplo chegar a duque, como foi Caxias, um dos condestáveis do regime imperial, vindo de Pedro I e elevado sob Pedro II, na guerra do Paraguai. A diplomacia republicana, jacobina em seu início, extinguiu todos os títulos de nobreza, mas não conseguiu impedir que um deles sobrevivesse, respeitadíssimo, nas três primeiras décadas de sua turbulenta consolidação: o Barão do Rio Branco, filho do Visconde da mesma designação, grande diplomata e estadista de um dos raros gabinetes longevos do Segundo Império, negociador no Prata e autor da Lei do Ventre Livre, um dos tímidos passos dados em direção à completa abolição da escravatura (quando o filho já tinha herdado o título, embora num degrau inferior). José Maria da Silva Paranhos Júnior, ao ser confrontado com a eliminação geral dos títulos nobiliárquicos na fase radical da República positivista, foi esperto o suficiente para agregar o sobrenome Rio-Branco (assim, com hífen, ao início) aos expedientes que enviava ao Rio de Janeiro desde Liverpool. Num dos mais ativos portos do Reino Unido, ainda na vanguarda da revolução industrial, sob o capitalismo manchesteriano tão bem analisado (quanto repudiado) por Marx, Juca Paranhos se exercia, não como diplomata, uma carreira acima da sua simples designação como cônsul (separada da dos nobres diplomatas), mas num dos postos mais cobiçados da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, pelos ricos emolumentos consulares que caiam na conta do chefe do posto, elevando sua renda quase ao nível dos vencimentos percebidos pelos diplomatas servindo nas legações mais distinguidas do Serviço Exterior do Império.
Os demais barões do Império, que ousaram continuar ao serviço da diplomacia republicana, mesmo perdendo o nobre título, miravam com inveja para o esperto Rio-Branco, que podia impunemente exibir a sua glória nobiliárquica, ao assinar os expedientes despachados por navio ou remetidos telegraficamente ao Rio de Janeiro, depois de agregar o ritualístico “Saúde e Fraternidade” exigido pelos novos costumes quase termidorianos. Com o passar do tempo, só havia sobrevivido um Barão, com B maiúsculo, e nem era preciso acrescentar o designativo Rio Branco quando alguém a ele se referia corriqueiramente, ou até cerimoniosamente, já na segunda década da República, quando o antigo cônsul, enobrecido funcionalmente pelas glórias conquistadas como árbitro brasileiro em dois grandes litígios fronteiriços herdados do Império, alcançou, em 1902, o posto de chanceler da República oligárquica, e a ela serviu sob quatro presidentes, que não ousaram destituí-lo até a sua morte, no próprio palácio do velho Itamaraty, em 1912. Um funeral apoteótico, obrigando o regime a deslocar o Carnaval para mais tarde, o que não serviu para nada, pois naquele ano o povo folgazão teve direito a dois carnavais.
Depois disso não houve mais nenhum barão na carreira, embora alguns, a exemplo de Juca Paranhos, agregassem o nome, sem o título, ao seu próprio, como o fizeram os sucessores de Ouro Preto, o último presidente de um gabinete imperial. Ao início da carreira, já nos anos 1980, cheguei a trabalhar com o embaixador Miguel do Rio Branco, irmão de um outro, João Paulo do Rio Branco, ambos netos do Barão, e visitei um dos embaixadores Ouro Preto em Roma ou em Helsinque. Ainda existem esses descendentes das nobres famílias da aristocracia imperial, mas se tornaram cada vez mais raros, com a democratização iniciada com a transferência da capital da República para o cerrado central.
Curiosamente, depois do Estado Novo, tão positivista quanto a República jacobina da sua primeira década, começaram a proliferar os barões da diplomacia, não pelo título, mas pelo poder exercido sobre os jovens mandarins do Serviço Exterior, já na rotinização do carisma suscitado pela criação do Instituto Rio Branco em 1945, centenário do próprio, cujo exame de seleção, rigorosíssimo, passou a ser única porta de entrada no Serviço Exterior. Os novos barões foram aqueles que, nascidos sob o Estado Novo ou ao início da República de 1946, foram galgando reconhecimento e ascendência funcional, ao acumularem experiência nos postos “nobres” da carreira – o famoso circuito “Elizabeth Arden”, ou “Helena Rubinstein” – e nas mais ambicionadas chefias da Secretaria de Estado. Marcos Azambuja foi um desses, já distinguido nos bancos do Instituto Rio Branco, quando nele ingressou em 1956, e depois nos postos onde serviu, sempre com vivacidade e exímio espírito de humor.
Quando ingressei na carreira, sob o último general presidente, ele já era um “barão” do Itamaraty, respeitado e muito vigilante em relação às nobres tradições da carreira, tanto que corrigiu uma afirmação um tanto abusada que dirigi à diplomacia da era Vargas numa resenha que havia submetido – no ritual obrigatório da autorização para publicação – em um livro que tratava da diplomacia dos anos 1930. Tornei a encontrá-lo já como representante brasileiro na Comissão do Desarmamento, em Genebra, onde eu me encontrava no final dos anos 1980, mas, como “barão”, ele carregou a sua própria corte, assim que fui deslocado para a Delegação junto aos demais organismos das Nações Unidas, passando a servir sob a ordens do embaixador Rubens Ricupero, este sem qualquer espírito baronial, uma espécie de George Kennan da diplomacia brasileira.
Cruzei novamente com Azambuja já em Brasília, ao início do governo Collor, ele como Secretário das Relações Exteriores, eu como simples conselheiro na área da integração, tendo tido a ousadia de aparteá-lo numa reunião de coordenação sobre o Mercosul, preparatória a uma importante conferência sobre o ainda incerto bloco de integração. Creio que, como barão de fato, ele não deve ter apreciado meu registro factualmente corretivo sobre uma minúcia qualquer do processo de construção do bloco do Cone Sul, em face do silêncio obsequioso de todos os demais chefes da Casa, que me olhavam espantado pelo atrevimento da retificação, quando eu estava ali apenas representando o meu chefe, o embaixador Rubens Barbosa, justamente em viagem a serviço da Comissão do Mercosul. Nunca fui da sua corte, aliás de nenhuma, mas sempre soube apreciar sua excepcional versatilidade diplomática, a acuidade de suas sínteses perfeitas sobre os mais complexos problemas, tudo envelopado numa ironia cativante, sempre com alguns mots d’esprit de um surpreendente bom humor em meio às difíceis decisões que o Itamaraty necessitava tomar numa das mais fases mais inovadoras, e desafiantes, da política externa.
Seu domínio perfeito sobre vários dossiês complicados desse período o habilitou a ser o coordenador geral da segunda conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992, quando o Brasil inovou em relação à postura restritiva que havia exibido na primeira (Estocolmo, 1972), onde havíamos acintosamente defendido nosso “direito a poluir” – isto é, a continuar na trilha do desenvolvimentismo acelerado do regime militar –, felizmente aderindo então aos conceitos de sustentabilidade, de preservação dos recursos naturais, mas também afirmando o sacrossanto princípio das “responsabilidades comuns, mas diferenciadas”, em favor das nações ainda pouco industrializadas. A capacidade de dialogar com os erráticos hermanos também lhe abriu a porta de uma das mais importantes embaixadas brasileiras, apenas depois de Washington, a de Buenos Aires, onde, por incrível que pareça, cativou os argentinos de 1992 a 1997.
Logo em seguida, seguiu como embaixador em Paris, entre 1997 e 2003, onde eu havia servido pouco tempo antes, como conselheiro econômico, ele iniciando sob o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso e terminando ao início do primeiro mandato de Lula. Seu estilo radioso, até mesmo esfuziante, talvez não tenha combinado com o perfil mais militante do lulopetismo diplomático, pois que já quase septuagenário, não voltou a ocupar, sob o novo regime, outros cargos de chefia de missões diplomáticas. Mas foi justamente a partir daí que passou a brilhar mais intensamente como conferencista, articulista, autor de muitos artigos e ensaios sobre os mais diversos temas de relações internacionais e de política externa brasileira, sempre com sua fina ironia e seu bom humor indissociável de suas belas tiradas, feitas justamente para encantar a audiência e os jornalistas. Associou-se a uma plêiade de instituições – IHGB, IPHAN – e notadamente ao Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI), do qual foi vice-presidente.
Sempre com alguma frase impactante em cada entrevista concedida à mídia, também encantava o público mais circunspecto dos seminários acadêmicos, pois sabia como poucos enfatizar onde estava o interesse brasileiro nas mais diversas questões e problemas da agenda internacional, preservando aquele equilíbrio de posições que sempre distinguiram os grandes “barões” da Casa de Rio Branco. Numa época em que a carreira se tornou excessivamente burocratizada, uma figura irreverente como a dele já pertence a um ambiente diplomático que ficou num passado em que o Itamaraty era respeitado não só na Esplanada dos Ministérios, mas no entorno regional, tanto quanto entre as mais respeitadas diplomacias estrangeiras.
Na época dos “barões” era comum ouvir-se, entre os vizinhos continentais, o famoso mote segundo o qual “el Itamaraty no improvisa”. Azambuja certamente não improvisava, mas sempre tinha alguma surpresa conceitual com a qual deliciava seus interlocutores, aquela maneira de agradar outros negociadores em difíceis embates diplomáticos. Barões como ele, foram forjados num Itamaraty quase que familiar, o do Rio de Janeiro, para se sobressair na diplomacia da Nova República, deixando marcas indeléveis num cenário agora transformado, o das improvisações seguidas, num sistema político visivelmente em carência de estadistas.