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segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

As mensagens presidenciais de 1947 a 1960 – Desenvolvimentismo e inflacionismo - Paulo Roberto de Almeida (Portal Interesse Nacional)

As mensagens presidenciais de 1947 a 1960 – Desenvolvimentismo e inflacionismo

Nota sobre as mensagens presidenciais ao Congresso, de 1947 a 1960: Juscelino Kubitscheck começa por identificar os “problemas de base do Brasil”
Paulo Roberto de Almeida
Portal Interesse Nacional, 1/12/2025

    A Primeira República, depois chamada de “velha” pelos historiadores, durou exatamente 41 anos, não sem alguns tropeços pelo caminho: revolta da Armada, rebeliões internas, revoltas tenentistas começaram a abalar seus fundamentos desde os primeiros tempos.

    Mais desafiadora foi a fraude perpetrada por Washington Luiz, em 1930, ao forçar a candidatura de seu pupilo Júlio Prestes, elegendo-o pelo meio da “verificação dos resultados” das urnas (que era o expediente usado pelas oligarquias para eleger quem elas quisessem), o que resultou no rompimento do esquema “café com leite” entre Minas Gerais e São Paulo, abrindo espaço para os gaúchos castilhistas irromperem na política nacional.

Uma das virtudes da República Velha, do ponto de vista aqui seguido, foi a de produzir boas mensagens presidenciais ao Congresso sobre o estado da nação a cada quadriênio (dois deles interrompidos pela morte do incumbente).

As mensagens retornaram em 1933, como examinado numa avaliação anterior desta série, mas só enquanto o Legislativo conseguiu funcionar “normalmente”, o que começou na Assembleia Constituinte de 1933-34 e veio a terminar com o golpe do Estado Novo de novembro de 1937, acabando com o Congresso e com a representação federativa.

No intervalo tivermos a intentona comunista de novembro de 1935 e a decretação da Lei de Segurança Nacional.

Com o golpe do Estado Novo, em novembro de 1937, o Brasil voltou a ser um Estado unitário durante oito anos, conduzido por um ditador que ainda realizou o prodígio de terminar popular, ao introduzir reformas com sentido social, em especial no terreno trabalhista e sindical (aqui consagrando o atrelamento oficial ao Estado, como no regime fascista de Mussolini, cuja Carta del Lavoro inspirou a nossa Consolidação das Leis do Trabalho, vigente até nossos dias).

As mensagens presidenciais de 1947 a 1964 são retomadas no segundo ano do governo de Eurico Gaspar Dutra, depois de introduzida uma nova Constituição, a quinta de nossa trajetória republicana; estão reunidas no volume Documentos Parlamentares 127 da Câmara dos Deputados (1978).

O volume que consolida todas as mensagens do período da República de 1946 apresenta um retrato impressionante das grandes questões que agitaram o Brasil nesses 17 anos e dos principais problemas que estiveram na origem da instabilidade política registrada naqueles anos, mas também de um grande impulso econômico em direção de uma sociedade urbanizada e industrializada. Registre-se, aliás, que o Introdutor desse volume, José Augusto Guerra, chama a atenção para um aspecto dessa instabilidade, que parece ter persistindo até a atualidade:

Observa-se, porém, que à exceção de Eurico Dutra e Juscelino Kubitschek, nenhum dos presidentes passou a faixa presidencial ao sucessor com as honras do estilo. Getúlio suicidou-se; Café Filho foi declarado impedido; Carlos Luz, Presidente por 24 horas, também declarado impedido; Jânio Quadros surpreendeu a nação (e talvez a si próprio) renunciando espetacularmente; e João Goulart foi deposto, estranhos episódios estes, que ainda hoje repercutem no inconsciente coletivo de nosso povo, como fatos que não escondem a gravidade de um mal antigo, que remonta às origens de nossa formação, e para o qual nossas elites não encontraram ainda solução. Em nosso País, toda sucessão presidencial assume as proporções de crise política. (p. 18-19)

Vamos examinar, sinteticamente, quais foram esses problemas mais graves e como se operou uma das mais importantes fases da modernização econômica e social do Brasil antes apenas agrário, depois dotado de uma indústria relativamente pujante.

O período também superou a “americanização” de sua política externa, desde os primeiros anos da Guerra Fria, para lograr uma breve, mas vibrante, Política Externa Independente, que também dividiu o país e suas elites.

Os temas constantes em cada uma das mensagens são, sem dúvida, o problema da inflação, os déficits públicos e o foco presente em praticamente todos os governos com a questão do desenvolvimento, invariavelmente impulsionada pelo Estado.

Na sua primeira mensagem ao Congresso Nacional, o presidente Eurico Dutra, por exemplo, já começa dizendo que o “governo me foi transmitido em período dos mais difíceis da vida nacional, vivamente conturbada não só pelo desequilíbrio econômico-financeiro, mas também pelas paixões políticas, intranquilidade e desconfiança gerais, – tudo agitado por uma situação internacional agitada e incerta” (p. 31).

Havia escassez de mercadorias importadas, restrições como resquício da guerra recente, saldos em divisas congelados pelos países que importaram durante o conflito global, num país que ainda exibia 55% de analfabetos.

No plano externo, cabe registrar a “continuação das linhas tradicionais de nossa política externa” (p. 52), sendo que os diplomatas foram chamados a estimular novamente os acordos com os países europeus para atrair imigrantes ao Brasil (p. 53).

Nos anos 1948-1950, ressurgem os temas da renegociação de nossas dívidas vindas ainda das décadas passadas, assim com a busca de novos empréstimos para estabilização dos déficits externos.

Nos anos 1951-1952, o governo Vargas volta a se preocupar com a inflação, já identificada como resultante do “desequilíbrio orçamentário” (p. 139), ao passo que os anos 1953-1954 são dominados pela questão da exploração do petróleo, assim como pelo “estreitamento do relações com países insuficientemente desenvolvidos” (p. 167), ainda que um acordo de assistência militar tenha sido concluído com os Estados Unidos.

O “retorno de capitais estrangeiros”, isto é, lucros e dividendos, já é visto como um problema para o balanço de pagamentos, apontando-se a necessidade de uma lei limitativa dos fluxos. O vezo nacionalista e intervencionista encontra-se expressamente registrado, ao se indicar que

Mesmo nos setores em que, tradicionalmente, o Estado brasileiro se tem abstido de atuar de forma direta, a iniciativa privada, nacional ou estrangeira, mostra-se desinteressada em aplicar-se na supressão daqueles pontos de asfixia. (p. 170).

Vargas conclui sua mensagem de 1954 (antes que a crise engolfasse seu governo) dizendo que o governo se empenha “na busca de meios para corrigir o desgaste de seus instrumentos de ação sobre a conjuntura econômica… Urge desinflacionar, mas de tal arte [sic] que não se percam as conquistas da expansão” (p. 178).

Em resumo, o governo Vargas constitucional já tinha aderido ao desenvolvimentismo como a grande ideologia do interesse nacional, concluindo ao dizer que o panorama descrito “comprova o acerto das diretrizes do governo” (idem). Meses depois a crise política terminaria por encerrar prematuramente esse mesmo governo.

A única e solitária mensagem do governo Café Filho, em 1955, começa com quatro grandes títulos, tratando respectivamente dos seguintes temas (todos em caixa alta): “A crise política e militar, a morte do presidente Getúlio Vargas e a ascensão do novo governo” (p. 181-83); “A conduta das classes armadas, das forças políticas e do povo” (p. 183-84); “Mensagem de esperança” (p. 185); “O governo e as eleições” (p. 185-88); “A crise econômica e financeira” (p. 189-90) e “Revisão constitucional, reforma eleitoral e legislação trabalhista”(p. 190-91).

‘O “interesse nacional” foi deslocado para a resolução do ambiente de crise criado com a ruptura dramática ocorrida em 1954’

Ou seja, o “interesse nacional” foi deslocado para a resolução do ambiente de crise criado com a ruptura dramática ocorrida em 1954, o primeiro ano de funcionamento da prometedora estatal do petróleo, a Petrobrás, “com capital inicial de 4 bilhões de cruzeiros” e a constituição de um “fundo nunca inferior a 3% nem superior a 5% da receita cambial, a fim de assegurar divisas para o programa da Petrobrás” (p. 193).

Mas, como Café Filho indicou igualmente, ao contrário do superávit previsto, “a execução orçamentária em 1954 evidenciou a existência de um vultoso déficit da ordem de 7 bilhões de cruzeiros” (p. 194), o que foi inteiramente coberto “com emissões de papel-moeda”, exatamente no mesmo montante.

O regime cambial já havia sido alterado em 1953, instituindo-se “parcialmente, o regime de câmbio livre, com exclusão do café, algodão e cacau” (p. 195), por acaso os principais itens da exportação. Mesmo demonstrando sua contrariedade com “as disputas de caráter meramente personalista ou faccioso” (p. 188), Café Filho conclui reconhecendo, que a despeito da “estrutura da autoridade estatal de nosso sistema presidencialista, o Parlamento recuperou a força que lhe é própria, como instrumento de representação das massas” (p. 206), o que iria ser plenamente demostrado nos conflitos políticos dos anos à frente.

‘Juscelino Kubitscheck começa por identificar os “problemas de base do Brasil”, sendo estes a “valorização das áreas subdesenvolvidas e planejamento econômico”’

Ao iniciar a primeira de suas cinco mensagens ao Congresso Nacional, de 1956 a 1960, Juscelino Kubitscheck começa por identificar os “problemas de base do Brasil”, sendo estes a “valorização das áreas subdesenvolvidas e planejamento econômico” (p. 212).

Ele continua por um “balanço da realidade nacional”, numa fase em que a taxa de crescimento da economia já se situava acima de 5% ao ano, mas já marcando o dobro para a alta do custo de vida, o que se explicava pela “desproporcionalidade entre o crescimento do volume de despesas monetárias e a quantidade de bens e serviços oferecidos” (p. 215), um diagnóstico provavelmente feito por algum tecnocrata do BNDE. Juscelino não deixa de reconhecer que tinha encontrado “o País sob os intensos e perniciosos efeitos da espiral inflacionária (…) com um déficit financeiro de pouco mais de onze bilhões de cruzeiros” (p. 215-160.

Ele também anunciava a liquidação de débitos externos, “alguns em circulação desde 1888” (p. 224), e a existência de 23 acordos bilaterais de pagamentos ainda a resolver (p. 239). Ao tratar do seu amplo programa de metas, prometendo que a indústria automobilística “deve ser implantada em bases amplas e definitivas” (p. 261), em nenhum momento do relatório – em grande medida relativo a 1955 – Juscelino menciona o projeto de construir uma nova capital.

Esse tema, na verdade, só aparece na mensagem de 1958, quando ele promete que todos os trabalhos e serviços “que uma cidade moderna exige, estarão ultimados quando ali [no Planalto Central] se instalarem os três Poderes da República, a 21 de abril de 1960” (p. 297), sem que se mencionem, no entanto, os custos previstos no empreendimento; no mesmo ano é aprovada uma nova tarifa aduaneira, deliberadamente protecionista.

Em 1959 ganha destaque o “brado de alerta contra a estagnação econômica que aflige toda a América Latina”, razão pela qual seu governo decide empreender a primeira iniciativa de caráter multilateral brasileira, a “Operação Pan-Americana” (p. 302-3).

A OPA não resultaria, porém, num novo Plano Marshall para a América Latina, como a diplomacia brasileira talvez esperasse que pudesse brotar de uma eventual reedição da generosidade americana para com a Europa do imediato pós-guerra, mas ela fez surgir um novo banco regional de fomento a projetos na região, o BID, que acabou sendo uma possibilidade a mais de financiamento para obras de infraestrutura e outros projetos, ademais de constituir um corpo técnico bem mais eficiente do que a Cepal – que tinha virado uma escola de promoção de novas teorias do desenvolvimento ao estilo keynesiano-prebischiano – para a elaboração de estudos e projetos com viabilidade para fazer avançar o desenvolvimento dos países latino-americanos.

De todas as grandes realizações da era JK – merece ser identificado a uma “era” – o Plano de Metas, apontando para um mirífico “50 anos em 5”, a própria OPA e a construção da nova capital serão as que marcarão de maneira indelével – junto com a primeira Copa do Mundo de Futebol, em 1958, e a Bossa Nova – esses anos que combinaram desenvolvimento com democracia (embora ameaçada por duas revoltas militares).

A edificação da nova capital não teve, ao que parece, um orçamento próprio, o que certamente contribuiu para um forte impulso inflacionário que teria efeitos perversos no governo imediatamente sucessor, como foi de fato o caso. A aceleração do processo inflacionário pode ter sido um fator bem mais relevante do que a “ameaça do comunismo” para as crises que se sucederam a partir de 1961, culminando no golpe militar de março de 1964.

A última mensagem de JK ao Congresso, datada de 15 de março de 1960, trouxe a confirmação da fundação do BID, mas também a promessa de uma área de livre comércio na América Latina, com a assinatura do Tratado de Montevidéu criando a Alalc.

Foi anunciada, ademais, a conclusão do Convênio Internacional do Café, bem como a ampliação regulada do comércio com os países socialistas. Mas JK também prenunciava, em relação ao ano anterior, um “desequilíbrio financeiro superior a 35 bilhões” (p. 334), ademais de um objetivo talvez nunca realizado por completo: “A malária está em vias de se extinguir em vários Estados” (p. 339). Brasília, de maneira otimista, foi designada como uma “revolução, porventura a mais fecunda do nosso tempo: a mudança na rota de um País empenhado em transpor a barreira do subdesenvolvimento…” (p. 340).

De maneira convergente com os demais governos da República de 1946, os principais problemas dos 14 anos de finalização da capital no Rio de Janeiro foram, pela ordem de importância: a inflação, os déficits fiscais e orçamentários, ademais dos diversos planos de desenvolvimento e das políticas voltadas à industrialização do país.

Pode-se dizer, assim, que o interesse nacional esteve definido por dois vetores negativos: inflação e déficit-dívida; e dois positivos: a modernização da economia pelo impulsionamento da industrialização.

A política externa logrou inserir o país nos principais acordos econômicos multilaterais do período, do lado comercial e do financiamento externo, mas não logrou definir ou influenciar padrões de políticas macroeconômicas e setoriais que estavam sendo adotados, na época, pelos países que se colocaram na vanguarda das economias de mercado e das democracias.


Paulo Roberto de Almeida é diplomata e professor, doutor em Ciências Sociais (Universidade de Bruxelas) e mestre em Economia Internacional (Universidade de Antuérpia). Dedica-se a atividades acadêmicas e é autor de livros sobre relações internacionais, diplomacia econômica e história diplomática do Brasil

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Mensagens presidenciais dos governos Jânio Quadros e João Goulart – Crises políticas e ruptura democrática, 1961-1964 - Paulo Roberto de Almeida (Portal Interesse Nacional)

Mensagens presidenciais dos governos Jânio Quadros e João Goulart – Crises políticas e ruptura democrática, 1961-1964

Se os primeiros 14 anos da República de 1946 foram turbulentos, mas administráveis, os quatro últimos fugiram completamente ao padrão oligárquico conservador que vinha se mantendo praticamente desde o início do regime republicano. JK construiu Brasília sem orçamento, à margem do orçamento, contra o orçamento, o que explica o salto inflacionário saindo dos dois dígitos […]

Comício de João Goulart na Central do Brasil

Se os primeiros 14 anos da República de 1946 foram turbulentos, mas administráveis, os quatro últimos fugiram completamente ao padrão oligárquico conservador que vinha se mantendo praticamente desde o início do regime republicano. 

JK construiu Brasília sem orçamento, à margem do orçamento, contra o orçamento, o que explica o salto inflacionário saindo dos dois dígitos para caminhar para três. O descontrole se deve basicamente aos impasses entre o Executivo e o Legislativo, que sempre foram a fonte de todas as crises políticas no Brasil, segundo a análise do constitucionalista Afonso Arinos de Melo Franco. 

Ele foi duas vezes ministro das relações exteriores, uma no governo presidencialista de Jânio Quadros, outra num dos gabinetes parlamentaristas do governo de João Goulart, o vice-presidente de JK que conseguiu se manter no cargo mesmo se apresentando em uma chapa adversária à do candidato vencedor, o populista Jânio Quadros, como autorizado pela legislação eleitoral da época. 

‘A única mensagem de Jânio Quadros, ao início de 1961, começa por enfatizar que a estabilidade político-social do Brasil’

A única mensagem de Jânio Quadros, ao início de 1961, começa por enfatizar que a estabilidade político-social do Brasil “se acha seriamente ameaçada pela difícil situação econômico-financeira; pelas tensões resultantes da inflação, que vem acompanhando um processo de desenvolvimento parcial e desequilibrado, e alimentadas por injustas desigualdades na distribuição da renda nacional” (p. 345). 

O diagnóstico estava basicamente correto, mas as prescrições corretivas eram excessivamente vagas. 

A concisão da mensagem (três páginas e meia) correspondeu inteiramente à duração do seu governo, que deu início, contudo, a uma saudável renovação na política externa, singularmente ausente de qualquer elaboração nesse documento. 

João Goulart, o vice-presidente eleito na chapa opositora à de Jânio, tomou posse em circunstâncias tão inéditas quanto possam ter sido aquelas que marcaram o final da República Velha, com ameaça de guerra civil e ruptura constitucional, que de fato ocorreu, com a emenda constitucional do parlamentarismo, um “remédio” improvisado, como aliás reconhecido nas primeiras linhas de sua primeira mensagem ao Congresso, em 15 de março de 1962: “É a primeira vez que se oferece esta oportunidade no atual regime parlamentarista, instituído no Brasil em decorrência de uma das suas mais graves crises políticas” (p. 351). 

Mas não foi sem alguma ironia talvez involuntária que Goulart escreveu logo adiante: 

‘O meu trabalho, que o País vem testemunhando, em favor da pacificação política e social, tem sido facilitado e estimulado pela ação do Conselho de Ministros, pelo patriotismo das Forças Armadas e pela compreensão dos dirigentes políticos e das classes trabalhadoras.’ (p. 352)

A direção da política do governo estava, portanto, fora de suas mãos, mas ele não se eximiu de insistir numa tese que passou a ser incorporada às propostas de todas as correntes progressistas dali por diante: “Quando se pede ao País maior redução do consumo para fazer crescer a taxa de investimento, ao mesmo tempo se deve pedir a cada um que arroste, segundo suas possibilidades, com os encargos do desenvolvimento” (p. 353-4). 

Novamente, a ameaça inflacionária e a promessa da distribuição de renda entram distintamente na agenda, assim como um novo personagem, herdado da era JK: a Sudene. Jango também insistia numa reforma bancária, na criação de um Banco Central, ao lado de um “Banco Rural” [sic], além da inevitável “reforma agrária”, descrita como uma “ideia-força irresistível, que já não pode mais ser protelada” (p. 357). 

Nenhuma novidade, em contrapartida, no terreno da política externa, a não ser que era “inegável a ameaça à sobrevivência de todos na hipótese de uma guerra nuclear” (p. 359), possibilidade que se materializou poucos meses à frente, com a crise dos mísseis soviéticos em Cuba (quando o Brasil foi até considerado pela administração Kennedy para fazer uma ponte com o líder cubano, dado o corte de relações diplomáticas). 

‘A mensagem de 1963 se deu com a recém retomada do sistema presidencialista, e já começa alertando para a “grave situação econômico-financeira em que se debate o País”’

A mensagem de 1963 se deu com a recém retomada do sistema presidencialista, e já começa alertando para a “grave situação econômico-financeira em que se debate o País” (p. 362). O déficit do Tesouro já tinha ascendido a “280 bilhões de cruzeiros, ou seja, quase 60% da arrecadação tributária”, obrigando o governo a “lançar mão de emissões maciças para manter a liquidez do sistema bancário nacional” (p. 364). 

Goulart reconheceu que o país caminhava para a “hiperinflação”, com “perspectivas sombrias”, pois as previsões “indicavam um aumento no custo de vida para 1963 em mais de 100%”, o que faria recrudescer “a luta pelos aumentos salariais”, com “imprevisíveis consequências” (p. 365). Para isso, o ministro extraordinário do Planejamento Celso Furtado elaborou um Plano Trienal, mas subordinando “as medidas anti-inflacionárias à política de desenvolvimento econômico e social do País” (idem). Anunciou ao mesmo tempo que a política nessa área deveria ser uma política de reformas, a primeira das quais a agrária, seguida da urbana (ou habitacional), da tributária, da bancária e da administrativa. No campo da diplomacia, nada mudaria, com exceção de uma nova ofensiva no plano multilateral: 

“No mesmo sentido [o do desenvolvimento com justiça social] que orienta a política externa – que não mudará –mantendo-se fiel à vocação pacífica do nosso povo, devotada intransigentemente à causa da fraternidade universal, da preservação da paz, da repulsa ao emprego da violência na solução dos problemas internacionais e à defesa do princípio da autodeterminação dos povos. (…)

Assim compreendida, a política externa deverá visar à modificação do presente mecanismo em que se desenrolam as trocas internacionais, com vistas à criação de uma nova estrutura institucional que realmente atente para as peculiaridades do comércio entre países em diferentes estágios de desenvolvimento econômico…” (p. 372-3).

Já se estava – a diplomacia brasileira era ativíssima nesse processo – no movimento coordenado pelos países em desenvolvimento no sentido da reforma do Gatt e da flexibilização da cláusula de reciprocidade do sistema multilateral de comércio, com vistas a conceder aos países em desenvolvimento maiores concessões tarifárias unilaterais – dos países e partes contratantes ao Gatt mais avançadas – sem que eles necessitassem oferecer em troca concessões equivalentes ou similares. 

De fato, isso foi obtido em 1964, com a introdução de uma parte IV do acordo do Gatt, “Comércio e Desenvolvimento”, garantindo esse tratamento preferencial, a adoção do Sistema Geral de Preferências, a esse efeito, e convocando a Conferência das Nações Unidos sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), que depois se dotou de um secretariado, passando a se reunir regularmente. Curiosamente, quando isso foi sacramentado, em março de 1964, o Brasil já sofria o golpe militar, com efeitos na delegação que conduzia esse processo em Genebra.

Na mensagem de 1963, Jango termina confirmando os “ideais de emancipação econômica e justiça social legados por Getúlio Vargas e expressos em sua carta-testamento” (p. 374), o que deve ter consolidado nos anti-varguistas civis e militares a intenção de se livrar daquele presidente na primeira oportunidade. Ela surgiu, meros 15 dias depois que ele encaminhou sua derradeira mensagem, em 15 de março de 1964, inclusive porque ele começou o documento, já num clima divisionista, entendendo que ela deveria ser

“… por igual, uma conclamação a todos os brasileiros lúcidos e progressistas [sic], para que, cada vez mais unidos e determinados, nos coloquemos à altura do privilégio, que a história nos reservou, de realizar a nobre tarefa de transformação de uma nação arcaica em uma nação moderna, verdadeiramente democrática e livre.” (p. 376)

O tom de dramaticidade já vinha inscrito logo na primeira seção da mensagem, intitulada “O Momento Nacional”, proclamando o “ímpeto criador de um povo, consciente, afinal, de suas condições de atraso e, por isso mesmo inconformado com a ignorância e a miséria e, mais do que nunca, deliberado a progredir” (p. 377). 

Os redatores da mensagem, provavelmente forçando Goulart a ser mais corajoso do que normalmente ele seria, acreditavam mesmo que ele poderia conduzir as chamadas reformas de base, “na lei ou na marra”, como seu cunhado Brizola proclamava abertamente naqueles dias. 

Cabe com efeito recordar que o famoso comício da Central do Brasil, no qual Jango havia anunciado todas as “reformas de base” que seu governo pretendia empreender, tinha sido feito dois dias antes, em 13 de março, com chamamentos ainda mais explícitos do que os que estavam sendo feitos na mensagem ao Congresso.

‘Mesmo a política externa, nessa visão, deveria empreender uma “cruzada histórica em prol da eliminação das desigualdades’

As teses defendidas nessa primeira parte expositiva do documento têm muito mais a ver com as políticas defendidas pelos partidos e movimentos de esquerda, em palanques que começavam a se espalhar pelo país, do que com uma exposição sóbria sobre as prioridades do governo em matéria de políticas macroeconômicas e setoriais. Mesmo a política externa, nessa visão, deveria empreender uma “cruzada histórica em prol da eliminação das desigualdades [entre países ricos e pobres] que violentam o próprio conceito de soberania nacional” (p. 381). 

Nessa parte, os conceitos distinguindo países exportadores de produtos primários e aqueles praticando “um sistema colonialista já ultrapassado e repelido” tendiam a se afastar das posturas mais moderadas que sempre exibiu a diplomacia profissional: 

A nação incapaz de repelir as tentativas de tutela que contra ela se armem, e destituída de energia bastante para impedir a alienação do produto do seu trabalho e das suas riquezas naturais, compromete-se irremediavelmente a sua própria segurança e submete-se a um processo de dominação, em que é sacrificada a liberdade de opção, que deve ser um dos seus apanágios.” (p. 381)

A seção sobre política externa se estende ainda por três parágrafos adicionais no mesmo tom de demandas insistentes às “nações capitalistas e socialistas plenamente industrializadas” por maior assistência internacional e financiamento ao desenvolvimento, “mediante a reestruturação do comércio internacional e a liberação de recursos, aplicados na corrida armamentista, para as grandes tarefas da paz e da prosperidade de todos os povos” (p. 382).

Em outros termos, a mensagem política do governo Goulart, as questões sociais e mesmo de política externa, dirigida a políticos em grande parte conservadores, vinha redigida num estilo claramente progressista, quase socialista, o que terminou por precipitar sua queda, menos de um mês depois, fechando a quarta República brasileira.

Mas a seção final de sua mensagem, por sinal mais extensa do que as duas anteriores, é igualmente desafiadora, ao enfeixar sob um título bastante incisivo – “A Deliberação de Progredir” –, o conjunto de “reformas de base” que João Goulart pretendia empreender nos dois anos finais de seu governo. 

As subseções também são reveladoras de seus propósitos: “Planejamento como Norma de Governo”; “Reescalonamento da Dívida Externa”; “Remessa de Lucros”; Defesa do Patrimônio Mineral”; “Monopólio de Importação” (aplicado sobretudo ao petróleo); “Supra e Refino” (Superintendência de Política Agrária e desapropriação em favor da Petrobrás de todas as refinarias particulares de petróleo); “Reforma Bancária”; “Sonegação Fiscal”; “Reforma Administrativa” e “Salário Móvel” (ou seja, indexado à inflação). Goulart ainda elenca uma série de empreendimentos e projetos nas áreas da infraestrutura (incluindo um ambicioso sistema ferroviário nacional) e industrial (concentrado sobretudo a Petrobrás) e a renovação tecnológica das Forças Armadas. 

‘Mesmo que não houvesse o golpe, teria sido praticamente impossível a Goulart ver todos os seus programas e projetos aprovados pelo Congresso no curso do período restante de seu governo’

Mesmo que não houvesse o golpe encomendado em duas semanas (talvez precipitado por um general mais afoito), teria sido praticamente impossível a Goulart ver todos os seus programas e projetos aprovados pelo Congresso no curso do período restante de seu governo. 

De todos eles, o único realmente entregue foi a Universidade de Brasília, erigida com recursos estimados em dez milhões de dólares em 1964, “obtidos na maior parte, como doação de organismos internacionais e fundações ou mediante programas bilaterais de assistência” (p. 422). 

Quando o golpe de Estado, militar, de 31 de março liquidou com o seu governo, uma das primeiras intervenções feitas pelos militares foi justamente na UnB.

É diplomata e professor, doutor em Ciências Sociais (Universidade de Bruxelas) e mestre em Economia Internacional (Universidade de Antuérpia). Dedica-se a atividades acadêmicas e é autor de livros sobre relações internacionais, diplomacia econômica e história diplomática do Brasil

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

sábado, 25 de outubro de 2025

Vulnerabilidade na Defesa - Rubens Barbosa Portal Interesse Nacional

Vulnerabilidade na Defesa
Rubens Barbosa
Portal Interesse Nacional
, 24/10/2025
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É senso comum que a falta de recursos e a imprevisibilidade orçamentaria estão afetando seriamente a capacidade operacional das Forças Armadas brasileiras em um momento de grande instabilidade política no mundo e agora na América do Sul com a ameaça bélica dos EUA contra a Venezuela e a Colômbia para eliminar o tráfico de drogas para os EUA.
Surge agora uma oportunidade para esses assuntos sejam discutidos democraticamente na campanha da eleição presidencial de outubro de 2026. Chegou a hora de a sociedade brasileira enfrentar direta e objetivamente uma discussão madura sobre o papel das FFAA e os meios para poder exercê-lo de forma efetiva.

Por Rubens Barbosa, coordenador editorial do portal Interesse Nacional


Vulnerabilidade na Defesa

É senso comum que a falta de recursos e a imprevisibilidade orçamentaria estão afetando seriamente a capacidade operacional das Forças Armadas brasileiras em um momento de grande instabilidade política no mundo e agora na América do Sul com a ameaça bélica dos EUA contra a Venezuela e a Colômbia para eliminar o tráfico de drogas para […]

Foto: Sgt Djalma / CCOMSEx

É senso comum que a falta de recursos e a imprevisibilidade orçamentaria estão afetando seriamente a capacidade operacional das Forças Armadas brasileiras em um momento de grande instabilidade política no mundo e agora na América do Sul com a ameaça bélica dos EUA contra a Venezuela e a Colômbia para eliminar o tráfico de drogas para os EUA.

O déficit fiscal derivado de mais gastos do que receitas nas contas públicas tornam difícil atender as demandas das três forças por modernização da frota marítima, dos aviões de combate e dos projetos estratégicos do Exército, entre eles o Sistema de Defesa das Fronteiras.

‘O Senado aprovou nesta semana um projeto de lei complementar que prevê R$ 30 bilhões para as Forças Armadas’

Como uma solução paliativa, o plenário do Senado aprovou nesta semana um projeto de lei complementar que prevê R$ 30 bilhões para as Forças Armadas investirem ao longo de seis anos em compras de equipamentos e desenvolvimento de tecnologias estratégicas. 

O projeto, que não é uma iniciativa do Executivo, foi apresentado pelo Senador Carlos Portinho (PL-RJ) e relatado no Senado pelo líder do governo no Congresso Randolfe Rodrigues (PT- AP). O texto retira os recursos do arcabouço fiscal, ou seja, os gastos. não ficarão sujeitos às metas fiscais e foi aprovado por 57 votos. O líder da oposição Rogério Marinho (PL-RN) criticou o governo federal pelo fato de os investimentos escaparem do arcabouço fiscal. 

‘A falta de investimentos nas Forças Armadas pode trazer consequências até para a soberania nacional’

A falta de investimentos nas Forças Armadas pode trazer consequências até para a soberania nacional. “Não parece ser uma decisão madura sucatearmos as Forças. E não estamos falando de recursos para contratação de pessoal. Estamos falando de compra de submarinos, estaleiro, programa nuclear, navios de patrulha, proteção das fronteiras, aquisição de caças, helicópteros”, observou o líder do governo, como se essa questão não fosse uma decisão do governo de turno.

Portinho argumentou de forma semelhante. Disse que a defasagem vem desde 2014 e que isso é “uma ameaça real para a nossa Indústria de defesa que o investimento também seria uma “oportunidade para vender [equipamentos e tecnologias] para países que estão em guerra”.

Por enquanto não há nada de concreto. Apenas declarações de parlamentares e uma decisão do Senado. Falta um pronunciamento claro do Ministério da Defesa. Espera-se que o projeto de lei em discussão no Congresso, ao passar pelo exame da Câmara dos Deputados, não seja desvirtuado com emendas que nada tenham que ver com seus objetivos, nem que seja utilizado pelo Executivo para outras finalidades.

‘O problema de recursos para as Forças Armadas começou a se agravar a partir de 1985. Sucessivos governos civis deixaram as Forças Armadas mal equipadas’

Na realidade, o problema de recursos para as Forças Armadas começou a se agravar a partir de 1985. Sucessivos governos civis deixaram as Forças Armadas mal equipadas, com cortes orçamentários para as três Armas (cerca de 85% comprometido com o pagamento de pessoal e encargos). Essas dificuldades financeiras aumentaram nos últimos anos, dificultando a missão definida pela Constituição (artigo 142) de defesa da soberania e segurança interna. 

Cabe ao Congresso, em conjunto com o Executivo, não só prover os recursos indispensáveis para atender às necessidades das Forças Armadas, mas também definir matérias em tramitação que afetam diretamente as FFAA. Seria importante que o Congresso se manifestasse sobre o projeto que regulamenta a participação dos militares na política (sem discussão e aprovação neste ano não vai vigorar para a eleição de 2026) e também a revisão do papel das FFAA previsto no artigo 142. 

Surge agora uma oportunidade para esses assuntos sejam discutidos democraticamente na campanha da eleição presidencial de outubro de 2026. Chegou a hora de a sociedade brasileira enfrentar direta e objetivamente uma discussão madura sobre o papel das FFAA e os meios para poder exercê-lo de forma efetiva.

Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional



sexta-feira, 17 de outubro de 2025

O encontro de Mauro Vieira com Marco Rubio - Rubens Barbosa (Portal Interesse Nacional)

 Editorial do portal Interesse Nacional, assinado pelo embaixador Rubens Barbosa, sobre a primeira reunião entre o Brasil e os EUA, com os seus respectivos chanceleres, realizada na Casa Branca, a respeito das medidas unilaterais dos EUA contra os interesse nacionais do Brasil. PRA

O encontro de Mauro Vieira com Marco Rubio

Rubens Barbosa 

Portal Interesse Nacional, 17/10/2025

A primeira reunião substantiva entre os dois ministros do exterior do Brasil e dos EUA em quase dez meses de governo em Washington mostra que o pragmatismo prevaleceu sobre a ideologia na relação entre os dois países, mesmo que ainda haja desafios pela frente

Depois da abertura do canal direto entre o Palácio do Planalto e a Casa Branca com o telefonema de Trump para Lula, foram facilitados os contatos entre o Departamento de Estado e o Itamaraty.

Assim, nesta semana o ministro Mauro Vieira se encontrou com Marco Rubio na Casa Branca para discutir assuntos econômicos e comerciais e outras questões prioritárias na região. Foi o primeiro encontro substantivo entre os dois ministros do exterior do Brasil e dos EUA em quase dez meses de governo em Washington.

Com essa reunião, foi estabelecida uma agenda técnica a ser desenvolvida pelo ministro e vice-presidente Geraldo Alckmin e os técnicos dos ministérios da Indústria, do Itamaraty e da Fazenda. Como se poderia esperar, os ministros não entraram na substância das diferentes matérias.

‘Devem ter entrado na agenda a regulamentação e a tributação das Big Techs e a redução ou eliminação dos impostos adicionais aos produtos brasileiros’

Devem ter entrado na agenda, do lado brasileiro, a regulamentação e a tributação das Big Techs, a redução ou eliminação dos 40% adicionais e mesmo os 25% impostos aos produtos brasileiros. 

Além dessas questões, devem ter sido mencionadas na lista de reivindicações brasileiras, a inclusão de carne, café e outros produtos na lista de exceção de tarifas e os pontos investigados na seção 301 da lei de comércio norte-americana (restrições propriedade intelectual, patentes, Pix, discriminação contra produtos norte-americanos, reflorestamento, entre outros).

Do lado norte-americano, como o Brasil não tem superávit na balança comercial bilateral, devem ter sido mencionados a redução de tarifas para alguns produtos específicos como etanol e os itens incluídos na investigação da Seção 301, dentre os quais sobressaem as questões de interesse das Big Techs. 

‘O presidente norte-americano antecipou que o Brasil deveria abandonar a ideia de criar uma moeda para substituir o dólar em transações entre os membros do Brics’

O presidente norte-americano antecipou que o Brasil deveria abandonar a ideia de criar uma moeda para substituir o dólar em transações entre os membros do Brics, defendida por Lula, mas não pela China ou pela Rússia. Outro item que deve ter entrado na conversa é a exportação de minérios estratégicos como terras raras, a respeito dos quais o governo brasileiro já enviou ao Congresso um marco regulatório. O ministro das Minas e Energia foi convidado pelo seu colega nos EUA para discutir essa matéria.

A única incerteza do encontro foi a questão política do julgamento do ex-presidente e as sanções impostas sobre membros do governo e do STF. A informação dada por Vieira é a de que o lado brasileiro pediu a revogação das sanções da Lei Magnitski. O risco que se corre é o lado brasileiro pedir a retirada das sanções, e o lado norte-americano reabrir a questão do julgamento de Bolsonaro. 

Em paralelo às questões econômicas e comerciais, os dois ministros devem ter examinado, sem entrar em detalhes, do ângulo político, as ameaças dos EUA à Venezuela (ação secreta da CIA e mudança de regime), a questão do Haiti e de Cuba. É possível que o tema dos imigrantes brasileiros também tenha sido suscitado. Nesses assuntos, em vista da rigidez ideológica de Marco Rubio, não deve ter havido maiores concordâncias, mas registro das posições de ambos os lados.

‘O encontro mostrou que o pragmatismo prevaleceu sobre a ideologia na relação entre os dois países’

O encontro mostrou que o pragmatismo prevaleceu sobre a ideologia na relação entre os dois países. Na quarta-feira, o embaixador Jamieson Greer, representante comercial dos EUA (USTR) reafirmou que a sobretaxa de 40% contra o Brasil, citando como justificativa, “preocupações extremas com o estado de Direito, a censura e os direitos humanos no país”. Scott Bessent afirmou que “detenção ilegal de cidadãos norte-americanos que estavam no Brasil”.

Eduardo Bolsonaro e Paulo Figueiredo também estiveram no Departamento de Estado na véspera do encontro entre os ministros. O fato de o encontro ter sido na Casa Branca sinalizou que, nesta reunião, o pragmatismo de Trump foi mais forte.

Em rápida entrevista depois da reunião na Casa Branca, Mauro Vieira não deu maiores detalhes sobre as conversas, mas confirmou a expectativa positiva do encontro, o que deverá abrir as portas para negociações técnicas que permitirão aos dois presidentes decidirem sobre essas questões no encontro, [que] ainda não está marcado, e [que] poderia realizar-se em novembro.

Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional.

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

As mensagens presidenciais de 1947 a 1960: Desenvolvimentismo e inflacionismo - Paulo Roberto de Almeida (portal Interesse Nacional)

 Meu trabalho mais recente publicado, originais n. 5011, publicados 1595

As mensagens presidenciais de 1947 a 1960 – Desenvolvimentismo e inflacionismo

Nota sobre as mensagens presidenciais ao Congresso, de 1947 a 1960

Portal Interesse Nacional, 8 outubro 2025

link: https://interessenacional.com.br/portal/as-mensagens-presidenciais-de-1947-a-1960-desenvolvimentismo-e-inflacionismo/

Juscelino Kubitscheck começa por identificar os “problemas de base do Brasil”

A Primeira República, depois chamada de “velha” pelos historiadores, durou exatamente 41 anos, não sem alguns tropeços pelo caminho: revolta da Armada, rebeliões internas, revoltas tenentistas começaram a abalar seus fundamentos desde os primeiros tempos. 

Mais desafiadora foi a fraude perpetrada por Washington Luiz, em 1930, ao forçar a candidatura de seu pupilo Júlio Prestes, elegendo-o pelo meio da “verificação dos resultados” das urnas (que era o expediente usado pelas oligarquias para eleger quem elas quisessem), o que resultou no rompimento do esquema “café com leite” entre Minas Gerais e São Paulo, abrindo espaço para os gaúchos castilhistas irromperem na política nacional. 

‘Uma das virtudes da República Velha foi a de produzir boas mensagens presidenciais ao Congresso sobre o estado da nação a cada quadriênio’ 

Uma das virtudes da República Velha, do ponto de vista aqui seguido, foi a de produzir boas mensagens presidenciais ao Congresso sobre o estado da nação a cada quadriênio (dois deles interrompidos pela morte do incumbente). 

As mensagens retornaram em 1933, como examinado numa avaliação anterior desta série, mas só enquanto o Legislativo conseguiu funcionar “normalmente”, o que começou na Assembleia Constituinte de 1933-34 e veio a terminar com o golpe do Estado Novo de novembro de 1937, acabando com o Congresso e com a representação federativa. 

No intervalo tivermos a intentona comunista de novembro de 1935 e a decretação da Lei de Segurança Nacional. 

Com o golpe do Estado Novo, em novembro de 1937, o Brasil voltou a ser um Estado unitário durante oito anos, conduzido por um ditador que ainda realizou o prodígio de terminar popular, ao introduzir reformas com sentido social, em especial no terreno trabalhista e sindical (aqui consagrando o atrelamento oficial ao Estado, como no regime fascista de Mussolini, cuja Carta del Lavoro inspirou a nossa Consolidação das Leis do Trabalho, vigente até nossos dias).

As mensagens presidenciais de 1947 a 1964 são retomadas no segundo ano do governo de Eurico Gaspar Dutra, depois de introduzida uma nova Constituição, a quinta de nossa trajetória republicana; estão reunidas no volume Documentos Parlamentares 127 da Câmara dos Deputados (1978).

‘O volume que consolida todas as mensagens do período da República de 1946 apresenta um retrato impressionante das grandes questões que agitaram o Brasil’

O volume que consolida todas as mensagens do período da República de 1946 apresenta um retrato impressionante das grandes questões que agitaram o Brasil nesses 17 anos e dos principais problemas que estiveram na origem da instabilidade política registrada naqueles anos, mas também de um grande impulso econômico em direção de uma sociedade urbanizada e industrializada. Registre-se, aliás, que o Introdutor desse volume, José Augusto Guerra, chama a atenção para um aspecto dessa instabilidade, que parece ter persistindo até a atualidade: 

Observa-se, porém, que à exceção de Eurico Dutra e Juscelino Kubitschek, nenhum dos presidentes passou a faixa presidencial ao sucessor com as honras do estilo. Getúlio suicidou-se; Café Filho foi declarado impedido; Carlos Luz, Presidente por 24 horas, também declarado impedido; Jânio Quadros surpreendeu a nação (e talvez a si próprio) renunciando espetacularmente; e João Goulart foi deposto, estranhos episódios estes, que ainda hoje repercutem no inconsciente coletivo de nosso povo, como fatos que não escondem a gravidade de um mal antigo, que remonta às origens de nossa formação, e para o qual nossas elites não encontraram ainda solução. Em nosso País, toda sucessão presidencial assume as proporções de crise política. (p. 18-19)

Vamos examinar, sinteticamente, quais foram esses problemas mais graves e como se operou uma das mais importantes fases da modernização econômica e social do Brasil antes apenas agrário, depois dotado de uma indústria relativamente pujante. 

O período também superou a “americanização” de sua política externa, desde os primeiros anos da Guerra Fria, para lograr uma breve, mas vibrante, Política Externa Independente, que também dividiu o país e suas elites. 

‘Os temas constantes em cada uma das mensagens são, sem dúvida, o problema da inflação, os déficits públicos e o foco no desenvolvimento’

Os temas constantes em cada uma das mensagens são, sem dúvida, o problema da inflação, os déficits públicos e o foco presente em praticamente todos os governos com a questão do desenvolvimento, invariavelmente impulsionada pelo Estado.

Na sua primeira mensagem ao Congresso Nacional, o presidente Eurico Dutra, por exemplo, já começa dizendo que o “governo me foi transmitido em período dos mais difíceis da vida nacional, vivamente conturbada não só pelo desequilíbrio econômico-financeiro, mas também pelas paixões políticas, intranquilidade e desconfiança gerais, – tudo agitado por uma situação internacional agitada e incerta” (p. 31). 

Havia escassez de mercadorias importadas, restrições como resquício da guerra recente, saldos em divisas congelados pelos países que importaram durante o conflito global, num país que ainda exibia 55% de analfabetos. 

No plano externo, cabe registrar a “continuação das linhas tradicionais de nossa política externa” (p. 52), sendo que os diplomatas foram chamados a estimular novamente os acordos com os países europeus para atrair imigrantes ao Brasil (p. 53). 

‘Nos anos 1948-1950, ressurgem os temas da renegociação de nossas dívidas e a busca de novos empréstimos’

Nos anos 1948-1950, ressurgem os temas da renegociação de nossas dívidas vindas ainda das décadas passadas, assim com a busca de novos empréstimos para estabilização dos déficits externos.

Nos anos 1951-1952, o governo Vargas volta a se preocupar com a inflação, já identificada como resultante do “desequilíbrio orçamentário” (p. 139), ao passo que os anos 1953-1954 são dominados pela questão da exploração do petróleo, assim como pelo “estreitamento do relações com países insuficientemente desenvolvidos” (p. 167), ainda que um acordo de assistência militar tenha sido concluído com os Estados Unidos.

 O “retorno de capitais estrangeiros”, isto é, lucros e dividendos, já é visto como um problema para o balanço de pagamentos, apontando-se a necessidade de uma lei limitativa dos fluxos. O vezo nacionalista e intervencionista encontra-se expressamente registrado, ao se indicar que

Mesmo nos setores em que, tradicionalmente, o Estado brasileiro se tem abstido de atuar de forma direta, a iniciativa privada, nacional ou estrangeira, mostra-se desinteressada em aplicar-se na supressão daqueles pontos de asfixia. (p. 170). 

Vargas conclui sua mensagem de 1954 (antes que a crise engolfasse seu governo) dizendo que o governo se empenha “na busca de meios para corrigir o desgaste de seus instrumentos de ação sobre a conjuntura econômica… Urge desinflacionar, mas de tal arte [sic] que não se percam as conquistas da expansão” (p. 178). 

‘O governo Vargas constitucional já tinha aderido ao desenvolvimentismo como a grande ideologia do interesse nacional’

Em resumo, o governo Vargas constitucional já tinha aderido ao desenvolvimentismo como a grande ideologia do interesse nacional, concluindo ao dizer que o panorama descrito “comprova o acerto das diretrizes do governo” (idem). Meses depois a crise política terminaria por encerrar prematuramente esse mesmo governo. 

A única e solitária mensagem do governo Café Filho, em 1955, começa com quatro grandes títulos, tratando respectivamente dos seguintes temas (todos em caixa alta): “A crise política e militar, a morte do presidente Getúlio Vargas e a ascensão do novo governo” (p. 181-83); “A conduta das classes armadas, das forças políticas e do povo” (p. 183-84); “Mensagem de esperança” (p. 185); “O governo e as eleições” (p. 185-88); “A crise econômica e financeira” (p. 189-90) e “Revisão constitucional, reforma eleitoral e legislação trabalhista”(p. 190-91).

‘O “interesse nacional” foi deslocado para a resolução do ambiente de crise criado com a ruptura dramática ocorrida em 1954’

Ou seja, o “interesse nacional” foi deslocado para a resolução do ambiente de crise criado com a ruptura dramática ocorrida em 1954, o primeiro ano de funcionamento da prometedora estatal do petróleo, a Petrobrás, “com capital inicial de 4 bilhões de cruzeiros” e a constituição de um “fundo nunca inferior a 3% nem superior a 5% da receita cambial, a fim de assegurar divisas para o programa da Petrobrás” (p. 193). 

Mas, como Café Filho indicou igualmente, ao contrário do superávit previsto, “a execução orçamentária em 1954 evidenciou a existência de um vultoso déficit da ordem de 7 bilhões de cruzeiros” (p. 194), o que foi inteiramente coberto “com emissões de papel-moeda”, exatamente no mesmo montante. 

O regime cambial já havia sido alterado em 1953, instituindo-se “parcialmente, o regime de câmbio livre, com exclusão do café, algodão e cacau” (p. 195), por acaso os principais itens da exportação. Mesmo demonstrando sua contrariedade com “as disputas de caráter meramente personalista ou faccioso” (p. 188), Café Filho conclui reconhecendo, que a despeito da “estrutura da autoridade estatal de nosso sistema presidencialista, o Parlamento recuperou a força que lhe é própria, como instrumento de representação das massas” (p. 206), o que iria ser plenamente demostrado nos conflitos políticos dos anos à frente. 

‘Juscelino Kubitscheck começa por identificar os “problemas de base do Brasil”, sendo estes a “valorização das áreas subdesenvolvidas e planejamento econômico”’

Ao iniciar a primeira de suas cinco mensagens ao Congresso Nacional, de 1956 a 1960, Juscelino Kubitscheck começa por identificar os “problemas de base do Brasil”, sendo estes a “valorização das áreas subdesenvolvidas e planejamento econômico” (p. 212). 

Ele continua por um “balanço da realidade nacional”, numa fase em que a taxa de crescimento da economia já se situava acima de 5% ao ano, mas já marcando o dobro para a alta do custo de vida, o que se explicava pela “desproporcionalidade entre o crescimento do volume de despesas monetárias e a quantidade de bens e serviços oferecidos” (p. 215), um diagnóstico provavelmente feito por algum tecnocrata do BNDE. Juscelino não deixa de reconhecer que tinha encontrado “o País sob os intensos e perniciosos efeitos da espiral inflacionária (…) com um déficit financeiro de pouco mais de onze bilhões de cruzeiros” (p. 215-160. 

Ele também anunciava a liquidação de débitos externos, “alguns em circulação desde 1888” (p. 224), e a existência de 23 acordos bilaterais de pagamentos ainda a resolver (p. 239). Ao tratar do seu amplo programa de metas, prometendo que a indústria automobilística “deve ser implantada em bases amplas e definitivas” (p. 261), em nenhum momento do relatório – em grande medida relativo a 1955 – Juscelino menciona o projeto de construir uma nova capital. 

Esse tema, na verdade, só aparece na mensagem de 1958, quando ele promete que todos os trabalhos e serviços “que uma cidade moderna exige, estarão ultimados quando ali [no Planalto Central] se instalarem os três Poderes da República, a 21 de abril de 1960” (p. 297), sem que se mencionem, no entanto, os custos previstos no empreendimento; no mesmo ano é aprovada uma nova tarifa aduaneira, deliberadamente protecionista. 

‘Em 1959, o governo decide empreender a primeira iniciativa de caráter multilateral brasileira, a “Operação Pan-Americana”’

Em 1959 ganha destaque o “brado de alerta contra a estagnação econômica que aflige toda a América Latina”, razão pela qual seu governo decide empreender a primeira iniciativa de caráter multilateral brasileira, a “Operação Pan-Americana” (p. 302-3). 

A OPA não resultaria, porém, num novo Plano Marshall para a América Latina, como a diplomacia brasileira talvez esperasse que pudesse brotar de uma eventual reedição da generosidade americana para com a Europa do imediato pós-guerra, mas ela fez surgir um novo banco regional de fomento a projetos na região, o BID, que acabou sendo uma possibilidade a mais de financiamento para obras de infraestrutura e outros projetos, ademais de constituir um corpo técnico bem mais eficiente do que a Cepal – que tinha virado uma escola de promoção de novas teorias do desenvolvimento ao estilo keynesiano-prebischiano – para a elaboração de estudos e projetos com viabilidade para fazer avançar o desenvolvimento dos países latino-americanos.

‘De todas as grandes realizações da era JK – o Plano de Metas, a OPA e a construção da nova capital serão as que marcarão de maneira indelével esses anos que combinaram desenvolvimento com democracia’

De todas as grandes realizações da era JK – merece ser identificado a uma “era” – o Plano de Metas, apontando para um mirífico “50 anos em 5”, a própria OPA e a construção da nova capital serão as que marcarão de maneira indelével – junto com a primeira Copa do Mundo de Futebol, em 1958, e a Bossa Nova – esses anos que combinaram desenvolvimento com democracia (embora ameaçada por duas revoltas militares). 

A edificação da nova capital não teve, ao que parece, um orçamento próprio, o que certamente contribuiu para um forte impulso inflacionário que teria efeitos perversos no governo imediatamente sucessor, como foi de fato o caso. A aceleração do processo inflacionário pode ter sido um fator bem mais relevante do que a “ameaça do comunismo” para as crises que se sucederam a partir de 1961, culminando no golpe militar de março de 1964. 

A última mensagem de JK ao Congresso, datada de 15 de março de 1960, trouxe a confirmação da fundação do BID, mas também a promessa de uma área de livre comércio na América Latina, com a assinatura do Tratado de Montevidéu criando a Alalc.

Foi anunciada, ademais, a conclusão do Convênio Internacional do Café, bem como a ampliação regulada do comércio com os países socialistas. Mas JK também prenunciava, em relação ao ano anterior, um “desequilíbrio financeiro superior a 35 bilhões” (p. 334), ademais de um objetivo talvez nunca realizado por completo: “A malária está em vias de se extinguir em vários Estados” (p. 339). Brasília, de maneira otimista, foi designada como uma “revolução, porventura a mais fecunda do nosso tempo: a mudança na rota de um País empenhado em transpor a barreira do subdesenvolvimento…” (p. 340).

De maneira convergente com os demais governos da República de 1946, os principais problemas dos 14 anos de finalização da capital no Rio de Janeiro foram, pela ordem de importância: a inflação, os déficits fiscais e orçamentários, ademais dos diversos planos de desenvolvimento e das políticas voltadas à industrialização do país.

‘O interesse nacional esteve definido por dois vetores negativos: inflação e déficit-dívida; e dois positivos: a modernização da economia pelo impulsionamento da industrialização’

 Pode-se dizer, assim, que o interesse nacional esteve definido por dois vetores negativos: inflação e déficit-dívida; e dois positivos: a modernização da economia pelo impulsionamento da industrialização. 

A política externa logrou inserir o país nos principais acordos econômicos multilaterais do período, do lado comercial e do financiamento externo, mas não logrou definir ou influenciar padrões de políticas macroeconômicas e setoriais que estavam sendo adotados, na época, pelos países que se colocaram na vanguarda das economias de mercado e das democracias.

É diplomata e professor, doutor em Ciências Sociais (Universidade de Bruxelas) e mestre em Economia Internacional (Universidade de Antuérpia). Dedica-se a atividades acadêmicas e é autor de livros sobre relações internacionais, diplomacia econômica e história diplomática do Brasil

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quinta-feira, 4 de setembro de 2025

O interesse nacional nas mensagens ao Congresso entre 1933 e 1937: ameaça das ideologias e centralização a favor do Estado - Palo Roberto de Almeida (Portal Interesse Nacional)

 

O interesse nacional nas mensagens ao Congresso entre 1933 e 1937: ameaça das ideologias e centralização a favor do Estado

Entre 1933 e 1937, as mensagens de Getúlio Vargas ao Congresso revelaram a centralização do poder em nome do “interesse nacional”, a omissão sobre resistências como 1932, a adoção de reformas sociais e eleitorais, e o avanço do autoritarismo diante da ameaça de ideologias radicais e da instabilidade internacional

O introdutor ao volume das mensagens presidenciais relativas aos quatro anos dos governos provisório e constitucional de Getúlio Vargas, entre 1933 e 1937, prof. José Augusto Guerra, surpreende-se desde o primeiro parágrafo de sua competente apresentação ao conteúdo desses importantes documentos da política nacional: “espera-se uma exposição tanto quanto possível minuciosa dos acontecimentos ocorridos em um passado próximo e depara-se com uma análise histórica de um passado remoto. Nisto difere das Mensagens que a antecederam, desde a de Deodoro da Fonseca” (Documentos Parlamentares 126, 1978, p. 9). Getúlio proferiu longo discurso na Assembleia Constituinte, dando conta “das razões que levaram à deposição do Presidente Washington Luís”, em 1930:

A nova distribuição das rendas, resultante da descentralização [efetuada pela Constituição de 1891, permitindo aos estados não só criarem impostos de exportação, mas também contratarem impostos externos sem o aval da União], foi péssima, refletindo-se desastradamente na vida dos Estados, para deixar uns na opulência [como São Paulo, por exemplo] e outros na miséria. Proveio daí, em parte, o estabelecimento das oligarquias locais [crítica à política do “café com leite”], tornadas endêmicas e voltadas para o centro, como no tempo da monarquia, e dele pedindo ordens e mendigando favores. Criou-se, mercê desse estado de coisas, uma espécie de casta governamental, instalada no poder, com o privilégio de aproveitar e distribuir os seus proventos. (Idem, p. 10)

Encontram-se já ali as fontes da forte centralização do poder da União que Getúlio promoveria em 1937, e que perdurou no Estado Novo e foi novamente retomada sob o regime militar de 1964-1985. Em contrapartida, Vargas sequer referiu-se ao movimento constitucionalista de 1932, com origem em São Paulo e que se opunha, justamente, às suas tendências autoritárias e centralizadoras. O Introdutor explica porque: 

Nessa deliberada omissão aos fatos de que todo participaram, Vargas revela uma das características de seu temperamento: o silêncio. Não era de soprar brasas, preferia contemplar a fumaça do seu próprio charuto. Nesse longo discurso de 15 de novembro de 1933, nenhum comentário sobre a guerra civil de 1932. Silêncio total sobre os fatos e emite elogios aos atos do Governo Provisório. (Idem, ibidem)

Mas o resto da mensagem contém evidências de atos que já correspondiam ao chamado interesse nacional: reforma eleitoral com a instituição do voto secreto, a representação proporcional, o voto feminino, a entrega à Justiça a apuração do pleito, e a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e a legislação social, ou seja, reformas que correspondiam a aspirações nacionais que estiveram embutidas nas várias revoltas tenentistas da década precedente. A segunda mensagem não corresponde ao ano de 1934, todo ele ocupado pela Constituinte, na qual brilhou Oswaldo Aranha como ministro da Fazenda. Ele poderia ter sido escolhido como presidente nesse primeiro período, mas Vargas, maquiavelicamente, despachou-o para a embaixada em Washington, onde ficou até o golpe do Estado Novo, demitindo-se imediatamente após, para tornar-se ministro das relações exteriores em março de 1938, inclusive como forma de opor-se aos “fascistas” do governo.

A segunda mensagem, de maio de 1935, evidenciou a pouca adesão de Vargas a um regime de poder compartilhado com a representação política. O mundo já exibia os sinais claros de crise nas democracias liberais, em face da ascensão dos fascismos, do comunismo soviético, dos regimes autoritários ou já totalitários. O Brasil se recuperava da crise do início da década, mas já no final do ano foi confrontado à intentona comunista, o que colocou o problema da segurança do Estado como tema prioritário, tornado preeminente na mensagem do ano seguinte. Grupos radicais começam a se organizar para as eleições de 1938, o que projeta a primeira polarização que se consolidaria de forma permanente depois: entre direita e esquerda. No ano seguinte, 1936, já se instalava o Tribunal de Segurança Nacional, abrindo o caminho para o golpe ditatorial de novembro de 1937. 

‘O “interesse nacional”, naqueles anos, deveria estar concentrado no esforço de recuperação econômica, no contexto da depressão mundial, e de construção de uma economia mais voltada para a industrialização interna do que para a exportação de commodities, em primeiro lugar o café’

O “interesse nacional”, naqueles anos, deveria estar concentrado no esforço de recuperação econômica, no contexto da depressão mundial, e de construção de uma economia mais voltada para a industrialização interna do que para a exportação de commodities, em primeiro lugar o café. A radicalização impôs-se, vinda de fora, repercutida violentamente pelos seus adeptos no país, comunistas de um lado, integralistas do outro (que ainda tentaram um putsch em 1938). Todas as expectativas voltadas para a modernização do país tiveram de dar lugar a dezenas de leis, centenas de decretos, todos eles tratando de segurança interna e da repressão a grupos e movimentos organizados nos extremos. 

A política externa ganha maior projeção continental e a relação com os Estados Unidos adquire importância especial. A mensagem de 1935 reflete o ambiente negativo que vai das “quotas e contingenciamentos ao bloqueio direto das moedas e aos convênios de compensação” (p. 481), e se fala de compensar esse cenário com o “desenvolvimento de mercados internos em condições estáveis e compensadoras” (p. 482). A diplomacia prega a “formação de um bloco de nações americanas” como um “imperativo de ordem social e equilíbrio político”, num “órgão de defesa comum” (idem), o que obviamente não será concretizado. Mas, os antigos acordos comerciais com base na “nação mais favorecida” foram descontinuados, pois se reconheceu que essa 

… condição se tornou inoperante, em face dos óbices criados pela maioria das nações, que ora decretavam tarifas proibitivas para os nossos produtos, ora recorriam ao contingenciamento, ou faziam convênios com a cláusula de compensação, e, por fim, bloqueavam a saída de divisas internacionais para o pagamento das compras. (p. 484)

Em fevereiro de 1935, um novo tratado comercial com os Estados Unidos substituiu o precedente, de 1923, “com apreciáveis reduções sobre as antigas tarifas”, ao passo que “as concessões feitas aos [EUA] favorecem, apenas, os produtos industriais que recebemos habitualmente daquele País” (p. 486). Vargas viajou à Argentina e ali assinou um outro acordo comercial, que ainda pendia de aprovação legislativa. Os assuntos militares, contudo, ocuparam maior espaço na mensagem do que as questões diplomáticas. A imigração seria estimulada, mas se evitaria a formação de “colônias homogêneas”, sendo obrigatória “um mínimo de 30% de colonos nacionais”, como forma de corrigir e evitar “enquistamentos raciais”, com vistas a “promover a nacionalização dos elementos exóticos” (p. 536-37). O “imigrante desejável” é o agricultor e o nacionalismo se torna doutrina de Estado:

Nenhuma escola nas colônias, primária ou secundária, poderá ser regida por professores que não sejam brasileiros natos, como nenhuma criança, até 12 anos, poderá ser ensinada em outra língua, senão a portuguesa. (p. 537)

A introversão econômica já tinha sido reconhecida como inevitável, e o sistema tarifário deveria servir a uma dupla finalidade: “auxiliar a integração completa dos mercados internos” e defender, “por uma aplicação de tarifas consequentes as indústrias e o seu crescimento” (idem). No plano externo, a situação da dívida federal era a seguinte, ao final de 1935: dívida em libras de 105 milhões (gerando um serviço de 13 milhões); em dólares, de 172 milhões (serviço de 20 milhões); em francos-ouro, 229 milhões (serviço de 14 milhões) e dívida em francos-papel de 288 milhões e serviço de 180 milhões. Simultaneamente, o novo regime cerceou a capacidade dos estados de contraírem dívidas, como a Constituição de 1891 lhes havia outorgado, diminuindo proporcionalmente o seu serviço progressivamente. 

Nas conclusões da mensagem de 1936, a segurança nacional assumiu a preeminência esperada, junto com a “defesa do regime”, contra a “sedução das doutrinas exóticas” (p. 697), e se reconheceu, na política exterior, a “necessidade imperiosa de modificar… as diretrizes da nossa política econômica exterior”, pela denúncia de “todos os antigos tratados, convênios e acordos comerciais, na sua maioria baseados na cláusula da ‘nação mais favorecida’, inteiramente inoperante em face das novas condições dos negócios internacionais” (p. 709). 

A derradeira mensagem de Vargas, até sua derrocada, em outubro de 1945, foi feita em 3 de maio de 1937, e é bem mais concisa (com apenas 29 páginas, certamente um resumo da mensagem real) do que as 649 páginas da detalhadíssima mensagem do ano anterior, ou as 262 páginas da de 1935. Vargas declara que, “extintos os principais focos da rebelião de 1935”, a situação em 1937 “apresenta-se tranquila e próspera, de modo a inspirar confiança dentro como fora do país” (p. 719). Novamente, a “defesa do regime” e a situação econômica e financeira assumem maior espaço no documento, com apenas uma página e meia da “política exterior”, do lado da qual “nada temos a recear” (p. 734), seguindo-se uma declaração que sempre foi constante em todo o itinerário do país na frente externa:

Sempre fomos pacifistas e persistimos deliberadamente nesses propósitos. Nenhuma mudança se registrou nas diretrizes da nossa atuação internacional, sempre mantida no sentido de maior concórdia e estreita cooperação com os demais povos. (…)

Razões de ordem étnica e cultural, e mesmo geográficas e econômicas, impõem-nos, como aos demais países americanos, um contato permanente e amistoso, capaz de propiciar a solução harmônica de importantes problemas comuns. (p. 734-35)

De maneira geral, pode-se dizer que essas mensagens, elaboradas e apresentadas em anos de grande comoção nacional, confirmam uma característica básica da organização social e política da nação: a quase totalidade dos assuntos relevantes, tal como expressos nos documentos, são concebidos, elaborados e aplicados dentro do Estado, por meio do Estado, para o Estado, sendo a sociedade nacional relegada a um segundo plano, quase imperceptível. O “interesse nacional” é aquele que o Estado determina que seja, e o regime varguista, nos quatro anos cobertos pelas mensagens, atua basicamente no sentido de que tal conformação seja reafirmada, o que se reflete na conclusão desse último ano, seis meses antes do golpe do Estado Novo, em 10 de novembro de 1937: 

Atravessando regimes políticos e fases diversas de economia, não conseguimos modificar a fisionomia adquirida inicialmente, apesar de vasta e variada legislação. Para grupos apreciáveis de população, o Estado era quase uma entidade desconhecida, apenas fazendo-se presente pela percepção de tributos mal lançados e improdutivamente aplicados. (…)

Todos os Estados modernos, exceto naqueles em que a mobilidade social é diminuta, constituíram-se como obra voluntária e acabada dos homens a que se confiou a missão de governar. (p. 737)

Pelos oito anos seguintes, desde esse 10 de novembro, sem Congresso e sem mensagens, Vargas se encarregaria de tornar o Estado bem mais presente, tendo assumido voluntariamente a missão de governar, segundo uma concepção do “interesse nacional” que ele se encarregou pessoalmente de formular e de implementar. Reinou a “paz” da ditadura. A República de 1946 tornaria essa definição e implementação bem mais complicada e agitada.

 

 Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira, doutor em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia, licenciado em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, 1975). Atua como professor de economia política no Programa de Pós-Graduação em direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub). É editor adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional. Site: www.pralmeida.org; blog: http://diplomatizzando.blogspot.com


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