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domingo, 10 de março de 2024

Percepção de inconsistência da política externa brasileira é anterior a governo Lula - Daniel Buarque (Portal Interesse Nacional)

Percepção de inconsistência da política externa brasileira é anterior a governo Lula
Daniel Buarque
Portal da revista Interesse Nacional

07 de março de 2024 

Artigo publicado pela Economist apontou avanços na 'volta' do país ao contexto global, mas indicou que inconsistências do presidente ameaçam o prestígio brasileiro. Estudo sobre status internacional do Brasil mostra que essa visão de um país sem uma estratégia global clara é antiga e se aplica historicamente à busca por reconhecimento internacional

Por Daniel Buarque*

Em um balanço do primeiro ano da política externa do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, a revista The Economist listou uma série de avanços no trabalho do governo para projetar a ideia de "volta" do Brasil ao cenário internacional, especialmente com a Presidência do G20. Ao mesmo tempo, o artigo Lula's gaffes are dulling Brazil's G20 shine, publicado na última semana, também adotou um tom crítico, apontou que há sérias inconsistências na postura internacional do país e indicou a percepção global de que o Brasil "não decidiu que tipo de país vai ser"

Segundo a revista, inconsistências como as críticas a Israel e a aproximação com a Rússia ameaçam enfraquecer o efeito global da política externa de Lula. "Lula quer que o Brasil seja tudo para todas as pessoas: um amigo do Ocidente e um líder do Sul global, um defensor do meio ambiente e uma potência petrolífera global, um promotor da paz e um aliado dos autocratas. O Brasil pode muito bem estar de volta, mas o papel que desempenha no cenário mundial é mais obscuro do que deveria ser", destacou.

'Avaliação da revista reflete de forma muito mais ampla a percepção das grandes potências a respeito do status internacional do Brasil'

A avaliação da revista editada em Londres ressoou internamente no Brasil, e foi muito usada em declarações críticas ao atual governo. Mas ela reflete de forma muito mais ampla, e sob uma perspectiva histórica, a percepção das grandes potências a respeito do status internacional do Brasil como um todo - não apenas sob Lula.

Apesar de as nações mais poderosas conhecerem a ambição brasileira de ter um lugar de destaque nas relações internacionais, elas acham que o país foi incapaz de desenvolver uma estratégia clara para tentar alcançar o nível de prestígio que quer alcançar. Isso está muito associado também à ideia de que o Brasil não sabe bem que papel quer ter no mundo, e que fica sempre em cima do muro em grandes disputas internacionais.

Estes são alguns dos resultados da minha pesquisa de doutorado sobre o status do Brasil, desenvolvida a partir de 94 entrevistas com a comunidade de política externa dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU (EUA, Reino Unido, França, China e Rússia). O trabalho completo acaba de ser publicado no livro Brazil's International Status and Recognition as an Emerging Power (Palgrave Macmillan). A percepção externa é que o Brasil sempre quer ser amigo de todos, sempre evita tomar lados e assumir posturas arriscadas e sempre evita se alinhar com blocos específicos em disputas globais. Ao mesmo tempo, o país quer ser reconhecido como "um dos grandes", mesmo que não tenha uma estratégia clara para buscar isso. A ideia de que o Brasil "não sabe o tipo de país que quer ser" é evidente nessa percepção externa que traça o status dele desde 1989, bem antes das recentes movimentações de Lula.

'Embora o Brasil tenha um longo histórico de ambição por reconhecimento internacional, seu comportamento internacional é percebido como errático'

Um argumento muito comum entre os entrevistados é que embora o Brasil tenha um longo histórico de ambição por reconhecimento internacional, seu comportamento internacional é percebido como errático, não baseado nas reais capacidades do Estado e formado apenas por retórica.

Da perspectiva das grandes potências, todas as diferentes tentativas de projetar o Brasil e aumentar seu status revelam uma falta de capacidade de focar na criação de um plano claro para o Estado e seu lugar no mundo. O Brasil, afirmam eles, parece estar atirando em todas as direções possíveis e, portanto, acaba sem um caminho claro e possível para melhorar sua posição.

'O Brasil não parece ter uma agenda consistente para alcançar o status que deseja e acaba sem um papel claro nas relações internacionais'

Ainda que o Itamaraty e muitos pesquisadores brasileiros possam argumentar que existem bases sólidas bem consolidadas para uma estratégia nacional de projeção global, isso claramente não é percebido por observadores externos há bastante tempo. Para a maioria dos entrevistados, o Brasil não parece ter uma agenda consistente para alcançar o status que deseja e acaba sem um papel claro nas relações internacionais. "Não sei dizer exatamente o que o Brasil quer", disse um pesquisador francês.

Um problema dessa percepção de falta de uma agenda consistente para aumentar o status do Brasil é que observadores externos veem que há muito tempo o país tenta se inserir internacionalmente de forma caótica e desorganizada. Em vez do que é visto como uma tentativa de ter relevância em todas as partes das relações internacionais, a análise das entrevistas com os entrevistados do mostra que eles acreditam que o Brasil deveria "escolher suas lutas" e "aproveitar seus pontos fortes" para promover seus interesses.

O governo Lula até fez um pouco isso ao anunciar a prioridade que daria à questão ambiental, reconhecidamente uma força do país. O artigo da Economist até menciona isso como um avanço da política externa brasileira. Ainda assim, sob a perspectiva externa faz sentido apontar que parece continuar faltando um foco e uma estratégia clara para o país.

*Daniel Buarque é colunista e editor-executivo do portal Interesse Nacional, pesquisador no pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP (IRI/USP), doutor em relações internacionais pelo programa de PhD conjunto do King's College London (KCL) e do IRI/USP. Jornalista, tem mestrado em Brazil in Global Perspective pelo KCL e é autor de livros como Brazil's international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial) e O Brazil é um país sério? (Pioneira).

artigos de Daniel Buarque

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional


terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

O drama da Ucrânia e o uso de sanções econômicas como arma de guerra (parte 1) - Paulo Roberto de Almeida (portal Interesse Nacional)

Artigo publicado no portal da revista Interesse Nacional, em três partes, aqui a primeira (27/02/2024)

O drama da Ucrânia e o uso de sanções econômicas como arma de guerra (parte 1)

Paulo Roberto de Almeida: 

Revista Interesse Nacional, 27/02/2024

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/paulo-roberto-de-almeida-o-drama-da-ucrania-e-o-uso-de-sancoes-economicas-como-arma-de-guerra-parte-1/

Introdução editorial (trecho do artigo): 

Guerra iniciada com ataque de Putin é a ameaça mais relevante para a segurança na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Nesta primeira de três partes de um artigo, diplomata analisa o impacto da agressão da Rússia sobre as relações internacionais – incluindo a situação do Brasil

Artigo PRA:

Poucas pessoas bem-informadas sobre o estado do mundo atual recusariam a constatação de que a guerra de agressão deslanchada por Putin contra a Ucrânia em fevereiro de 2022, e continuada desde então, constitui a ameaça mais relevante para a segurança e a paz na Europa e no mundo desde que Hitler empreendeu a conquista da Polônia em setembro de 1939, dando início ao mais devastador conflito global da contemporaneidade. A invasão, ilegal nos termos da Carta da ONU e sob todos os pontos de vista, tornou o mundo menos seguro e mais propenso a um conflito ainda mais devastador (Livres, 2023).

Eu escrevi Putin, e não Rússia, e Hitler, em lugar de Alemanha nazista, pois que ambos os ataques criminosos e ilegais, entre muitos outros atos criminosos que precederam tais ataques devastadores, são devidos exclusivamente à vontade pessoal de duas personalidades autoritárias, a rigor animadas por instintos tirânicos, e não aos desejos do povo alemão, em 1939, ou aos do povo russo em 2022.

Similarmente, poucas pessoas informadas sobre o estado do Brasil atual recusariam o fato de que estamos, agora, bem melhores, em termos de civilidade, de política “normal”, de comportamentos minimamente previsíveis dos agentes públicos, do que estávamos nos anos do governo precedente. Por outro lado, não há como deixar de reconhecer que a guerra de agressão da Rússia à Ucrânia afetou não só interesses econômicos e materiais do Brasil como um todo — inflação, comércio exterior, tensões internacionais —, mas também a própria política externa e a diplomacia brasileiras, a partir de seu início. 

Cabe, portanto, abordar essas duas questões — o estado incerto, na Europa e do mundo, na atual conjuntura, e os desafios daí decorrentes para o Brasil como um todo, em especial para as suas relações exteriores — numa abordagem de natureza conceitual, tanto quanto de ordem prática, dadas as múltiplas facetas do mundo pós-invasão da Ucrânia e do Brasil pós-terremoto bolsonarista. Não há como recusar o fato notório de que o mundo se ressente de diversos elementos disruptivos desde a guerra de agressão à Ucrânia, assim como o Brasil ainda suporta o impacto das ameaças ao sistema democrático brasileiro feitas durante os quatro anos do mandato imediatamente precedente ao atual.

Na raiz de ambas as questões, o estado do mundo e o do Brasil, existem processos objetivos — as relações econômicas e políticas entre os respectivos atores globais e regionais — tanto quanto elementos subjetivos, derivados das personalidades envolvidas nos contextos respectivos. A complexidade dessas interações requer uma abordagem metódica e linear de cada um dos problemas, pois que o estado atual do mundo e do Brasil decorre de escolhas feitas no passado, no plano mais geral das políticas nacionais, assim como de decisões tomadas segundo o arbítrio dos personagens mais diretamente envolvidos nas questões.

A história não se repete, mas ela pode trazer de volta fantasmas do passado

(...)

[corte devido à extensão do artigo]

(...)

O diplomata e cientista político José Guilherme Merquior, ao analisar em sua tese de doutoramento na London School of Economics, a obra de Rousseau e de Weber (1980), cunhou um novo conceito, o de “carisma burocrático”, como para sinalizar que o fenômeno, no sistema soviético, tinha deixado de ser personalista para ser encarnado na organização do partido leninista. Esse fator humano pode, doravante, deixar de funcionar no quadro do “carisma burocrático” do PCC, criado depois da liderança demencial de Mao Tse-tung por Deng Xiaoping e mantido nas décadas seguintes, a partir do terceiro mandato concedido a Xi Jinping, que parece estar impulsionando novamente o carisma personalista, eventualmente responsável por um futuro ataque a Taiwan (mas ainda assim minuciosamente planejado pelo partido e pelas Forças Armadas). No caso de Putin, esse “carisma” já deixou de funcionar há muito, como amplamente demonstrado na pequena biografia de Karen Dawisha (2015), sobre a verdadeira natureza do atual regime neoczarista (que tem alguns traços de stalinismo).

(a continuar)


* Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira, doutor em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia, licenciado em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, 1975). Atua como professor de economia política no Programa de Pós-Graduação em direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub). É editor adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional. 

(O texto continua nas partes 2 e 3, que serão publicadas nas próximas semanas)\

Leitura integral desta primeira parte neste link: 

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/paulo-roberto-de-almeida-o-drama-da-ucrania-e-o-uso-de-sancoes-economicas-como-arma-de-guerra-parte-1/

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

A dupla barbárie na guerra Hamas-Israel e a solução de dois Estados - Sérgio Florêncio (Portal Interesse Nacional)

 A dupla barbárie na guerra Hamas-Israel e a solução de dois Estados

Sérgio Florêncio

Embaixador aposentado


A dupla barbárie - o ataque terrorista do Hamas contra a população civil israelense, com 1200 mortos, além de 240 reféns; e a brutal contraofensiva israelense, com mais de 12 mil mortos em Gaza – poderá abrir caminho à única alternativa viável para a questão palestina: a solução de dois Estados, apresentada pela ONU em 1947, quando da partilha da Palestina. A partir de então, essa solução sempre fracassou, tanto por intransigência israelense como palestina. Diante da devastadora tragédia iniciada em 7 de outubro, diversos líderes mundiais e Estados árabes, por primeira vez, sinalizam apoio à solução de dois Estados. Assim, a superação do impasse passa a depender de dois polos : EUA -Israel versus Irã-Hezbollah-Hamas. 

A primeira solução de dois Estados, proposta pela ONU em 1947, previa 53% da Palestina para os israelenses e 47% para os palestinos, sendo que os primeiros eram apenas 30% da população e os segundos , 70%. Os Estados árabes naquele momento foram terminantemente contrários à partilha. Consideravam a criação do Estado de Israel inaceitável imposição do colonialismo inglês, contrária aos direitos legítimos do povo palestino, e que poderia ser revertida pelas armas, diante da fragilidade militar e demográfica dos israelenses. A consequência foi a guerra de 1948 , surpreendentemente vencida por Israel, que ampliou sua área, passando dos 53%, previstos na partilha definida pela ONU, para 79%, consolidando, dessa forma, sua existência como Estado.

Diversos outros conflitos armados marcaram a rivalidade entre árabes e israelenses, tendo como epifenômeno a questão palestina e como resultado concreto a contínua ampliação do território de Israel. Assim foi na Guerra dos Seis Dias, de 1967, provocada por Israel, assim foi na Guerra do Yom Kippur, de 1973, iniciada por Egito e Síria. Na primeira, Israel ocupou toda a Palestina histórica, objeto da partilha de 1947. Na segunda, os árabes tentaram retomar esses territórios, mas fracassaram, sendo as Colinas de Golan, da Síria, formalmente anexadas a Israel. 

 Paralelamente a esses conflitos em torno da questão palestina, se desenvolviam os processos de paz, com avanços e recuos, mas que nunca chegaram a implantar a solução de dois Estados. 

Os Estados Unidos sempre foram o grande mediador/protagonista nessas negociações, que resultaram em dois Acordos de Paz - Camp David e Oslo - e envolveram, de um lado, Israel e, de outro, os Estados árabes mais influentes, como Egito, Síria, Jordânia, e a Organização para a Libertação da Palestina - OLP, sob a firme e carismática liderança de Yasser Arafat. 

As propostas contidas naqueles acordos de paz, embora contemplassem relativo equilíbrio entre as aspirações de judeus e palestinos, fracassaram, o que explica o clima de permanente tensão e conflito em torno da questão palestina. 

Os Acordos de Camp David de 1978 selaram a paz entre os atores hegemônicos na época - Israel e Egito. A Península do Sinai foi devolvida a esse último, que, em troca, reconhecia a existência do Estado de Israel. Na mesma linha, os acordos Begin-Sadat se referiam à devolução da Cisjordânia e da Faixa de Gaza para as lideranças palestinas. Isso significava ruptura radical com o passado. Nos anos 1950 e 1960, a liderança nacionalista de Nasser, o armamentismo egípcio com ajuda soviética e seu projeto de panarabismo ameaçavam de morte a existência de Israel. Em consequência, fortaleciam sua militarização, a defesa prioritária de suas fronteiras, tendo como desfecho, em 1967, a Guerra dos Seis Dias. 

Entretanto, aquelas promessas de Camp David foram desrespeitadas e só retomadas quinze anos depois, em 1993, com os Acordos de Oslo. Esses estabeleciam que a OLP, liderada por Yasser Arafat, reconhecia a existência de Israel, mas agora em troca de sua retirada da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Tratados complementares a Oslo previam a restituição aos palestinos de todos os territórios ocupados, o que nunca ocorreu. 

Qual a importância dessa revisão histórica para a compreensão da atual guerra entre Hamas e Israel e da possibilidade de, no pós-guerra, prevalecer a solução de dois Estados? A não implementação tanto de Camp David como de Oslo e o avanço dos assentamentos de colonos judeus sobre a Cisjordânia geraram ampla e profunda frustração entre os palestinos. Isso contribuiu para sua radicalização, visível na violência das duas Intifadas, que sepultaram aqueles dois processos de paz e fortaleceram os grupos rebeldes paramilitares apoiados pelo Irã – Hezbollah, Hamas e Jihad Islâmica. 

No plano doméstico, a ascensão política do Likud, dos religiosos ortodoxos e da extrema direita em Israel completava um quadro de polarização interna e externa. O projeto autoritário de poder de Netanyahu não dava margem a dúvidas - seu governo se afastava do jogo democrático ao perseguir o Judiciário; buscava o expansionismo sionista com exclusão da causa palestina; e dividia a sociedade israelense, que ia as ruas com milhões de manifestantes em defesa das instituições democráticas. 

Na vertente externa, a essência do contexto negociador se alterava substancialmente: declínio da importância dos EUA no Oriente Médio; ascensão de da direita radical, com Trump na presidência; e robusta influência política e militar iraniana na região. Os atores relevantes na Guerra dos Seis Dias, na Guerra do Yom Kippur e nas negociações de paz – Egito, Síria, Jordânia e OLP – eram substituídos pelo Irã revolucionário, e seus agentes nas proxy wars – Hamas, Hezbollah, Jihad Islâmica - que desestabilizavam as monarquias do golfo, mas ao mesmo tempo defendiam o status quo na Síria O Irã se afirmava na região e globalmente pelas armas e pelo avanço de seu programa nuclear.

Outra mudança de peso foi a aliança revigorada entre Washington e Tel Avive, visível na decisão crucial de Trump de retirar os EUA do Acordo sobre o Programa Nuclear Iraniano de 2015, arduamente negociado por Obama e aprovado pelos cinco membros permanentes do CSNU mais a Alemanha. A nova estratégia norte-americana se contrapunha ao Irã e tinha como alicerce os Acordos de Abraão, destinados a normalizar as relações de Israel com Bahrein, Emirados Árabes Unidos (EAU), Marrocos e Sudão. Ao mesmo tempo, avançava celeremente a aproximação diplomática Israel-Arábia Saudita. Essa seria, na visão dos países envolvidos, o desfecho de uma modalidade inédita de paz no Oriente Médio, ao selar uma aliança entre o Estado judeu e seus arqui-inimigos do passado no mundo árabe. 

Mas nessa gramática geopolítica, aparentemente exitosa, havia um sujeito oculto – o povo palestino. Enquanto os acordos de paz anteriores – Camp David e Oslo – tinham como centro a questão palestina, a estratégia de Trump fragilizava as lideranças moderadas palestinas (Fatah e Autoridade Nacional Palestina – ANP) e buscava uma paz top down, alicerçada na normalização das relações árabe-israelenses. 

Netanyahu consolidava essa estratégia de Trump, que considerava a questão palestina como integrante de um irrelevante coeteris paribus. Como Primeiro Ministro, controlava o Parlamento - em aliança com o Likud, as lideranças religiosas e a extrema direita - ao mesmo tempo que procurava neutralizar o Judiciário e, assim, eliminar a democracia israelense. Diante da alternativa entre identidade judaica ou democracia liberal, Netanyahu optou pela primeira, tendo como instrumento o Estado unitário, ou seja, o antípoda da solução de dois Estados. 

O braço direito dessa estratégia consistia em desacreditar o Fatah e a Autoridade Palestina, por meio do avanço exponencial dos assentamentos de colonos judeus na Cisjordânia ( cerca de 468 mil , segundo levantamento de 2022 da CIA) e em Jerusalém ( cerca de 262 mil). O outro braço era manter o Hamas sob controle, ao facilitar o fluxo de recursos do Catar para o grupo paramilitar e ao liberar residentes da Faixa de Gaza para trabalharem em Israel.

Assim, um transfigurado acordo de paz entre elites regionais estava em curso. Ao colocar entre parênteses ou jogar para escanteio a questão palestina, o objetivo era estabilizar a região, o que significava ameaçar a hegemonia do Irã e a razão de existir de seus procuradores regionais – Hezbollah e Hamas. Era uma transfiguração com os três pilares políticos acima indicados – revigorada aliança EUA-Israel; normalização das relações entre Israel e Estados árabes; e inexorável fragilização do Fatah e da Autoridade Palestina, por meio de mais de 700 mil assentamentos judeus na Cisjordânia e em Jerusalém. O preço da estratégia era uma paz de cemitério, com o sepultamento da questão palestina. 

Desdobramentos do processo acima descrito estarão na dependência do desfecho do conflito Hamas – Israel e da desafiadora gestão do pós-guerra. Parece provável que Israel esteja próximo de alcançar seu objetivo da eliminação militar do Hamas e da desmilitarização da Faixa de Gaza. Caso esse cenário se consolide, a pressão internacional para a solução de dois Estados assumirá supremacia, com o respaldo das duas superpotências, da Rússia e da União Europeia. 

É evidente que a continuidade da guerra beneficia China e Rússia . Os EUA saem fragilizados, porque são forçados a destinar vultosos recursos materiais e humanos para dois conflitos simultâneos de grandes proporções – Faixa de Gaza e Ucrânia . Mas o custo humanitário de estimular a barbárie seria brutal para China e Rússia. Por isso mesmo, a primeira votou a favor e a segunda se absteve na Resolução articulada pelo Brasil no Conselho de Segurança da ONU, apoiada por 12 dos 15 membros e vetada pelos EUA. Esse contexto geopolítico global favorece a solução de dois Estados.

 Entretanto, o avanço nessa direção dependerá de duas variáveis domésticas decisivas. A primeira é de fácil previsibilidade – a queda de Netanyahu no day after do conflito e a emergência de um governo de coalizão com maioria liberal. A segunda variável é extremamente difícil. Exigirá uma engenharia política e de segurança de alto risco em termos de coesão interna e de estabilidade social. Como proceder ao êxodo dos 700 mil israelenses que hoje ocuparam a Cisjordânia e Jerusalém, com o estímulo do governo de Israel e o beneplácito de Trump? Em sua maioria são colonos aliados de Netanyahu, integrantes da ortodoxia religiosa e da extrema direita antidemocrática. Em outros termos, como desmontar, numa democracia, o poderoso Cavalo de Troia montado por Netanyahu para dividir o país e bloquear a solução de dois Estados? 

Além desses obstáculos, o modelo de dois Estados exigirá, no day after do conflito, uma complexa gestão política, administrativa e de segurança. Que conformação terá o novo Estado Palestino para gerir, de forma sustentável, um território devastado pela contraofensiva militar israelense? Poderá Israel assumir temporariamente, como vem indicando Netanyahu, no imediato pós-guerra, a administração da Faixa de Gaza virtualmente destruída? Poderá uma Força de Paz da ONU, integrada também por nacionais de países árabes, construir pontes, moldar a transição para o almejado Estado palestino e, assim, consolidar a solução de dois Estados?

 Embora de difícil concretização, o modelo de dois Estados é o único capaz de trazer paz duradoura para a dividida sociedade israelense e alívio prolongado para o sofrido povo palestino. Apesar dos obstáculos hercúleos e dos enigmas comparáveis aos do oráculo de Delfos, a solução de dois Estados ganha momento no plano internacional e doméstico. Conta com a poderosa adesão das grandes potências, com o apoio da opinião pública nas sociedades democráticas, com os milhões de manifestantes nas ruas de Israel e com a resiliência das instituições representativas - pilares da democracia israelense. Talvez aqui seja válida a conhecida frase atribuída a Victor Hugo. “Nada é tão poderoso como uma ideia cujo tempo chegou”. 

 

Sérgio Florêncio

Brasília, 30 de novembro de 2023

Portal da revista Interesse Nacional


sábado, 6 de agosto de 2022

Diplomacia ambiental, a nova fronteira do multilateralismo contemporâneo: e-book do portal Interesse Nacional

 Grande iniciativa desta nova grande fase da diplomacia multilateral, regional, bilateral, nacional e acadêmica. A diplomacia passou historicamente por diversas fases: a dos antigos impérios, a dos descobrimentos, a da colonização, a da supremacia europeia, a dos grandes conflitos globais, a da descolonização, a do desenvolvimento (em grande parte frustrada), a dos novos impérios, e agora a ambiental, que é a diplomacia do presente e do futuro. Cumprimentos pela iniciativa.

Paulo Roberto de Almeida 


Lançamento do livro Diplomacia Ambiental

Depois de mais de dois anos de trabalho por professores da USP, está sendo lançado o livro DIPLOMACIA AMBIENTAL.

O livro é fruto de pesquisa realizada por acadêmicos e diplomatas sobre mais de 60 normas internacionais e 15 acordos ambientais ratificados pelo Brasil e seus respectivos graus de cumprimento pelos sucessivos governos brasileiros desde 1992 até o momento. Trata-se de uma coletânea destinada a pesquisadores, docentes, alunos de graduação e pós-graduação, diplomatas, especialistas da área e áreas afins, bem como ao público em geral interessado em Diplomacia Ambiental.

O e-book Diplomacia Ambiental está disponível para consulta pública a partir do dia 8 no Portal Interesse Nacional (www.interessenacional.com.br).  O livro impresso poderá ser adquirido (R$ 175,00)  a partir de 15 de agosto, com pedido através do email  irice@irice.com.br.


segunda-feira, 25 de julho de 2022

Entrevista do embaixador Rubens Barbosa ao Portal Interesse Nacional; encontro de Bolsonaro com embaixadores estrangeiros

Entrevista do embaixador Rubens Barbosa ao Portal Interesse Nacional sobre o encontro de Bolsonaro com representantes diplomáticos, no dia 18/07/2022


Para o diplomata brasileiro, observadores externos conseguem separar as declarações do presidente das ações práticas do país na política e nas suas relações com o mundo, o que limita as consequências dos ataques de Bolsonaro ao sistema eleitoral. Barbosa vê o Itamaraty atuando para restaurar suas tradições, embora o presidente seja o responsável pela definição da política externa

Por Daniel Buarque
Apesar de adicionar um elemento negativo à já desgastada reputação internacional do Brasil, o discurso do presidente Jair Bolsonaro a embaixadores atacando o sistema eleitoral brasileiro não deve ter um grande impacto sobre o papel internacional do país. Para o diplomata Rubens Barbosa, o resto do mundo consegue separar as falas do presidente das ações do Brasil, especialmente na diplomacia. Além disso, a baixa credibilidade do governo atualmente faz com que essas declarações sejam limitadas em suas consequências.
Coordenador editorial da Interesse Nacional, Barbosa foi embaixador do Brasil em Londres e em Washington, DC., e é presidente do Instituto Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice). Para ele, o Ministério das Relações Exteriores teve sua reputação afetada pela ação do governo Bolsonaro em seus dois primeiros anos, mas a atual gestão do Itamaraty está atuando para restaurar as políticas tradicionais do MRE –e não se envolveu no encontro do presidente com embaixadores.
Entretanto, ele ressalta que a Constituição determina que quem decide sobre a política externa é o presidente da República. “Por isso, não se pode dizer que não haja influência bolsonarista na diplomacia brasileira, mas os excessos, na medida do possível, estão sendo controlados”, avaliou.
Leia a entrevista completa abaixo
Daniel Buarque – A reação internacional ao discurso de Bolsonaro sobre a possibilidade de fraude eleitoral pareceu não dar credibilidade às acusações. Que impacto o encontro de Bolsonaro com embaixadores pode ter sobre o lugar do Brasil no mundo?
Rubens Barbosa – A percepção externa sobre o Brasil hoje é muito negativa em função sobretudo da política ambiental em relação à Amazônia. O encontro do Presidente com os representantes diplomáticos no Alvorada acrescentou mais um elemento negativo sobre a maneira como o mundo vê o Brasil, mas não terá nenhum impacto adicional, dada a baixa credibilidade do governo brasileiro. O mundo hoje separa as falas e atitudes do Presidente da ação política da Chancelaria.
Daniel Buarque – Muitos observadores e a imprensa internacional dizem que o discurso serviu para preparar terreno para a possibilidade de Bolsonaro rejeitar o resultado das urnas. Baseado na reação internacional até agora, como acha que o mundo se comportaria em relação ao Brasil no caso de um golpe de Bolsonaro?
Rubens Barbosa – O encontro foi mais um episódio no roteiro –moldado no exemplo do presidente Trump nos EUA– para a contestação dos resultados eleitorais em outubro, mas não acredito que, no Brasil, o desenlace seja idêntico ao ocorrido em Washington em janeiro passado, nem muito menos que haja condições para um golpe de Estado por dois motivos: a sociedade brasileira não apoiará um ataque ao Estado Democrático de Direito e as Forças Armadas não respaldarão uma ação que ameace as instituições. O que não quer dizer que a sociedade civil não deva estar atenta para a preservação da democracia, das instituições e dos resultados nas urnas.
Daniel Buarque – Como vê o envolvimento do Itamaraty no evento em que a Presidência convidou embaixadores estrangeiros para acusar o sistema eleitoral brasileiro?
Rubens Barbosa – O  Itamaraty não se envolveu no evento. O convite foi formulado pelo Cerimonial do Palácio do Planalto. Apesar disso, vai haver comentários de que o Itamaraty foi atingido em sua credibilidade. Na realidade, os representantes diplomáticos sediados em Brasília sabem distinguir entre as posições defendidas profissionalmente pela Diplomacia e as iniciativas do Palácio do Planalto que, embora voltadas para a política interna, têm implicações no trabalho do Itamaraty.
Daniel Buarque – O MRE é reconhecido internacionalmente como um dos melhores serviços de política externa do mundo. Acha que a associação a Bolsonaro em um evento assim pode afetar a reputação do Itamaraty?
Rubens Barbosa – A reputação do Itamaraty foi afetada pela ação da política externa nos dois primeiros anos do atual governo. O atual ministro está, na medida do possível, restaurando as políticas tradicionais do MRE, mas, segundo a Constituição, em um regime presidencialista, quem decide sobre a política externa é o presidente da República.
Daniel Buarque – A Associação dos Diplomatas Brasileiros divulgou uma nota em defesa das urnas eletrônicas. Mas o MRE não se posicionou contra o discurso do presidente. Há algum tipo de divisão entre os diplomatas brasileiros?
Rubens Barbosa – A ADB é o sindicato da profissão e fala em nome de seus associados. Estou certo de que muitos diplomatas da ativa no Itamaraty são contra essas manifestações contra as urnas eletrônicas, até porque, no exterior, quem coordena as eleições são os diplomatas, mas como carreira de Estado hierarquizada, dificilmente poderia ser esperada manifestação pública de seus membros contra políticas oficiais.
Daniel Buarque – A troca de ministros com a saída de Ernesto Araújo e a chegada de Carlos França foi saudada como uma volta à normalidade do Itamaraty, deixando de lado a ideia aceita por Araújo de que o Brasil poderia se tornar um pária internacional. O que este evento diz sobre o Itamaraty liderado por França? Ainda pode-se ver influência da ideologia bolsonarista na diplomacia brasileira?
Rubens Barbosa – A atuação da diplomacia brasileira hoje é muito diferente daquela que falava pelo Brasil nos dois primeiros anos do atual governo. Apesar de o Itamaraty não ter se envolvido na preparação do evento do Alvorada, o ministro França, assim como o Ministro da Defesa estiveram presentes, convocados pelo Presidente Bolsonaro. Por isso, não se pode dizer que não haja influência bolsonarista na diplomacia brasileira, mas os excessos, na medida do possível, estão sendo controlados.

terça-feira, 31 de maio de 2022

Guerra do Paraguai: livro de Francisco Doratioto: nova edição; entrevista - Daniel Buarque (Portal Interesse Nacional)

 


A invasão da Ucrânia, a Guerra do Paraguai e as lições do isolamento de ditadores na tomada de decisões

Francisco Doratioto fala sobre a nova edição do seu livro Maldita Guerra e sobre o acesso a novos documentos históricos pela internet, discute os mitos por trás do conflito no Paraguai, analisa como ele ajudou a formar a diplomacia brasileira no Império e explica como o comportamento de tiranos não respeita a vida dos cidadãos

Por Daniel Buarque

Um governante tirano atuando de forma isolada, em um país sem oposição política e sem liberdade de imprensa, decide invadir um país vizinho e gera uma situação “desgraçada” para todos os envolvidos no confronto, com denúncias até de genocídio. Essa descrição simplificada sobre a Guerra do Paraguai, mais de 150 anos atrás, parece ecoar na narrativa atual sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia. Para o historiador Francisco Doratioto, a comparação faz sentido ao se pensar sobre o comportamento tradicional de ditadores, que não respeitam a vida dos seus cidadãos.  

“Entre as características de ditadores está o fato de que eles não têm o mínimo respeito pela vida dos seus subordinados. A vida do cidadão comum e o sofrimento têm pouco valor para ele.O que tem valor é o Estado, é o seu poder pessoal, e para manter o seu poder pessoal, desenvolve-se naturalmente o medo de uma conspiração. Então o processo decisório é sempre muito restrito, e os que estão em volta, por sua vez, não questionam nada. Existe uma lógica no comportamento dos ditadores que facilita o desencadear de guerras”, explicou Doratioto em entrevista à Interesse Nacional.


O historiador está lançando uma nova edição atualizada do seu livro Maldita Guerra, obra fundamental sobre a Guerra do Paraguai. Na entrevista abaixo, ele discute a complexidade do contexto histórico do conflito que ajudou a moldar a identidade do Brasil, do Paraguai, da Argentina e do Uruguai, o que ajuda a criar mitos e simplificações. Para Doratioto, a principal lição da Guerra do Paraguai para a diplomacia brasileira foi mostrar a desgraça que é a guerra, ajudando a desenvolver a valorização da cooperação e da busca por informações. 

Leia a entrevista completa abaixo

Daniel Buarque – Parece impossível tratar da Guerra do Paraguai sem pensar sobre o contexto atual e do que acontece na Europa com a invasão da Ucrânia. A descrição do Solano López como um tirano em um país que não tinha partido político, não tinha tolerância, não tinha liberdade de imprensa, é muito próximo da forma como se fala sobre Putin e a Rússia. Assim como as controvérsias em torno de causa da guerra. Isso mostra que guerras são muito permeadas por essas mesmas narrativas. O que acha disso?

Francisco Doratioto – Eu leciono história da América Latina, e meus dois eixos de preocupação são a questão da pobreza, do desenvolvimento econômico, e a questão da democracia.  Nós estamos em um continente povoado de ditadores. À esquerda, com Fidel Castro, por exemplo, e à direita, com Médici, Pinochet e outros. Há ditadores por toda a parte, e há ditadores de esquerda e de direita, mas eles têm algo em comum. Eles não confiam em ninguém e não existe um processo decisório para tomar decisão de política externa. No caso do paraguaio Solano López, que decidiu aquela estratégia de invadir a Argentina e o Brasil partia de uma série de premissas muito vulneráveis, mas ninguém falou isso para ele. pois ele provavelmente não expôs todo o seu plano para aqueles que o cercavam, e mesmo que tenha exposto, ninguém ia falar nada, ninguém ia questionar para não ser acusado de traidor. A mesma coisa acontece com Putin, assim como com Hitler na invasão da União Soviética. Entre as características de ditadores está o fato de que eles não têm o mínimo respeito pela vida dos seus subordinados. A vida do cidadão comum e o sofrimento têm pouco valor para ele. O que tem valor é o Estado, é o seu poder pessoal, e para manter o seu poder pessoal, desenvolve-se naturalmente o medo de uma conspiração. Então o processo decisório é sempre muito restrito, e os que estão em volta, por sua vez, não questionam nada. Existe uma lógica no comportamento dos ditadores que facilita o desencadear de guerras. 

‘Existe uma lógica no comportamento dos ditadores que facilita o desencadear de guerras’

Daniel Buarque – A Guerra do Paraguai parece um desses eventos controversos sobre o qual a historiografia parece que nunca consegue parar de se atualizar e sempre está trazendo novidades.  A edição original do livro Maldita Guerra tem mais de duas décadas e já discutia essa questão. O que há de novidade nesta edição mais recente? 

Francisco Doratioto – Quando eu escrevi o livro, a internet ainda era pouco desenvolvida, quase não tinha material na rede. Havia arquivos muito importantes que estavam inacessíveis. São milhares de documentos que estavam guardados e que não podiam ser manuseados para garantir a segurança dos papéis originais. O material estava lá, fechado, e nenhum pesquisador podia ter acesso. Mais recentemente, faz uns 5 ou 6 anos, o material foi colocado online. Graças à nova tecnologia, passamos a ter acesso a milhares de documentos. Além disso, passamos a ter acesso a relatos de memórias da Argentina, do Uruguai, do Brasil. Outro material de memórias do Paraguai foi descoberto na universidade do Texas comprovando que López era realmente um ditador, que não houve processo decisório para decidir pela guerra, que se sabia que a guerra ia ser um equívoco, que ia ser ruim para o Paraguai. E a própria hemeroteca da Biblioteca Nacional, que foi colocada online, também ajudou. Quando eu pesquisei para a primeira edição do Maldita Guerra, tinha que ir ao Rio de Janeiro pedir material em papel ou microfilme. Era um trabalho braçal, difícil e custoso financeiramente porque implicava em ficar em hotel e tudo isso. E tudo isso agora também está online. Antes a gente tinha que buscar informação. Agora o problema é o excesso de informação.

‘López era realmente um ditador, não houve processo decisório para decidir pela guerra, sabia-se que a guerra ia ser um equívoco, que ia ser ruim para o Paraguai’

Depois que eu escrevi o livro, houve um grande desenvolvimento de estudos sobre a história da Guerra do Paraguai no Brasil. Houve uma coincidência de publicações de obras importantes e que, por sua vez, abriram caminhos para a produção posterior. Desde 2002, a quantidade de informações inéditas é incrível, e além disso novas análises historiográficas muito interessantes, com novas metodologias, novos objetos. Eu incorporei tudo isso na nova versão do livro. A nova edição tem 80 páginas a mais que a anterior. Ela fundamentalmente ratifica, aprofunda o que estava na primeira edição. A única alteração de  informação que fiz nessa edição foi sobre a construção da Fortaleza de Humaitá, às margens do Rio Paraguai, que era uma fortaleza muito importante para controlar a navegação. Toda a historiografia brasileira afirmava que na construção da fortaleza haviam participado engenheiros militares brasileiros. E nesta edição, eu retifico, porque um historiador paraguaio questiona isso e comprova que engenheiros brasileiros não participaram

Daniel Buarque – Considerando esse movimento todo dos últimos 20 anos, ainda pode-se falar que a história da Guerra do Paraguai é dominada por mitos e simplificações como era no passado? Estamos mais bem informados em relação à guerra?

Francisco Doratioto – Com certeza estamos mais bem informados. Mas também com certeza há mitos e vai continuar a haver mitos.

Estamos mais bem informados, pois temas como a questão da influência inglesa sobre a guerra, por exemplo, era algo que era ensinado nas escolas e universidades até o fim do século passado. Mas muitos estudos mostram que não houve essa influência, como o do professor Moniz Bandeira, que foi o pioneiro no Brasil em falar que não foi a Inglaterra que causou a guerra. Ainda assim, a visão predominante era de que tinha sido a Inglaterra. Então, quando eu comecei a escrever o livro em 2000, era muito importante essa questão. Mas hoje é raríssimo encontrar algum historiador defendendo essa posição, porque não há documentação, não há lógica histórica para responsabilizar a Inglaterra.

A questão dos mitos é relevante pois a Guerra do Paraguai faz parte da identidade nacional do Paraguai, da Argentina, do Brasil, do Uruguai, e não tem como interesses do presente não construírem imagens, interpretações sobre personagens dessa história. O Duque de Caxias, por exemplo, foi comandante do Exército do Brasil no Paraguai e é patrono do Exército brasileiro, então existe um óbvio vínculo entre a análise do personagem no século XIX com aspectos do presente. Solano López é um herói nacional no Paraguai. Ele levou o país ao desastre final, porque não soube o momento de render-se, e ainda assim é considerado um herói, é um mito. É um Francisco Solano López inventado pelo que a sociedade paraguaia gostaria que ele tivesse sido. 

‘Dada a complexidade das origens da guerra, é muito mais sedutor para quem lê e para quem escreve sem uma preocupação académica simplificar e jogar a responsabilidade em uma figura só’

É natural que existam exageros e simplificações. Dada a complexidade das origens da guerra, é muito mais sedutor para quem lê e para quem escreve sem uma preocupação académica simplificar e jogar a responsabilidade em uma figura só. Então o confronto de interpretações, da documentação, do método utilizado ajuda a reduzir os mitos e as simplificações, mas é inevitável que eles existam

Daniel Buarque – Você mencionou a questão de identidade e, apesar da Guerra do Paraguai, o Brasil construiu sua identidade internacional em cima da ideia do pacifismo, da resolução pacífica de conflitos por via diplomática. Acha que tem alguma influência da guerra do Paraguai na formação desse perfil? 

Francisco Doratioto – Não vejo essa relação. Não existia uma teoria de relações internacionais na época, mas a teoria da elite do Brasil imperial, principalmente do partido conservador que vai construir uma política externa para o Rio da Prata, era baseada na ideia de que o Brasil era a única monarquia entre repúblicas. Um dos aspectos apresentados ao público no século XIX para legitimar a monarquia era que os nossos vizinhos eram instáveis, tinham caudilhos, guerras civis, e o Brasil, a partir de 1840, não é instável politicamente, não tem guerras. Então o sistema monárquico de governo é superior, etc. A interpretação era de que o vizinho não era confiável, e o Brasil devia evitar uma união entre os vizinhos, negociar de forma bilateral e estar pronto para evitar que surgisse uma Grande Argentina que ocupasse todo aquele espaço do Vice-Reino do Rio da Prata no período colonial, ou seja, o que é hoje o Uruguai, o Paraguai, a Bolívia, a própria Argentina. Porque seria uma República muito forte ao sul, uma ameaça militar potencial. Em segundo lugar, o exemplo de uma República bem sucedida ia desarticular o discurso de que a monarquia era uma forma de governo superior. E ademais, mesmo que fosse uma república pacífica, controlaria os rios internacionais da região, que eram importantes para o Rio de Janeiro manter contato regular e de comércio com a província de Mato Grosso. 

Se fosse fazer uma referência às teorias de relações internacionais, diria que o governo, a elite imperial, era realista em termos de relações internacionais. As relações com a Grã-Bretanha foram muito duras, por exemplo, os Estados Unidos também teve momentos de forte tensão. Essa coisa do pacifismo, de resolver através de negociações, de não ingerência nos assuntos internos dos outros países, vai ser construída na gestão do Barão do Rio Branco. E há um certo exagero na afirmação que o Barão do Rio Branco era pacifista. Ele dizia que as guerras eram uma solução horrível, uma coisa desgraçada, então ele não era a favor de ação de força. Mas, se você pegar a questão do Acre, por exemplo, antes de começar a negociação, ele mandou um regimento do Exército brasileiro para o Acre, para criar um fato consumado. Ele era a favor de relações internacionais pacíficas, mas apoiou, por exemplo, o rearmamento naval. Essa imagem do Rio Branco pacifista, esquecendo esse pragmatismo é o fato de que a diplomacia brasileira posteriormente teve interesse em dar ênfase ao pacifismo, e aí deu ênfase em Rio Branco como uma figura pacifista, o que permitiu efetivamente construir uma política externa muito eficiente

Daniel Buarque – Alguma coisa desse realismo de 150 anos atrás persiste na realidade da diplomacia brasileira até hoje? Existe influência da Guerra do Paraguai na poítica externa do país?

Francisco Doratioto – Até a década de 1980, predominou o sentimento de que Buenos Aires era um rival potencial no Rio da Prata e que se deveria disputar a hegemonia com eles e se impor. O Itamaraty foi fortemente influenciado pelo realismo de contenção de Buenos Aires no Rio da Prata. Hoje essa questão não se coloca mais. De qualquer forma, nas Forças Armadas sempre existe aquela coisa de hipótese de guerra. Por mais que hoje a principal hipótese de guerra seja relacionada à proteção da Amazônia, a maior concentração de tropas do Brasil está no sul do país. Claro que isso é um pouco por inércia, mas no meio militar existe ainda muito desse realismo. Até o começo do século XXI  houve uma notável mudança de mentalidade na diplomacia brasileira em favor da redução desse realismo, em substituir efetivamente a rivalidade pela ideia de cooperação. 

‘Se alguma lição a Guerra do Paraguai deixou para a diplomacia brasileira é exatamente a desgraça que é a guerra’

Se alguma lição a Guerra do Paraguai deixou para a diplomacia brasileira é exatamente a desgraça que é a guerra. A palavra do Barão está certa. E há necessidade de cooperação e de se manter muito bem informado e ter uma presença no Rio da Prata, e em outros países, para para saber o que está acontecendo, fazer análises corretas. No Paraguai pré-guerra, o Brasil era pessimamente representado e a delegação brasileira no pré-guerra não sabia o nível de organização militar, os preparativos de Solano López para uma ação militar. Então é importante ter uma presença diplomática, e essa é uma boa lição da Guerra do Paraguai em termos diplomáticos. 

Daniel Buarque – Estamos falando muito sobre o Barão do Rio Branco, mas você escreveu um artigo sobre o pai dele, o Visconde do Rio Branco, que teve uma importância muito grande no período Imperial, mas que acaba sendo esquecido. Qual a relevância dele nesse para essa formação da diplomacia Brasileira? 

Francisco Doratioto – Até o final do século XIX, até a questão de Palmas, com a Argentina, em que o laudo arbitral do presidente dos Estados Unidos foi favorável ao Brasil, o Barão do Rio Branco, o filho, era absolutamente desconhecido. E o Visconde do Rio Branco era o grande personagem da história do Brasil Império, e um dos grandes estadistas do Brasil Império. Ele teve uma carreira inteira dentro do Estado brasileiro. Ele foi senador, ministro da Guerra, ministro das Relações Exteriores, primeiro-ministro, negociador experiente no Rio da Prata. É uma figura fascinante do Brasil Império. Com certeza o José Maria da Silva Paranhos, o pai, o Visconde do Rio Branco, é tão importante para a história do Brasil e para o Estado monárquico quanto a figura do José Maria da Silva Paranhos Filho, o Barão, é para o Estado republicano. 

Daniel Buarque – Que tipo de influência a guerra tem até hoje na relação entre o Brasil e o Paraguai? 

Francisco Doratioto – O Paraguai perdeu a guerra, e qualquer país derrotado evidentemente tem uma sensibilidade muito grande para um tema como esse. E isso precisa ser levado em consideração. Mesmo que o Brasil não tivesse, em 1864, nenhum interesse, nenhum projeto de fazer uma guerra contra o Paraguai, é uma questão sensível, e que permanece sensível, porque, afinal, o país foi derrotado, perdeu território. No geral, a sociedade paraguaia encara as relações com o Brasil com muita simpatia. Existe um pequeno núcleo do revisionismo Lopista, que construiu a imagem do Solano López herói. É um projeto político da extrema-direita paraguaia, uma instrumentalização da história para para defender interesses no presente.