A invasão da Ucrânia, a Guerra do Paraguai e as lições do isolamento de ditadores na tomada de decisõesFrancisco Doratioto fala sobre a nova edição do seu livro Maldita Guerra e sobre o acesso a novos documentos históricos pela internet, discute os mitos por trás do conflito no Paraguai, analisa como ele ajudou a formar a diplomacia brasileira no Império e explica como o comportamento de tiranos não respeita a vida dos cidadãos
Por Daniel Buarque
Um governante tirano atuando de forma isolada, em um país sem oposição política e sem liberdade de imprensa, decide invadir um país vizinho e gera uma situação “desgraçada” para todos os envolvidos no confronto, com denúncias até de genocídio. Essa descrição simplificada sobre a Guerra do Paraguai, mais de 150 anos atrás, parece ecoar na narrativa atual sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia. Para o historiador Francisco Doratioto, a comparação faz sentido ao se pensar sobre o comportamento tradicional de ditadores, que não respeitam a vida dos seus cidadãos.
“Entre as características de ditadores está o fato de que eles não têm o mínimo respeito pela vida dos seus subordinados. A vida do cidadão comum e o sofrimento têm pouco valor para ele.O que tem valor é o Estado, é o seu poder pessoal, e para manter o seu poder pessoal, desenvolve-se naturalmente o medo de uma conspiração. Então o processo decisório é sempre muito restrito, e os que estão em volta, por sua vez, não questionam nada. Existe uma lógica no comportamento dos ditadores que facilita o desencadear de guerras”, explicou Doratioto em entrevista à Interesse Nacional.
O historiador está lançando uma nova edição atualizada do seu livro Maldita Guerra, obra fundamental sobre a Guerra do Paraguai. Na entrevista abaixo, ele discute a complexidade do contexto histórico do conflito que ajudou a moldar a identidade do Brasil, do Paraguai, da Argentina e do Uruguai, o que ajuda a criar mitos e simplificações. Para Doratioto, a principal lição da Guerra do Paraguai para a diplomacia brasileira foi mostrar a desgraça que é a guerra, ajudando a desenvolver a valorização da cooperação e da busca por informações.
Leia a entrevista completa abaixo
Daniel Buarque – Parece impossível tratar da Guerra do Paraguai sem pensar sobre o contexto atual e do que acontece na Europa com a invasão da Ucrânia. A descrição do Solano López como um tirano em um país que não tinha partido político, não tinha tolerância, não tinha liberdade de imprensa, é muito próximo da forma como se fala sobre Putin e a Rússia. Assim como as controvérsias em torno de causa da guerra. Isso mostra que guerras são muito permeadas por essas mesmas narrativas. O que acha disso?
Francisco Doratioto – Eu leciono história da América Latina, e meus dois eixos de preocupação são a questão da pobreza, do desenvolvimento econômico, e a questão da democracia. Nós estamos em um continente povoado de ditadores. À esquerda, com Fidel Castro, por exemplo, e à direita, com Médici, Pinochet e outros. Há ditadores por toda a parte, e há ditadores de esquerda e de direita, mas eles têm algo em comum. Eles não confiam em ninguém e não existe um processo decisório para tomar decisão de política externa. No caso do paraguaio Solano López, que decidiu aquela estratégia de invadir a Argentina e o Brasil partia de uma série de premissas muito vulneráveis, mas ninguém falou isso para ele. pois ele provavelmente não expôs todo o seu plano para aqueles que o cercavam, e mesmo que tenha exposto, ninguém ia falar nada, ninguém ia questionar para não ser acusado de traidor. A mesma coisa acontece com Putin, assim como com Hitler na invasão da União Soviética. Entre as características de ditadores está o fato de que eles não têm o mínimo respeito pela vida dos seus subordinados. A vida do cidadão comum e o sofrimento têm pouco valor para ele. O que tem valor é o Estado, é o seu poder pessoal, e para manter o seu poder pessoal, desenvolve-se naturalmente o medo de uma conspiração. Então o processo decisório é sempre muito restrito, e os que estão em volta, por sua vez, não questionam nada. Existe uma lógica no comportamento dos ditadores que facilita o desencadear de guerras.
‘Existe uma lógica no comportamento dos ditadores que facilita o desencadear de guerras’
Daniel Buarque – A Guerra do Paraguai parece um desses eventos controversos sobre o qual a historiografia parece que nunca consegue parar de se atualizar e sempre está trazendo novidades. A edição original do livro Maldita Guerra tem mais de duas décadas e já discutia essa questão. O que há de novidade nesta edição mais recente?
Francisco Doratioto – Quando eu escrevi o livro, a internet ainda era pouco desenvolvida, quase não tinha material na rede. Havia arquivos muito importantes que estavam inacessíveis. São milhares de documentos que estavam guardados e que não podiam ser manuseados para garantir a segurança dos papéis originais. O material estava lá, fechado, e nenhum pesquisador podia ter acesso. Mais recentemente, faz uns 5 ou 6 anos, o material foi colocado online. Graças à nova tecnologia, passamos a ter acesso a milhares de documentos. Além disso, passamos a ter acesso a relatos de memórias da Argentina, do Uruguai, do Brasil. Outro material de memórias do Paraguai foi descoberto na universidade do Texas comprovando que López era realmente um ditador, que não houve processo decisório para decidir pela guerra, que se sabia que a guerra ia ser um equívoco, que ia ser ruim para o Paraguai. E a própria hemeroteca da Biblioteca Nacional, que foi colocada online, também ajudou. Quando eu pesquisei para a primeira edição do Maldita Guerra, tinha que ir ao Rio de Janeiro pedir material em papel ou microfilme. Era um trabalho braçal, difícil e custoso financeiramente porque implicava em ficar em hotel e tudo isso. E tudo isso agora também está online. Antes a gente tinha que buscar informação. Agora o problema é o excesso de informação.
‘López era realmente um ditador, não houve processo decisório para decidir pela guerra, sabia-se que a guerra ia ser um equívoco, que ia ser ruim para o Paraguai’
Depois que eu escrevi o livro, houve um grande desenvolvimento de estudos sobre a história da Guerra do Paraguai no Brasil. Houve uma coincidência de publicações de obras importantes e que, por sua vez, abriram caminhos para a produção posterior. Desde 2002, a quantidade de informações inéditas é incrível, e além disso novas análises historiográficas muito interessantes, com novas metodologias, novos objetos. Eu incorporei tudo isso na nova versão do livro. A nova edição tem 80 páginas a mais que a anterior. Ela fundamentalmente ratifica, aprofunda o que estava na primeira edição. A única alteração de informação que fiz nessa edição foi sobre a construção da Fortaleza de Humaitá, às margens do Rio Paraguai, que era uma fortaleza muito importante para controlar a navegação. Toda a historiografia brasileira afirmava que na construção da fortaleza haviam participado engenheiros militares brasileiros. E nesta edição, eu retifico, porque um historiador paraguaio questiona isso e comprova que engenheiros brasileiros não participaram
Daniel Buarque – Considerando esse movimento todo dos últimos 20 anos, ainda pode-se falar que a história da Guerra do Paraguai é dominada por mitos e simplificações como era no passado? Estamos mais bem informados em relação à guerra?
Francisco Doratioto – Com certeza estamos mais bem informados. Mas também com certeza há mitos e vai continuar a haver mitos.
Estamos mais bem informados, pois temas como a questão da influência inglesa sobre a guerra, por exemplo, era algo que era ensinado nas escolas e universidades até o fim do século passado. Mas muitos estudos mostram que não houve essa influência, como o do professor Moniz Bandeira, que foi o pioneiro no Brasil em falar que não foi a Inglaterra que causou a guerra. Ainda assim, a visão predominante era de que tinha sido a Inglaterra. Então, quando eu comecei a escrever o livro em 2000, era muito importante essa questão. Mas hoje é raríssimo encontrar algum historiador defendendo essa posição, porque não há documentação, não há lógica histórica para responsabilizar a Inglaterra.
A questão dos mitos é relevante pois a Guerra do Paraguai faz parte da identidade nacional do Paraguai, da Argentina, do Brasil, do Uruguai, e não tem como interesses do presente não construírem imagens, interpretações sobre personagens dessa história. O Duque de Caxias, por exemplo, foi comandante do Exército do Brasil no Paraguai e é patrono do Exército brasileiro, então existe um óbvio vínculo entre a análise do personagem no século XIX com aspectos do presente. Solano López é um herói nacional no Paraguai. Ele levou o país ao desastre final, porque não soube o momento de render-se, e ainda assim é considerado um herói, é um mito. É um Francisco Solano López inventado pelo que a sociedade paraguaia gostaria que ele tivesse sido.
‘Dada a complexidade das origens da guerra, é muito mais sedutor para quem lê e para quem escreve sem uma preocupação académica simplificar e jogar a responsabilidade em uma figura só’
É natural que existam exageros e simplificações. Dada a complexidade das origens da guerra, é muito mais sedutor para quem lê e para quem escreve sem uma preocupação académica simplificar e jogar a responsabilidade em uma figura só. Então o confronto de interpretações, da documentação, do método utilizado ajuda a reduzir os mitos e as simplificações, mas é inevitável que eles existam
Daniel Buarque – Você mencionou a questão de identidade e, apesar da Guerra do Paraguai, o Brasil construiu sua identidade internacional em cima da ideia do pacifismo, da resolução pacífica de conflitos por via diplomática. Acha que tem alguma influência da guerra do Paraguai na formação desse perfil?
Francisco Doratioto – Não vejo essa relação. Não existia uma teoria de relações internacionais na época, mas a teoria da elite do Brasil imperial, principalmente do partido conservador que vai construir uma política externa para o Rio da Prata, era baseada na ideia de que o Brasil era a única monarquia entre repúblicas. Um dos aspectos apresentados ao público no século XIX para legitimar a monarquia era que os nossos vizinhos eram instáveis, tinham caudilhos, guerras civis, e o Brasil, a partir de 1840, não é instável politicamente, não tem guerras. Então o sistema monárquico de governo é superior, etc. A interpretação era de que o vizinho não era confiável, e o Brasil devia evitar uma união entre os vizinhos, negociar de forma bilateral e estar pronto para evitar que surgisse uma Grande Argentina que ocupasse todo aquele espaço do Vice-Reino do Rio da Prata no período colonial, ou seja, o que é hoje o Uruguai, o Paraguai, a Bolívia, a própria Argentina. Porque seria uma República muito forte ao sul, uma ameaça militar potencial. Em segundo lugar, o exemplo de uma República bem sucedida ia desarticular o discurso de que a monarquia era uma forma de governo superior. E ademais, mesmo que fosse uma república pacífica, controlaria os rios internacionais da região, que eram importantes para o Rio de Janeiro manter contato regular e de comércio com a província de Mato Grosso.
Se fosse fazer uma referência às teorias de relações internacionais, diria que o governo, a elite imperial, era realista em termos de relações internacionais. As relações com a Grã-Bretanha foram muito duras, por exemplo, os Estados Unidos também teve momentos de forte tensão. Essa coisa do pacifismo, de resolver através de negociações, de não ingerência nos assuntos internos dos outros países, vai ser construída na gestão do Barão do Rio Branco. E há um certo exagero na afirmação que o Barão do Rio Branco era pacifista. Ele dizia que as guerras eram uma solução horrível, uma coisa desgraçada, então ele não era a favor de ação de força. Mas, se você pegar a questão do Acre, por exemplo, antes de começar a negociação, ele mandou um regimento do Exército brasileiro para o Acre, para criar um fato consumado. Ele era a favor de relações internacionais pacíficas, mas apoiou, por exemplo, o rearmamento naval. Essa imagem do Rio Branco pacifista, esquecendo esse pragmatismo é o fato de que a diplomacia brasileira posteriormente teve interesse em dar ênfase ao pacifismo, e aí deu ênfase em Rio Branco como uma figura pacifista, o que permitiu efetivamente construir uma política externa muito eficiente
Daniel Buarque – Alguma coisa desse realismo de 150 anos atrás persiste na realidade da diplomacia brasileira até hoje? Existe influência da Guerra do Paraguai na poítica externa do país?
Francisco Doratioto – Até a década de 1980, predominou o sentimento de que Buenos Aires era um rival potencial no Rio da Prata e que se deveria disputar a hegemonia com eles e se impor. O Itamaraty foi fortemente influenciado pelo realismo de contenção de Buenos Aires no Rio da Prata. Hoje essa questão não se coloca mais. De qualquer forma, nas Forças Armadas sempre existe aquela coisa de hipótese de guerra. Por mais que hoje a principal hipótese de guerra seja relacionada à proteção da Amazônia, a maior concentração de tropas do Brasil está no sul do país. Claro que isso é um pouco por inércia, mas no meio militar existe ainda muito desse realismo. Até o começo do século XXI houve uma notável mudança de mentalidade na diplomacia brasileira em favor da redução desse realismo, em substituir efetivamente a rivalidade pela ideia de cooperação.
‘Se alguma lição a Guerra do Paraguai deixou para a diplomacia brasileira é exatamente a desgraça que é a guerra’
Se alguma lição a Guerra do Paraguai deixou para a diplomacia brasileira é exatamente a desgraça que é a guerra. A palavra do Barão está certa. E há necessidade de cooperação e de se manter muito bem informado e ter uma presença no Rio da Prata, e em outros países, para para saber o que está acontecendo, fazer análises corretas. No Paraguai pré-guerra, o Brasil era pessimamente representado e a delegação brasileira no pré-guerra não sabia o nível de organização militar, os preparativos de Solano López para uma ação militar. Então é importante ter uma presença diplomática, e essa é uma boa lição da Guerra do Paraguai em termos diplomáticos.
Daniel Buarque – Estamos falando muito sobre o Barão do Rio Branco, mas você escreveu um artigo sobre o pai dele, o Visconde do Rio Branco, que teve uma importância muito grande no período Imperial, mas que acaba sendo esquecido. Qual a relevância dele nesse para essa formação da diplomacia Brasileira?
Francisco Doratioto – Até o final do século XIX, até a questão de Palmas, com a Argentina, em que o laudo arbitral do presidente dos Estados Unidos foi favorável ao Brasil, o Barão do Rio Branco, o filho, era absolutamente desconhecido. E o Visconde do Rio Branco era o grande personagem da história do Brasil Império, e um dos grandes estadistas do Brasil Império. Ele teve uma carreira inteira dentro do Estado brasileiro. Ele foi senador, ministro da Guerra, ministro das Relações Exteriores, primeiro-ministro, negociador experiente no Rio da Prata. É uma figura fascinante do Brasil Império. Com certeza o José Maria da Silva Paranhos, o pai, o Visconde do Rio Branco, é tão importante para a história do Brasil e para o Estado monárquico quanto a figura do José Maria da Silva Paranhos Filho, o Barão, é para o Estado republicano.
Daniel Buarque – Que tipo de influência a guerra tem até hoje na relação entre o Brasil e o Paraguai?
Francisco Doratioto – O Paraguai perdeu a guerra, e qualquer país derrotado evidentemente tem uma sensibilidade muito grande para um tema como esse. E isso precisa ser levado em consideração. Mesmo que o Brasil não tivesse, em 1864, nenhum interesse, nenhum projeto de fazer uma guerra contra o Paraguai, é uma questão sensível, e que permanece sensível, porque, afinal, o país foi derrotado, perdeu território. No geral, a sociedade paraguaia encara as relações com o Brasil com muita simpatia. Existe um pequeno núcleo do revisionismo Lopista, que construiu a imagem do Solano López herói. É um projeto político da extrema-direita paraguaia, uma instrumentalização da história para para defender interesses no presente.