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sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

A dupla barbárie na guerra Hamas-Israel e a solução de dois Estados - Sérgio Florêncio (Portal Interesse Nacional)

 A dupla barbárie na guerra Hamas-Israel e a solução de dois Estados

Sérgio Florêncio

Embaixador aposentado


A dupla barbárie - o ataque terrorista do Hamas contra a população civil israelense, com 1200 mortos, além de 240 reféns; e a brutal contraofensiva israelense, com mais de 12 mil mortos em Gaza – poderá abrir caminho à única alternativa viável para a questão palestina: a solução de dois Estados, apresentada pela ONU em 1947, quando da partilha da Palestina. A partir de então, essa solução sempre fracassou, tanto por intransigência israelense como palestina. Diante da devastadora tragédia iniciada em 7 de outubro, diversos líderes mundiais e Estados árabes, por primeira vez, sinalizam apoio à solução de dois Estados. Assim, a superação do impasse passa a depender de dois polos : EUA -Israel versus Irã-Hezbollah-Hamas. 

A primeira solução de dois Estados, proposta pela ONU em 1947, previa 53% da Palestina para os israelenses e 47% para os palestinos, sendo que os primeiros eram apenas 30% da população e os segundos , 70%. Os Estados árabes naquele momento foram terminantemente contrários à partilha. Consideravam a criação do Estado de Israel inaceitável imposição do colonialismo inglês, contrária aos direitos legítimos do povo palestino, e que poderia ser revertida pelas armas, diante da fragilidade militar e demográfica dos israelenses. A consequência foi a guerra de 1948 , surpreendentemente vencida por Israel, que ampliou sua área, passando dos 53%, previstos na partilha definida pela ONU, para 79%, consolidando, dessa forma, sua existência como Estado.

Diversos outros conflitos armados marcaram a rivalidade entre árabes e israelenses, tendo como epifenômeno a questão palestina e como resultado concreto a contínua ampliação do território de Israel. Assim foi na Guerra dos Seis Dias, de 1967, provocada por Israel, assim foi na Guerra do Yom Kippur, de 1973, iniciada por Egito e Síria. Na primeira, Israel ocupou toda a Palestina histórica, objeto da partilha de 1947. Na segunda, os árabes tentaram retomar esses territórios, mas fracassaram, sendo as Colinas de Golan, da Síria, formalmente anexadas a Israel. 

 Paralelamente a esses conflitos em torno da questão palestina, se desenvolviam os processos de paz, com avanços e recuos, mas que nunca chegaram a implantar a solução de dois Estados. 

Os Estados Unidos sempre foram o grande mediador/protagonista nessas negociações, que resultaram em dois Acordos de Paz - Camp David e Oslo - e envolveram, de um lado, Israel e, de outro, os Estados árabes mais influentes, como Egito, Síria, Jordânia, e a Organização para a Libertação da Palestina - OLP, sob a firme e carismática liderança de Yasser Arafat. 

As propostas contidas naqueles acordos de paz, embora contemplassem relativo equilíbrio entre as aspirações de judeus e palestinos, fracassaram, o que explica o clima de permanente tensão e conflito em torno da questão palestina. 

Os Acordos de Camp David de 1978 selaram a paz entre os atores hegemônicos na época - Israel e Egito. A Península do Sinai foi devolvida a esse último, que, em troca, reconhecia a existência do Estado de Israel. Na mesma linha, os acordos Begin-Sadat se referiam à devolução da Cisjordânia e da Faixa de Gaza para as lideranças palestinas. Isso significava ruptura radical com o passado. Nos anos 1950 e 1960, a liderança nacionalista de Nasser, o armamentismo egípcio com ajuda soviética e seu projeto de panarabismo ameaçavam de morte a existência de Israel. Em consequência, fortaleciam sua militarização, a defesa prioritária de suas fronteiras, tendo como desfecho, em 1967, a Guerra dos Seis Dias. 

Entretanto, aquelas promessas de Camp David foram desrespeitadas e só retomadas quinze anos depois, em 1993, com os Acordos de Oslo. Esses estabeleciam que a OLP, liderada por Yasser Arafat, reconhecia a existência de Israel, mas agora em troca de sua retirada da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Tratados complementares a Oslo previam a restituição aos palestinos de todos os territórios ocupados, o que nunca ocorreu. 

Qual a importância dessa revisão histórica para a compreensão da atual guerra entre Hamas e Israel e da possibilidade de, no pós-guerra, prevalecer a solução de dois Estados? A não implementação tanto de Camp David como de Oslo e o avanço dos assentamentos de colonos judeus sobre a Cisjordânia geraram ampla e profunda frustração entre os palestinos. Isso contribuiu para sua radicalização, visível na violência das duas Intifadas, que sepultaram aqueles dois processos de paz e fortaleceram os grupos rebeldes paramilitares apoiados pelo Irã – Hezbollah, Hamas e Jihad Islâmica. 

No plano doméstico, a ascensão política do Likud, dos religiosos ortodoxos e da extrema direita em Israel completava um quadro de polarização interna e externa. O projeto autoritário de poder de Netanyahu não dava margem a dúvidas - seu governo se afastava do jogo democrático ao perseguir o Judiciário; buscava o expansionismo sionista com exclusão da causa palestina; e dividia a sociedade israelense, que ia as ruas com milhões de manifestantes em defesa das instituições democráticas. 

Na vertente externa, a essência do contexto negociador se alterava substancialmente: declínio da importância dos EUA no Oriente Médio; ascensão de da direita radical, com Trump na presidência; e robusta influência política e militar iraniana na região. Os atores relevantes na Guerra dos Seis Dias, na Guerra do Yom Kippur e nas negociações de paz – Egito, Síria, Jordânia e OLP – eram substituídos pelo Irã revolucionário, e seus agentes nas proxy wars – Hamas, Hezbollah, Jihad Islâmica - que desestabilizavam as monarquias do golfo, mas ao mesmo tempo defendiam o status quo na Síria O Irã se afirmava na região e globalmente pelas armas e pelo avanço de seu programa nuclear.

Outra mudança de peso foi a aliança revigorada entre Washington e Tel Avive, visível na decisão crucial de Trump de retirar os EUA do Acordo sobre o Programa Nuclear Iraniano de 2015, arduamente negociado por Obama e aprovado pelos cinco membros permanentes do CSNU mais a Alemanha. A nova estratégia norte-americana se contrapunha ao Irã e tinha como alicerce os Acordos de Abraão, destinados a normalizar as relações de Israel com Bahrein, Emirados Árabes Unidos (EAU), Marrocos e Sudão. Ao mesmo tempo, avançava celeremente a aproximação diplomática Israel-Arábia Saudita. Essa seria, na visão dos países envolvidos, o desfecho de uma modalidade inédita de paz no Oriente Médio, ao selar uma aliança entre o Estado judeu e seus arqui-inimigos do passado no mundo árabe. 

Mas nessa gramática geopolítica, aparentemente exitosa, havia um sujeito oculto – o povo palestino. Enquanto os acordos de paz anteriores – Camp David e Oslo – tinham como centro a questão palestina, a estratégia de Trump fragilizava as lideranças moderadas palestinas (Fatah e Autoridade Nacional Palestina – ANP) e buscava uma paz top down, alicerçada na normalização das relações árabe-israelenses. 

Netanyahu consolidava essa estratégia de Trump, que considerava a questão palestina como integrante de um irrelevante coeteris paribus. Como Primeiro Ministro, controlava o Parlamento - em aliança com o Likud, as lideranças religiosas e a extrema direita - ao mesmo tempo que procurava neutralizar o Judiciário e, assim, eliminar a democracia israelense. Diante da alternativa entre identidade judaica ou democracia liberal, Netanyahu optou pela primeira, tendo como instrumento o Estado unitário, ou seja, o antípoda da solução de dois Estados. 

O braço direito dessa estratégia consistia em desacreditar o Fatah e a Autoridade Palestina, por meio do avanço exponencial dos assentamentos de colonos judeus na Cisjordânia ( cerca de 468 mil , segundo levantamento de 2022 da CIA) e em Jerusalém ( cerca de 262 mil). O outro braço era manter o Hamas sob controle, ao facilitar o fluxo de recursos do Catar para o grupo paramilitar e ao liberar residentes da Faixa de Gaza para trabalharem em Israel.

Assim, um transfigurado acordo de paz entre elites regionais estava em curso. Ao colocar entre parênteses ou jogar para escanteio a questão palestina, o objetivo era estabilizar a região, o que significava ameaçar a hegemonia do Irã e a razão de existir de seus procuradores regionais – Hezbollah e Hamas. Era uma transfiguração com os três pilares políticos acima indicados – revigorada aliança EUA-Israel; normalização das relações entre Israel e Estados árabes; e inexorável fragilização do Fatah e da Autoridade Palestina, por meio de mais de 700 mil assentamentos judeus na Cisjordânia e em Jerusalém. O preço da estratégia era uma paz de cemitério, com o sepultamento da questão palestina. 

Desdobramentos do processo acima descrito estarão na dependência do desfecho do conflito Hamas – Israel e da desafiadora gestão do pós-guerra. Parece provável que Israel esteja próximo de alcançar seu objetivo da eliminação militar do Hamas e da desmilitarização da Faixa de Gaza. Caso esse cenário se consolide, a pressão internacional para a solução de dois Estados assumirá supremacia, com o respaldo das duas superpotências, da Rússia e da União Europeia. 

É evidente que a continuidade da guerra beneficia China e Rússia . Os EUA saem fragilizados, porque são forçados a destinar vultosos recursos materiais e humanos para dois conflitos simultâneos de grandes proporções – Faixa de Gaza e Ucrânia . Mas o custo humanitário de estimular a barbárie seria brutal para China e Rússia. Por isso mesmo, a primeira votou a favor e a segunda se absteve na Resolução articulada pelo Brasil no Conselho de Segurança da ONU, apoiada por 12 dos 15 membros e vetada pelos EUA. Esse contexto geopolítico global favorece a solução de dois Estados.

 Entretanto, o avanço nessa direção dependerá de duas variáveis domésticas decisivas. A primeira é de fácil previsibilidade – a queda de Netanyahu no day after do conflito e a emergência de um governo de coalizão com maioria liberal. A segunda variável é extremamente difícil. Exigirá uma engenharia política e de segurança de alto risco em termos de coesão interna e de estabilidade social. Como proceder ao êxodo dos 700 mil israelenses que hoje ocuparam a Cisjordânia e Jerusalém, com o estímulo do governo de Israel e o beneplácito de Trump? Em sua maioria são colonos aliados de Netanyahu, integrantes da ortodoxia religiosa e da extrema direita antidemocrática. Em outros termos, como desmontar, numa democracia, o poderoso Cavalo de Troia montado por Netanyahu para dividir o país e bloquear a solução de dois Estados? 

Além desses obstáculos, o modelo de dois Estados exigirá, no day after do conflito, uma complexa gestão política, administrativa e de segurança. Que conformação terá o novo Estado Palestino para gerir, de forma sustentável, um território devastado pela contraofensiva militar israelense? Poderá Israel assumir temporariamente, como vem indicando Netanyahu, no imediato pós-guerra, a administração da Faixa de Gaza virtualmente destruída? Poderá uma Força de Paz da ONU, integrada também por nacionais de países árabes, construir pontes, moldar a transição para o almejado Estado palestino e, assim, consolidar a solução de dois Estados?

 Embora de difícil concretização, o modelo de dois Estados é o único capaz de trazer paz duradoura para a dividida sociedade israelense e alívio prolongado para o sofrido povo palestino. Apesar dos obstáculos hercúleos e dos enigmas comparáveis aos do oráculo de Delfos, a solução de dois Estados ganha momento no plano internacional e doméstico. Conta com a poderosa adesão das grandes potências, com o apoio da opinião pública nas sociedades democráticas, com os milhões de manifestantes nas ruas de Israel e com a resiliência das instituições representativas - pilares da democracia israelense. Talvez aqui seja válida a conhecida frase atribuída a Victor Hugo. “Nada é tão poderoso como uma ideia cujo tempo chegou”. 

 

Sérgio Florêncio

Brasília, 30 de novembro de 2023

Portal da revista Interesse Nacional


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