Punhos de renda
Por José Renato Nalini*
Blog do Fausto Macedo, 27/12/2023 | 05h00
As escaramuças entre pessoas cultas podem revestir peculiaridades que disfarçam a rudeza, própria aos desprovidos de polidez. Por isso se diz que existe uma “ética de punhos de renda”, tão cruel quanto, mas sob aparência de civilidade.
Essas desinteligências podem surgir na carreira universitária, em estamentos como a Magistratura ou a diplomacia. Até na Igreja, o confronto entre posições antagônicas transparece. Existe acerba competição entre potenciais candidatos às mesmas cobiçadas vagas. É um silente, porém feroz duelo de egos.
Oliveira Lima e Joaquim Nabuco, ambos contemporâneos, ambos amigos, ambos diplomatas, se estranhavam. O primeiro censurava Nabuco por não libertar os cativos que sua família ainda possuía. Invocava o exemplo de sua mãe, que alforriara todos os escravos do serviço doméstico, à exceção de um só, que fora vendido meses antes por furtos cometidos. Mas chegou a conhecimento da mãe de Oliveira Lima que esse elemento servil estava a serviço de um senhor de engenho conhecido por sua desumanidade e que se gabava de, toda a vez que comprava um escravo, aplicar-lhe uma “novena”. Isto é, mandar surrá-lo diariamente durante nove dias, para que “aprendesse a conhecer o senhor”. Condoída, a senhora recomprou-o, a preço elevado pelo desalmado, e deu ordem para libertar o infeliz.
Já Nabuco era mais poeta do que abolicionista. Ambicionava honrarias e galanteios. Araújo Beltrão, cunhado de Oliveira Lima, suscitou homenagem a Nabuco no Parlamento Português e conseguiu concretizá-la. Algo a que Nabuco não agradeceu e fez questão de esquecer.
“Na sua presunção, Nabuco ia ao ponto de esquecer as considerações pelo amor próprio alheio”. Oliveira Lima o ajudou quando em Londres, ante nova invasão armada no território contestado com a Guiana Britânica. Nabuco estava a cuidar do arbitramento entre Brasil e Inglaterra. Nabuco mandou a Oliveira Lima um texto preparado por Graça Aranha, verdadeira “mixórdia digna de Malasarte, que corria o risco de ser restituída para ser posta em vernáculo, por estar recheada de termos tupis. Uma das frases dizia – textualmente: dans la maloca du tuxana”. Oliveira Lima deixou de lado a minuta e redigiu outra. Com surpresa viu que a “sua” nota, que elaborara a respeito, figurou nas memórias de Nabuco, sem referência à verdadeira autoria.
Em compensação, Graça Aranha fez jus a uma recompensa por seu trabalho. Nabuco o mandou representa-lo em Haia, no casamento da Rainha Guilhermina, “custeando suas despesas com o dinheiro destinado aos gastos de publicidade”, de que Oliveira Lima não fizera uso. A observação deste: “Os turibulários têm sempre sorte porque os homens, mesmo grandes, são muito sensíveis à lisonja”. Raros os homens públicos dotados de altivez ávida de impopularidade. “Rio Branco e Nabuco, pelo contrário, tinham a ânsia da popularidade, com uma diferença entretanto. Nabuco era um aristocrata, descendente pela mãe daquele fidalgo vianês Paes Barreto, tronco dos Morgados do Cabo, que, com o espírito de um São João de Deus, quis ir morrer entre os pobres no hospital que fundara em Olinda”. Já a Rio Branco, “não achou Afonso Arinos, no elogio do visconde pronunciado na Academia ao recolher a sucessão de Eduardo Prado, que o escolhera para patrono da sua cadeira, outro avô senão um capitão de navio da Bahia. Ora, navios da Bahia, de longo curso naquele tempo andavam pela certa ocupados no tráfico de escravos”.
Em desfavor de Nabuco, Oliveira Lima diz que, “depois de estar em contato com o povo, ia ensaboar as mãos e perfumar-se”. Algo ainda muito comum nos dias de hoje. Políticos que apertam as mãos do populacho e, mal adentram em seus carros e recorrem ao álcool purificador. Hoje ainda existe a escusa da Covid. Mas, mesmo antes disso, o “nojo de pobre”, a ojeriza ao povo não era uma característica incomum aos “mais iguais do que os outros” na bizarra Democracia Representativa tupiniquim.
Seja como for, Nabuco era um cavalheiro. A ponto de uma condessa, esposa de um embaixador alemão no Rio, ter dito a seu respeito, que era de se estranhar que só na Europa se encontrassem brasileiros distintos. Aqui, os que ela conheceu, não poderiam ser incluídos nessa categoria.
*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e secretário-geral da Academia Paulista de Letras
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