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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

80 Anos do Brasil na ONU: a história da diplomacia e de uma vida - Paulo Roberto de Almeida (Ateliê de Humanidades)

80 Anos do Brasil na ONU: a história da diplomacia e de uma vida

  

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Publicado pelo Ateliê das Humanidades (31/01/2025; link: https://ateliedehumanidades.com/2025/01/31/80-anos-do-brasil-na-onu-a-historia-da-diplomacia-e-de-uma-vida/); disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/127389171/4826_80_Anos_do_Brasil_na_ONU_a_hist%C3%B3ria_da_diplomacia_e_de_uma_vida_2025_).

  

Sumário: 

Introdução: da ordem mundial do segundo pós-guerra à desordem atual

O Brasil, presente na criação da ordem mundial contemporânea

Uma trajetória voltada para o estudo e a análise das relações internacionais

O Brasil na ONU durante a Guerra Fria: o desenvolvimento, no lugar da geopolítica imperial

Rupturas na diplomacia: o lulopetismo e o bolsonarismo na política externa

O Brasil na ONU e nas relações regionais na redemocratização da Nova República

O Brasil em face da fragmentação do multilateralismo e da segunda Guerra Fria

Uma relação sumária de minha produção intelectual

 

 

Introdução: da ordem mundial do segundo pós-guerra à desordem atual

    A Organização das Nações Unidas era considerada, até a emergência, confirmada, de uma “segunda Guerra Fria”, como o eixo central do multilateralismo contemporâneo, atualmente sendo abalada por novas fricções geopolíticas derivadas de uma fragmentação da atuação das instituições multilaterais e pela ascensão de potências desafiadoras da ordem mundial reconhecidamente ocidental criada nos estertores da Segunda Guerra Mundial, nomeadamente a Rússia e a China. As tensões derivadas da vontade do neoczar Vladimir Putin de confirmar a preeminência imperial russa no seu entorno imediato (e mais além) e da pretensão do líder chinês Xi Jinping de unificar a RPC antes do final de seu terceiro mandato à frente da grande nação asiática, em 2027, estão alimentando um cenário de enfrentamentos localizados e generalizados entre as grandes potências, marginalizando o papel da ONU como cenário ideal para debates em torno das questões relevantes da governança global e comprometendo o futuro da cooperação multilateral em temas de paz e segurança, assim como nas demais vertentes do multilateralismo, sobretudo economia e direitos humanos. 

        No presente texto pretendo adotar um enfoque pessoal na análise sintética dos oitenta anos decorridos desde o surgimento da organização sucessora da frustrada Liga das Nações, a fundadora original do multilateralismo contemporâneo, e sobre o papel do Brasil nesse longo itinerário de construção de uma ordem global menos dominada pelo direito da força e mais influenciada pela força do Direito, como eram as expectativas criadas na conjuntura do final do maior conflito mundial, agora temporariamente substituídas pelo que se denominou, de forma imprecisa, como uma “segunda Guerra Fria”. Como se desempenhou a diplomacia do Brasil nesse período bastante prometedor, mas agora preocupante, em face de ameaças, antes impensáveis, de uso de armamento nuclear para “resolver” conflitos resultando de ambições expansionistas de um poder que se colocou à margem do Direito Internacional, violador dos próprios princípios que guiaram a construção da ordem mundial atualmente fraturada? Quais são os desafios que se colocam à política externa do Brasil nesse novo contexto de fraturas na ordem mundial que ela ajudou a criar nos seus primórdios, mas sempre com uma perspectiva crítica com respeito de suas insuficiências e deficiências quanto ao desenvolvimento?

(...)

Ler na íntegra, com a correção do segundo parágrafo (No presente texto pretendo...), neste link: 

https://www.academia.edu/127389171/4826_80_Anos_do_Brasil_na_ONU_a_hist%C3%B3ria_da_diplomacia_e_de_uma_vida_2025_

Anexo: 

1568. “As relações internacionais do Brasil numa era de fragmentação geopolítica”, Interação com o Ateliê das Humanidades (https://ateliedehumanidades.com/o-atelie-de-humanidades/), com a participação de André Magnelli, Lucas Fayal Soneghet e Paulo Martins, em 22/01. Disponível em 27/01/2025 no YouTube (https://youtu.be/wze6Rw3rPyE) e no (Spotify: https://open.spotify.com/episode/553PSG4fE9txXGjI1pHin4?si=15775e7121dd4bc6); disponível no blog Diplomatizzando (27/01/2025; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2025/01/as-relacoes-internacionais-do-brasil_27.html). Relação de Originais n. 4834.


A Fools Paradise: Thomas Friedman and the Middle East - Melvin Goodman Counterpunch

 A Fools Paradise: Thomas Friedman and the Middle East

Melvin Goodman

Thomas Friedman, New York Times columnist and author in the newspaper’s Washington, DC bureau.
Counterpunch, January 31, 2025

https://www.counterpunch.org/2025/01/30/a-fools-paradise-thomas-friedman-and-the-middle-east/

“I am convinced that Bibi understands…that by significantly weakening Hezbollah and Iran, he has helped set in motion the possibility for Lebanon and Syria to restore their sovereignty and unity. I think he is ready to complete Israel’s withdrawal [from Lebanon] and finalize the border….”
– Thomas Friedman, “How Trump Can Remake the Middle East,” New York Times, January 21, 2025,
Thomas Friedman, the New York Times’ most influential columnist, has comprehensively recorded his dreamscape for the Middle East. It tells Donald Trump that “you have a chance to reshape this region in ways that could fundamentally enhance the peace and prosperity of Israelis, Palestinians and all the region’s people, as well as the national security interests of America.” Friedman believes that Benjamin Netanyahu is “ready to complete Israel’s withdrawal and finalize the border” with Lebanon, and that the United States has an “enormous opportunity to truly end the civil war [in Lebanon] and put the country back together.” Finally, he produces a threat: Iran’s nuclear program and malign regional strategy need to be eliminated, and if Trump can’t do this through “peaceful negotiations,” it needs to be “done kinetically.” That’s right: Friedman is willing to commit the United States to a war against Iran.
Friedman’s dreamscape for the Middle East makes no sense on any level. Even former secretary of state Antony Blinken eventually recognized that Israel has “systematically undermined the capacity and legitimacy of the only viable alternative to Hamas, the Palestinian Authority.” What has happened to Friedman’s concerns about Netanyahu have no political solutions for Gaza on the “Day After” the fighting stopped.
Israel is expanding official settlements and nationalizing land on the West Bank at a “faster clip than at any time in the last decade, while turning a blind eye to an unprecedented growth in illegal outposts,” according to Blinken. The attacks by extremist settlers on Palestinians, moreover, “have reached record levels.” Friedman believes that the Jewish supremacists in Netanyahu’s cabinet are responsible for this aggression, but significant evidence points to Netanyahu himself as supporting these actions.
Friedman believes that Netanyahu is ready to withdraw from the border with Lebanon even as Israeli Defense Forces are ignoring the so-called cease fire agreement and continuing to bomb Lebanese villages. On the very day that Israel was to withdraw from southern Lebanon, IDF forces killed at least 22 Lebanese civilians and injured more than 100. The withdrawal agreement was fragile from the start, with no monitoring mechanism in place and no definition of what constitutes a violation of the agreement.
Netanyahu simply has no faith in the ability of the Lebanese Army to stymie the resurgence of Hezbollah in southern Lebanon. Lebanon itself is a failed state, and there are no indications that Israel is preparing to withdraw its forces. Meanwhile, the right-wing Israeli defense minister, Israel Katz, has warned that, if there is a resumption of fighting, Israeli strikes would no longer differentiate between Hezbollah and the Lebanese state. That should come as no surprise as Israeli governments since the Israeli invasion of Lebanon in1982 have made no effort to protect Lebanese sovereignty. Nor has the IDF moved to disable the six military bases built in recent months in southern Lebanon.
If Donald Trump had any interest in a solution to the crisis between Israel and the Palestinians, he never would have stated that he wanted to “clean out” Gaza by transferring some of its population to Egypt and Jordan. I’m sure that Trump has no concern with the war crimes that would be committed to “clean out” Gaza. Nor I’m sure does he understand the “nakba” or catastrophe in 1948, when Israel began its policy of displacing Palestinians whose families had resided for hundreds of years in Palestine.
I’m also sure that moderate Arab leaders who might have worked with the United States to find a political solution realize that Trump has no understanding of the deep differences within the Arab community regarding a peaceful settlement. But Arab leaders do agree that a solution cannot include a resettlement that would destabilize their own fragile governments. Trump’s efforts to get Egypt and Jordan to take in more than a million Palestinians is not just one of the mistakes that he has made in less than two weeks in the White House. In fact, it may be his biggest mistake thus far; it’ll remind people of Trump’s Muslim ban in the first few months of his first term.
Friedman’s apparent support of war against Iran, meanwhile, is his biggest mistake. Iran is now more vulnerable than at any time since the war with Iraq in the 1980s. It has lost its “axis of resistance” (Hamas, Hezbollah, and Syria) to counter the regional influence of the United States and Israel. Iran could decide to weaponize its decades-old nuclear program, but it seems more interested in pursuing a comprehensive dialogue with the United States to get an end to the sanctions that have devastated Iran’s economy. Unfortunately, Trump has stocked his government with militarists who favor a kinetic approach to the problem of Iran as does Friedman.
Ironically, Friedman has ignored the one step that Trump has taken that would augur for a more moderate approach to the Middle East as far as U.S. involvement is concerned. In a step that has been totally ignored by the mainstream media, Trump has named Michael DiMino as the Assistant Secretary of Defense for the Middle East. Not exactly a household name, DiMino has been skeptical regarding the close ties between the United States and Israel, and rejects the notion that the United States has “vital or existential” interests in the Middle East. He favors the withdrawal of U.S. forces from Iraq and Syria, and he believes that Washington’s two primary interests in the region—energy resources and combatting terrorism—are exaggerations. The fact that pro-Israel Republicans as well as Israel itself object to this appointment is noteworthy. So perhaps Trump may consider ideas about the Middle East that are new and different.

Melvin A. Goodman is a senior fellow at the Center for International Policy and a professor of government at Johns Hopkins University. A former CIA analyst, Goodman is the author of Failure of Intelligence: The Decline and Fall of the CIA and National Insecurity: The Cost of American Militarism. and A Whistleblower at the CIA. His most recent books are “American Carnage: The Wars of Donald Trump” (Opus Publishing, 2019) and “Containing the National Security State” (Opus Publishing, 2021). Goodman is the national security columnist for counterpunch.org

François Dosse. A saga dos intelectuais franceses 1944-1989. Volume II: O futuro em migalhas (1968-1989) - Resenha

 Resenhas • Tempo soc. 36 (02) • May-Aug 2024 • https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2024.221782 linkcopiar

François Dosse. A saga dos intelectuais franceses 1944-1989. Volume II: O futuro em migalhas (1968-1989). São Paulo, Estação Liberdade, 2023.

Dosse, François. A saga dos intelectuais franceses 1944-1989. Volume II: O futuro em migalhas (1968-1989). São Paulo: Estação Liberdade, 2023

O “Maio de 68” francês é daqueles acontecimentos que delimitam um antes e um depois. Avaliações distintas à parte, poucos questionam o fato de que o evento significou uma bifurcação não apenas na história política como também nas cenas cultural e intelectual do país europeu - para não falar de suas ressonâncias globais. Em um país que, desde o chamado “caso Dreyfus”, no final do século XIX, quando Émile Zola e outros escritores e acadêmicos se insurgiram contra o processo fraudulento e antissemita que mirava o capitão de origem judaica, ficou conhecido como a pátria dos intelectuais, o impacto não poderia deixar de ser profundo.

Traçar um quadro das consequências intelectuais subsequentes a este “acontecimento-ruptura” é o principal objetivo de François Dosse em O futuro em migalhas (1968-1989), segundo volume de A saga dos intelectuais franceses 1944-1989. Especialista em história intelectual, autor de uma monumental História do estruturalismo, dentre outros trabalhos na área, Dosse apresenta, em O futuro em migalhas, uma visão de conjunto da vida intelectual francesa entre o estrondo de 1968 e a explosão de 1989, simbolizada na queda do Muro de Berlim.

O resultado é uma obra fascinante, em especial pela capacidade do autor de estabelecer “semelhanças de família” entre autores e textos que, embora distintos entre si, compartilham do mesmo espírito do tempo. É assim que Dosse vai descortinando as principais tendências que se sucederam no centro do espaço intelectual francês: do estruturalismo posto sob suspeita após 68, passando pelo breve interlúdio, até 1974, em que se observa a ascensão do marxismo e dos grupos políticos à esquerda do PCF (trotskistas, maoístas, libertários), pela reação antitotalitária desencadeada pela publicação de O arquipélago Goulag, de Alexander Soljenítsin (1974), pelo retorno matizado da ação e da reflexividade dos sujeitos nos anos 1980, até a defesa sem complexos de valores “ocidentais” como a democracia e/ou os direitos humanos nas décadas de 1980 e de 1990.

Mas, como sói ocorrer, a ambição não deixa de cobrar seu preço. Se a explicação convence no atacado, quer dizer, quando define a relação mais geral entre os textos e seus contextos, mais questionável é a abordagem do autor das diversas mediações entre os níveis “internos” e “externos” do processo de produção das ideias. O risco, aqui, é o de fazer dos textos mera expressão de uma época que os engloba, neles enxergando apenas aquilo que confirma o esquema histórico-intelectual pressuposto.

Não é o que pretende Dosse, cuja perspectiva almeja ultrapassar a “alternativa enganosa” entre texto e contexto, de maneira a pensar “os dois polos em conjunto” (p. 18). Nesse sentido, escreve ele, “é vão considerar uma crônica que parasse no limiar das obras, à margem de sua interpretação, que privilegiasse apenas as manifestações históricas e sociais da vida intelectual” (p. 18). Uma coisa, porém, é o que se diz que será feito, outra é o que se faz.

A história reconstituída por Dosse é conhecida. Os anos 1960 se abriram sob a égide do questionamento estruturalista à hegemonia do marxismo, alavancada a partir do pós-guerra. Jean-Paul Sartre, então o principal representante do intelectual total à francesa, do intelectual que se mete onde deve e onde não deve, vai cedendo lugar a nomes como Michel Foucault, para quem o filósofo marxista-existencialista era um grande autor do século XIX!

Mas eis que sobreveio a irrupção de 1968, pouco depois de um jornalista (Pierre Viansson-Ponté, 1968) vaticinar, no Le Monde, que a França estava entediada com a mesmice reinante. Os acontecimentos entre março e junho de 1968 embaralharam o tabuleiro intelectual e político francês. De um lado, puseram um freio na ascensão estruturalista, demonstrando que, de fato, não são as estruturas que saíram às ruas, para lembrar uma provocação da época. De outro, deram novo fôlego, ainda que a contratempo, ao marxismo engajado não apenas de Sartre, senão também de grupos de extrema-esquerda vinculados ao trotskismo, ao maoísmo ou ao autonomismo autogestionário.

O próprio Foucault, aliás, aproximou-se momentaneamente da nebulosa maoísta no pós-68. Enquanto isso, o PCF, outrora imponente, se deparava com o esgotamento da reserva de legitimidade do “Partidos dos Resistentes”, em referência ao seu papel na luta contra a ocupação nazista. Uma mudança tectônica estava em curso, mas seus desdobramentos ainda permaneciam limitados, até que ganharam vazão inaudita em 1974, com o “efeito Soljenítsin”.

É verdade que já havia algum tempo que a União Soviética não fazia mais parte do horizonte de expectativas de parcelas expressivas da esquerda intelectual e/ou política, incluindo Sartre, que se afastara do PCF (do qual era “companheiro de estrada”) por ocasião da invasão da liderança soviética na Hungria, em 1956. No mesmo ano paradigmático de 1968, além do papel tímido e vacilante do PCF nos acontecimentos de maio, a repressão pelas forças do Pacto de Varsóvia da “primavera de Praga”, na Tchecoslováquia, entornou ainda mais o caldo da desilusão.

Mas nada seria comparável, na França, à avalanche precipitada a partir de 1974. A publicação do livro de Soljenítsin serviu como ponta de lança de um novo tema que se tornaria a próxima obsessão dos intelectuais franceses, signo da virada em curso: o totalitarismo. De agora em diante, são os críticos do totalitarismo - cujo alvo era a União Soviética, é claro, mas também o PCF e, para alguns, o marxismo em geral, quando não a própria tradição revolucionária francesa, como no caso de François Furet - que tomam a frente da cena. É o momento da consagração de Raymond Aron, celebrado por ter, ainda em 1955, ou seja, em plena hegemonia comunista/sartreana, pregado no deserto contra o marxismo, o verdadeiro “ópio dos intelectuais” (Aron, 1955).

Mesmo a esquerda intelectual já distante do comunismo oficial não passaria incólume ao vendaval antitotalitário. Não são poucos os intelectuais que se distanciaram em definitivo do horizonte marxista, num momento em que o PCF realinhava suas forças em torno do “Programa Comum” com um Partido Socialista revitalizado após o congresso de Épinay, em junho de 1971. Observava-se, assim, um inédito divórcio entre a esquerda política hegemônica e a esquerda intelectual, divórcio que, como mostra François Dosse, nem mesmo a vitória de François Mitterrand (PS) nas eleições presidenciais de 1981 logrou reverter. A situação era muito diferente daquela da vitória da Frente Popular, em 1936, que contou com a adesão entusiasta dos intelectuais.

Nos anos 1980, a virada parecia consolidada. Mais do que o “totalitarismo” soviético, questionava-se agora o próprio horizonte de expectativas que dá sustentação às utopias revolucionárias, com as quais os intelectuais franceses serão acusados de cumplicidade. Em outras palavras: é toda a linhagem dos intelectuais franceses “engajados”, de Zola a Sartre, que é posta em causa, de onde a dimensão da mudança em curso, tanto mais significativa porque protagonizada por figuras muitas vezes oriundas das esquerdas, quer seja do PCF, do maoísmo ou, em menor medida, do trotskismo. Era a mutação do intelectual soixante-huitard, ora mobilizado na exorcização do acontecimento ou, ao menos, na sua domesticação.

Quando tem lugar a queda do Muro de Berlim, em 1989, com o início do fim do socialismo burocrático na União Soviética e no leste europeu, o cenário já estava, portanto, bem adaptado à nova atmosfera intelectual e política - o que não diminui, bem entendido, o impacto do acontecimento. No limite, os anos 1990 intensificam a tendência ventilada na década anterior a respeito do bloqueio das esperanças em um futuro qualitativamente distinto do presente, aspiração vista como irresponsável e como caminho para o totalitarismo. É um novo regime de historicidade que emerge, atingindo em cheio a vida intelectual francesa.

Na ausência de futuro, e com o passado se tornando peça de museu, o presente reina absoluto, um presente dilatado diante do qual não há mais alternativas totalizantes. A fixação no aqui e agora encurta o horizonte de expectativas, impossibilitando o seu descolamento do espaço de experiências, o que bloqueia a relação com a temporalidade histórica que, segundo Reinhart Koselleck (1993), caracteriza a modernidade. Não por acaso, como mostra Dosse, os anos 1980 e 1990 verão proliferar reflexões intelectuais sobre o “fim”: da modernidade, do progresso, ou mesmo da história, como no caso de Francis Fukuyama. É por isso que, se o primeiro volume de A saga dos intelectuais franceses, dedicado ao período entre 1944 e 1968, é intitulado À prova da História (Dosse, 2021), o segundo é designado O futuro em migalhas (Dosse, 2023). O contraste não poderia ser maior.

No final das contas, François Dosse nos entrega um trabalho de fôlego, entre cujos méritos está uma abordagem para a qual as ideias não nascem e se desenvolvem num espaço abstrato, envolvendo-se, antes, numa trama complexa em que respondem, cada qual à sua maneira, aos desafios impostos pela época. Dosse acerta, por exemplo, ao tratar os desdobramentos intelectuais mais imediatos de “maio de 68”. Ele se recusa a tomar o acontecimento como mera alavancagem de um processo que já estava em curso, marcado pela passagem do estruturalismo ao pós-estruturalismo. “Maio de 68” garante sobrevida ao marxismo antistalinista, mostrando que, se uma tendência de fundo estava de fato em movimento, a sua dinâmica concreta era muito mais acidentada.

A apreciação se torna menos favorável, porém, quando examinados os contornos mais precisos da periodização apresentada pelo autor, em particular no que se refere ao modo como ele encaminha o argumento, privilegiando autores que melhor se adequem à sua periodização geracional, em detrimento daqueles que nela não encontram lugar. Com efeito, Dosse toma como inevitáveis e, mais, como desejáveis as mudanças operadas a partir da segunda metade da década de 1970, inscrevendo-se na onda de valorização de perspectivas intelectuais e políticas de médio alcance, cujo contentamento com os limites das democracias ocidentais se tornava imperativo.

De fato, essa é a linhagem hegemônica, mas ela não anula por completo a emergência de um novo pensamento crítico que, ao invés de se colocar na posição de “guardião do templo”, tira consequências dos acontecimentos acima mencionados a fim de buscar novas saídas que não se circunscrevam aos ditames da democracia liberal e, no mesmo passo, que recusem o flerte com qualquer forma autoritária de socialismo. É uma perspectiva minoritária, evidentemente, mas relevante. Dosse faz referência aqui e ali a alguns dos seus expoentes, como Daniel Bensaïd ou, sobretudo, Cornelius Castoriadis. Entretanto, pouco desenvolve a respeito.

É como se, para reforçar a trajetória dominante estabelecida, Dosse precisasse subvalorizar as margens sem as quais, aliás, o centro não é o que é. Ainda assim, se nos oferece uma espécie de história “oficial” da intelectualidade francesa, o autor nem por isso nos impede de, em contraste comparativo, pensar o que seria uma história subterrânea da vida intelectual do país europeu entre as décadas de 1960 e 1990. Aqui talvez esteja a principal qualidade do livro ora resenhado: ele pode ser lido e bem aproveitado num sentido diferente ao dos argumentos do autor. Em face do oficial, o marginal. Do hegemônico, o emergente. Eis, portanto, para um lado ou para o outro, um livro indispensável.

Referências Bibliográficas

  • ARON, Raymond. (1955), L’Opium des intellectuels. Paris, Calmann-Lévy.
  • DOSSE, François. (2021), A saga dos intelectuais franceses 1944-1989. Volume I: À prova da História (1944-1968). São Paulo, Estação Liberdade.
  • KOSELLECK, Reinhart. (1993), “‘Espacio de experiencia’ y ‘Horizonte de expectativa’, dos categorías históricas”. In: Futuro pasado. Para una semántica de los tiempos históricos. Barcelona, Paidós, pp. 333-357.
  • SOLJENITSYNE, Alexandre. (1974), L’Archipel du Goulag. Paris, Éditions du Seuil.
  • VIANSSON-PONTÉ, Pierre. (15 mar. 1968), “Quand la France s’ennuie…”. Le Monde, Paris (França), p. 1.

Datas de Publicação

  •  Publicação nesta coleção
    23 Set 2024

 

  •  Data do Fascículo
    May-Aug 2024

 

80 anos do Brasil na ONU, história da diplomacia e de uma vida - Paulo Roberto de Almeida

80 anos do Brasil na ONU, história da diplomacia e de uma vida - Paulo Roberto de Almeida

Introdução de André Magnelli, do Ateliê de Humanidades:

As trajetórias profissionais de longa duração acabam se entrelaçando, em boa parte, com a história do país e do mundo. É o caso dos 50 anos de carreira diplomática de Paulo Roberto de Almeida: https://ateliedehumanidades.com/2025/01/31/80-anos-do-brasil-na-onu-a-historia-da-diplomacia-e-de-uma-vida/

Após o programa do Conversas de Ateliê sobre o cenário da política internacional, publicamos hoje as notas do diplomata para uma aula magna de Curso de Admissão à Carreira de Diplomata – CACD (10/01/2025). Como um “espectador engajado” na política externa e na diplomacia brasileira, Paulo Roberto de Almeida apresenta um enfoque pessoal dos oitenta anos de construção do multilateralismo do pós-guerra através do sistema ONU, da qual a diplomacia brasileira foi co-partícipe central, espécie de “sexto membro permanente”.

Em face ao contexto atual de fragmentação do multilateralismo, com a emergência do que alguns chamam de “segunda guerra fria”, Paulo Roberto reconstrói as características da política exterior do país, apresentando, então, o que entende ser as tendências de ruptura da tradição, baseadas, segundo ele, em “desajustes conceituais e erros estratégicos”.

Desejamos, como sempre, uma excelente leitura!

André Magnelli

Fios do Tempo, 31 de janeiro de 2025

Leia: https://ateliedehumanidades.com/2025/01/31/80-anos-do-brasil-na-onu-a-historia-da-diplomacia-e-de-uma-vida/

Quarenta anos do “momentum” Tancredo-Mitterrand - Daniel Afondo da Silva (Jornal da USP)

 Quarenta anos do “momentum” Tancredo-Mitterrand

Por Daniel Afonso da Silva, pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP

  Publicado: 30/01/2025 às 19:52

Fazia frio naquele fim de tarde-noite do dia 26 de janeiro de 1985 quando o presidente Tancredo Neves partiu de Roma para Bordéus para se encontrar com o presidente François Mitterrand no sudoeste da França. Uma garoa fina invadia a capital italiana que servia de ponto de partida da tournée de apresentação da nova República brasileira inaugurada na eleição de 15 de janeiro daquele ano. O céu francês seguia cinza e sem sol antecipando o anoitecer. Era um sábado de inverno europeu. Um dos mais rigorosos do século.

O presidente brasileiro eleito vinha de ter com sua santidade o papa João Paulo II no Vaticano. Tinha estado com o presidente Sandro Pertrini no palácio do Quirinal. Havia conversado com membros da comunidade brasileira na Itália no hall do hotel Excelsior Roma da via Vittorio Veneto, onde também recebera os jogadores Cerezo, Júnior, Dirceu, Batista e Sócrates, que atuavam no futebol italiano. Sua próxima parada seria a capital portuguesa onde o entusiasmado primeiro-ministro Mário Soares preparava um acolhimento digno das mais honrosas recepções a chefes de Estado. Mal sabia que também seria recebido com desvelo e lhaneza pelo monarca Juan Carlos da Espanha e pelo primeiro-ministro Felipe González antes de partir a Coimbra virar Doutor Honoris Causa.

O espírito da viagem era falar a todos para fazer mudar a imagem exterior do Brasil. Ir à França fazia parte desse propósito.

Nesse propósito, no dia 8 de janeiro de 1985, o embaixador francês em Brasília, Bernard Dorin, fez saber ao Élysée que o candidato Tancredo Neves, caso eleito presidente pelo Colégio Eleitoral, teria a intenção de promover uma excursão pela Europa. O secretário-geral da presidência François Mitterrand, Jean-Louis Bianco, considerou uma informação de importância e a fez chegar ao presidente.

Desde o início da gestão socialista, o “futuro do terceiro mundo” fazia parte das preocupações exteriores francesas. Jamais por piedade e sim por convicção, o presidente Mitterrand afirmaria o binômio “democracia-desenvolvimento” como núcleo de sua ação exterior vis-à-vis dos países pobres. Primeiro pela percepção da necessidade de certa igualdade para a interação. Segundo para impedir a extensão da influência soviética. Terceiro, diminuir a insurgência terrorista. E, por fim e mais importante, para ampliar a influência francesa no mundo.

Essa estratégia de solidariedade com os povos para se fazer notar e respeitar para além da tensão Leste-Oeste dava continuidade à estrutura de atuação exterior formulada pelo general De Gaulle desde o “Je vous ai compris” de 1958 e replicada por seus sucessores.

Na reunião do G7 de junho de 1981, em Ottawa, o presidente Mitterrand teria a oportunidade de apresentar as linhas gerais dessa solidariedade francesa gaullista ao encontro dos países “menos desenvolvidos” afirmando ser impossível a manutenção da “democracia sem desenvolvimento”. Mas sua formulação mais exata do problema apareceria em sua manifestação na conferência das Nações Unidas sobre países “menos desenvolvidos”, organizada em Paris em agosto de 1981, onde reconheceria que “aider les tiers-monde, c’est s’aider soi-même” [ajudar o terceiro mundo é ajudar-se].
O Brasil, certo, jamais compusera objeto de importância na estratégia exterior francesa contemporânea e a recíproca se confirmava verdadeira. Mas ambos os países nutriam afeição mútua e interação permanente.

Quando do retorno do general De Gaulle ao poder em maio de 1958, o presidente Juscelino Kubitschek (1955-1960) enviara ao novo mandatário francês uma missiva com votos de sucesso, um quadro do papel do Brasil na organização das Américas e um enfático convite para que viesse ao País. No argumento do presidente brasileiro, Brasil e França viviam um momento de renovação e esperança que reforçava os vínculos entre as duas nações fundadas em “valores comuns sobre o Ocidente”.

O herói da France libre aceitaria de bom grado o convite do presidente Kubitschek e mencionaria que um dos eixos de sua política exterior seria justamente “ajudar os países subdesenvolvidos”, entre os quais, o Brasil. Esse pilar da estratégia francesa em sua relação com o Brasil foi fragmentado e reduzido após 1964. Após a visita do general De Gaulle à América do Sul em setembro-outubro de 1964, o Brasil e toda a região voltaram a ser “lugares distantes”. A possível eleição de Tancredo Neves e a retomada da democracia eram vistas, portanto, pelo Quai d’Orsay e pelo Élysée, como a possibilidade de reaproximação. Essa concepção embasou a carta do embaixador francês no Brasil e a motivação do secretário-geral do Élysée em participá-la diretamente ao presidente Mitterrand.

Nesses termos, uma semana antes das eleições brasileiras ainda indiretas do dia 15 de janeiro de 1985, o enviado francês em Brasília creditava como certa a vitória de Tancredo Neves e sugeria aos seus superiores em Paris que iniciassem a organização de uma recepção. Pelos imperativos do protocolo do Élysée e do Quai d’Orsay seria difícil receber oficialmente. Mas isso não deveria inviabilizar uma sinalização amistosa indicando interesse em eventual encontro fosse como fosse e onde fosse. Como projeto de mensagem, ele propunha que o presidente Mitterrand dissesse ao candidato Tancredo “si le voyage que vous envisagez d’accomplir en Europe conduit à Paris, je serai très heureux de vous rencontrer à cette occasion” [se vossa viagem pela Europa lhe conduzir a Paris, ficarei muito feliz em encontrá-lo] e o presidente francês assentiu em assim sinalizar.
O último presidente brasileiro eleito recebido pelo mandatário do Élysée tinha sido Jânio Quadros em 1961. Naquela ocasião o presidente francês era o general De Gaulle e seu enviado no Brasil, André Malraux.

Das primeiras reações do general De Gaulle ao contato do presidente Juscelino Kubitschek em 1958 foi justamente enviar André Malraux ao Brasil em 1959 para averiguar a consistência da situação. Malraux causaria uma boa impressão nos mandatários brasileiros e seria um dos convidados de honra do presidente Kubitschek para a inauguração de Brasília em 1960 e diria ao presidente francês que a nova capital brasileira era “la capitale de l’espérance” [capital da esperança].

Esse entusiasmo de Malraux exerceria forte influência sobre as percepções francesas – ou ao menos do establishment francês – sobre o Brasil.

Quando da eleição de Jânio Quadros para suceder o presidente Juscelino Kubitschek, Malraux seria novamente enviado a Brasília com o objetivo de saber das intenções do novo inquilino do palácio da Alvorada. Em nota do dia 4 de novembro de 1960, ele diria ao general De Gaulle que Jânio Quadros visitaria as principais capitais do Ocidente – como também fizera Juscelino Kubitschek em 1955 – antes de assumir suas funções a 1º de fevereiro de 1961. Indicava que ele tinha afeição pelo regime de Cuba e Moscou mesmo tendo outrora recebido apoio da “direita paulista”. Malraux ainda informava o general-presidente que o presidente brasileiro eleito compreendia e aceitava o contencioso franco-argelino. E, que, o conjunto dessas impressões justificaria receber o brasileiro em Paris.

Necessitaria 24 anos para outro presidente brasileiro ser eleito e merecer atenção estratégica dos enviados franceses no Brasil.

O marechal Castello Branco e o marechal Costa e Silva seriam recebidos com honras de chefes de Estado no Élysée pelo general De Gaulle, a 22 de junho e 5 de dezembro de 1967 respectivamente, mas não como presidentes eleitos – o marechal Castello Branco inclusive já havia deixado o Palácio do Planalto. Tancredo Neves seria efetivamente o primeiro depois de Jânio Quadros.

Imbuído desse significado, o enviado francês em Brasília em 1985, certo da derrota do candidato Paulo Maluf, passou a insistir para que a França formalizasse um convite ao candidato Tancredo Neves.

No dia 14 de janeiro de 1985, véspera da votação no Colégio Eleitoral, o secretário-geral do Élysée lembrou ao presidente Mitterrand que o resultado das eleições brasileiras estava para sair e pediu permissão para, enfim, enviar a mensagem-convite ao potencial vencedor Tancredo Neves.
O presidente francês devolveria a nota ao secretário com um alusivo comentário feito a mão e em letra escorreita: “Oui, je l’ai déjà dis… même vivement dans ce sens” [sim: eu já disse que sim… e disse vivamente].

Do lado brasileiro, a votação do dia 15 de janeiro de 1985 confirmaria a previsão do enviado francês em Brasília: Tancredo Neves foi eleito presidente na “última eleição indireta do Brasil”. A agonia da derrota das Diretas Já! dava lugar ao ânimo diante do avanço da redemocratização brasileira.

Em muitos aspectos, esse 15 de janeiro de 1985 teria para os brasileiros o mesmo efeito que o 10 de maio de 1981 tivera para os franceses. Fora um momento de graça. Um êxtase tomou conta da população. Se milhares de pessoas invadiram a praça da Bastilha quando da eleição do presidente Mitterrand, as principais avenidas das principais capitais brasileiras ficariam abarrotadas de pessoas com símbolos pátrios e cantando o Hino Nacional após a notícia da eleição de Tancredo Neves presidente do Brasil.

Ainda naquele dia 15 de janeiro de 1985, o presidente eleito brasileiro receberia os cumprimentos do presidente francês e teria em mãos a mensagem-convite, desde muito formulada a várias mãos entre a Avenida das Nações em Brasília e o Quai d’Orsay-rua Faubourg-Saint-Honoré em Paris.

A partir de então tudo ganharia em aceleração.

Uma viagem diplomático-presidencial se prepara. E a viagem do presidente Tancredo Neves foi preparada em detalhes à exaustão.

Todos os envolvidos sabiam da importância histórica daquela tournée. E o presidente brasileiro era, por certo, de todos, o maior interessado. E não demorou a fazer saber ao responsável francês em Brasília da sua intenção em, sim, aceitar o “convite” do presidente François Mitterrand.

Nesse sentido, em menos 72 horas das eleições brasileiras, o conselheiro diplomático do Quai d’Orsay, Jean Musitelli, e o secretário geral do Élysée, Jean-Louis Bianco, estavam mobilizados na preparação da recepção do presidente brasileiro. O contato em Brasília, o embaixador Bernard Dorin, tinha acesso aos conselheiros diplomáticos do presidente Tancredo Neves e estava a par da formatação de todo o roteiro da viagem. Sabia que tudo teria início na Santa Sé, no Vaticano, na Itália, e que Lisboa era a próxima parada europeia confirmada.

Difícil saber de quem veio a ideia de fazer o encontro Tancredo-Mitterrand no dia 26 de janeiro, um sábado. Certo foi que no dia 19 de janeiro de 1985, o presidente Mitterrand estava ciente da visita do presidente brasileiro no sábado, 26.

O horário e o local estavam em aberto. Foi quanto então o presidente francês propôs ofertar um jantar privado ao presidente brasileiro. Sendo assim, o brasileiro poderia chegar no fim de tarde, início da noite. E como local se propôs sua casa de campo em Latche.

Na terça-feira, 22 de janeiro de 1985, o enviado francês em Brasília informava ao Quai d’Orsayem Paris que “M. Tancredo Neves est très sensible à votre invitation qu’il accepte” [o Senhor Tancredo Neves aceitou o vosso convite e segue muito sensibilizado pela oportunidade].

Difícil saber se a essa altura o presidente brasileiro estava totalmente envolvido nos preparativos da viagem. Ele parecia, em verdade, ainda imerso no ambiente político interno brasileiro do 15 de janeiro. Seu tempo parecia contemplar somente reuniões e entrevistas com seus correligionários e jornalistas. De modo que o embaixador Paulo de Tarso Flecha de Lima ou o jornalista Mauro Salles foi quem confirmou à Embaixada da França em Brasília que a presença do presente Tancredo no jantar privado ofertado pelo presidente Mitterrand no dia 26 de janeiro. E logo se enviou o roteiro: sair-se-ia de Roma às 16h30 sentido Latche com previsão de chegar 18h25-18h35 em Biarritz e 19h em Latche saindo às 21h30 e apanhando o trem de volta para Roma às 22h. 2h30 de encontro.

Uma vez em Roma, a delegação brasileira notificou ao Quai d’Orsay que comunicou ao Élysée que o presidente brasileiro seria acompanhado do embaixador Paulo de Tarso, do embaixador Rubens Ricupero e do jornalista Mauro Salles. Era desnecessário informar da presença dona Risoleta Neves que faria par com dona Danielle Mitterrand.

O embaixador Antonio Correa do Lago e o então senador Fernando Henrique Cardoso prometeram vir a Biarritz encontrar a delegação brasileira. Mas não era certo que seguiriam até Latche.

Data do dia 25 de janeiro de 1985 a mensagem de agradecimento do presidente Tancredo Neves aos votos de sucesso lançados pelo presidente francês quando da eleição no Colégio Eleitoral. Nessa mensagem, o presidente brasileiro sopesaria todas as palavras de modo a valorizar o encontro iminente entre eles dois ponderando:

“Eu desejo contribuir para o aperfeiçoamento constante dos laços que nos unem. Nessa tarefa, o diálogo pessoal, que espero possamos ter em breve, há, por certo, de constituir-se em elemento importante para o maior entendimento entre nossos povos e para o crescente dinamismo da cooperação entre nossos países”.

Quando esses dois homens de Estado trocaram os primeiros olhares naquela tarde fria do 26 de janeiro de 1985, na rústica, mas aconchegante casa de campo da família Mitterrand, que fazia lembrar do ambiente modesto, mas moderno da São João Del Rei dos Neves, ambos sabiam exatamente quem eram, o que queriam e o sentido histórico daquele momento: o momentumTancredo-Mitterrand.

Eles eram mais ou menos da mesma idade, da mesma geração e dispunham de experiência e trajetória política similar – mesmo em seus dramas – em seus países. Nesse sentido, cada qual ao seu modo entendia a política como um métier. Um palco de gladiadores, que não admite amadores. Apenas profissionais. Como eles dois. Daí a conexão instantânea.

Mais importante que a conversa foi, por claro, a presença.

Os problemas brasileiros e sul-americanos eram conhecidos. Mesmo assim o presidente francês insistiu em saber das impressões do brasileiro sobre as ditaduras na região. Sobre a Argentina; sobre o Chile. As limitações francesas eram também sabidas. Mesmo assim o presidente brasileiro realçou as dificuldades econômico-financeiras do Brasil. Foi um encontro simbólico, bonito e convivial.

Após o jantar, os presidentes se separariam. O brasileiro seguiria a sua tournée que tinha os Estados Unidos da América como escala principal. O francês passaria a repensar a posição francesa na América do Sul.

A França estava relativamente ausente da região desde o fim dos anos de 1960. Os projetos estruturais de longo prazo estavam, por certo, mantidos. Mas a influência e a presença francesa assistiam farto declínio – especialmente político – havia tempos. E a solidariedade do presidente francês aos ingleses quando do incidente nas Malvinas em 1982 contribuiria ainda mais para a rejeição sul-americana aos desígnios da França.

Desde o início da presidência socialista em 1981, a relação francesa com o dito “terceiro mundo” dispunha de três entradas. México para as Américas, Argel para a África e Deli para a Ásia. Essa cartografia diplomática fora arquitetada pelo chanceler Claude Cheysson, responsável pelo Quai d’Orsay de 1981 a 1984. Quando da troca de Cheysson por Roland Dumas, em dezembro de 1984, o lado americano dessa projeção fora definitivamente retirado devido o reconhecimento da força da influência dos Estados Unidos sobre o México.

Mesmo com a forte implicação francesa para o fim dos conflitos na Nicarágua e em El Salvador, assim como seu empenho como líder do Clube de Paris na rediscussão do endividamento exterior dos países da América Central e do Sul, seus interesses “terceiro-mundistas” estavam distantes dessa região.

Mas o momentum Tancredo-Mitterrand mudaria esse quadro.

Nos dias que sucederam esse encontro, o Quai d’Orsay e o Élysée mobilizariam esforços para ir à posse do presidente Tancredo Neves no dia 15 de março de 1985 e organizar uma visita de Estado ainda naquele ano. Com esse propósito, no dia 1º de fevereiro de 1985, o Quai d’Orsayfez saber à Embaixada Brasileira em Paris e ao Itamaraty em Brasília que o chanceler Roland Dumas conduziria em pessoa a delegação francesa para a posse do presidente Tancredo Neves no dia 15 de maço de 1985.

Como frustração, agonia e morte do presidente Tancredo Neves causaria forte impressão no presidente francês.

Do dia 14 de março ao dia 21 de abril de 1985, o presidente Mitterrand acompanhou com interesse toda a evolução do quadro de saúde de seu colega brasileiro. Semanas antes da morte de Tancredo Neves, o presidente José Sarney diria ao líder francês que “em nome do presidente Tancredo Neves, recebi e muito agradeço os amáveis votos de pronto restabelecimento que v. excelência a ele dirigiu”. E continuaria afirmando que “o apoio de v. excelência, em momento tão singular, constitui prova eloquente do sentimento de amizade que une nossos povos e servirá de estímulo e inspiração para o constante fortalecimento das relações entre nossos países”.

Quando da morte do presidente brasileiro, a primeira manifestação de condolências viria de Jacques Chirac. Em mensagem endereçada ao responsável brasileiro na França, o prefeito de Paris afirmaria que “c’est avec une réelle émotion que j’apprends le déces du Président Tancredo Neves” [é com real emoção que recebo a notícia da morte do presidente Tancredo Neves] E consideraria que “pour les hommes et les peuples attaches aux príncipes de la démocratie et de la liberté, l’élection du Président Neves a constitue un symbole et un espoir” [para homens e povos afiançados aos princípios da democracia e da liberdade, a eleição do presidente Neves constituiu um símbolo e uma esperança]. E ainda advertiria, “je ne doute cependant pas que la nation brésilienne savera conserver les acquis de cette présidence trop ephemère” [de toda sorte, não tenho dúvidas que a nação brasileira saberá conservar as conquistas dessa presidência tão efêmera].

Essa noção de “presidência efêmera” traduzia o sentimento do conjunto da classe política francesa que assimilou rapidamente o significado do presidente Tancredo Neves.

Mas o momento era de luto e o presidente Mitterrand enviou, no dia 22 de abril de 1985, um longo telegrama a dona Risoleta Neves onde afirmava:

J’avais eu le privilège de connaitre et d’apprecier votre mari, qui avait bien voulu me rendre visite a Latche peu après son élection à la République du Brésil. Sa disparition en ce moment crucial de l’histoire du Brésil est une perte immense pour votre pays et pour son peuple qui tout entier faisait confiance a Tancredo et a sés exceptionneles qualités humaines et professionnelles. Du fond du coeur, je compratis, madame, a votre douleur [tive o privilégio de conhecer a apreciar o vosso marido, que visitou-me em Latche logo após a sua eleição à República do Brasil. O seu falecimento nesse momento tão crucial para a históira do Brasil é uma perda imensa para o vosso país e para seu povo que tinha confiança em Tancredo e em suas qualidades humanas e profissionais excepcionais. Do fundo de meu coração, portanto, dona Risoleta, participo de vossa dor].

Evidenciando-se, assim, que o encontro em Latche realmente marcou. Tanto que a resposta de dona Risoleta Neves ao presidente Mitterrand fora também ambientada em Latche. “Meu marido guardava a melhor lembrança do encontro que manteve com vossa excelência em Latche e esperava poder revê-lo em breve no Brasil. Infelizmente, a vontade de deus assim não o quis”.

Nesses termos, para os funerais do colega brasileiro, o presidente francês faria questão de se fazer representar pela primeira-dama Danielle Mitterrand. Na Embaixada Brasileira em Paris seria aberto um livro de condolências que teria a assinatura de mais de 250 personalidades francesas e mundiais de passagem como o chanceler Dante Caputo da Argentina.

No dia 29 de abril de 1985, uma missa de sétimo dia seria rezada na Igreja Saint Germain l’Auxerrois pelo monsenhor Daniel Pezeril e pelos padres brasileiros Astor Salgado e Napoleão dos Anjos Fernandes. 450 pessoas se fariam presentes. Entre eles, o escritor Jorge Amado e a condessa de Paris, Isabel de Orléans e Bragança.

Essas circunstâncias trágicas e dramáticas não demoveram o Quai d’Orsay e o Élysée da visita do presidente Mitterrand ao Brasil que teria início no dia 14 de outubro de 1985. A delegação francesa foi composta pelos principais colaboradores do presidente francês. Roland Dumas – ministro do exterior. Edith Cresson – ministra da indústria e comércio. Jack Lang – ministro da cultura. Jean-Louis Bianco – secretário geral do Élysée. Jacques Attali – conselheiro especial da Presidência. E outras personalidades de importância, como o célebre Claude Lévi-Strauss, seriam incluídas.

O roteiro envolveu cinco dias de compromissos em Brasília, no Rio de Janeiro, em São Paulo, em São João del Rey e em Recife-Olinda. Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo como lugares recorrentes. São João del Rey como deferência à memória do presidente Tancredo Neves. Recife-Olinda como objeto de curiosidade cultural e intelectual.

Essa visita do presidente francês ao Brasil foi o primeiro sinal de um país do “norte” à “Nova República” saída do 15 de janeiro de 1985.

Mesmo que impotente aos problemas econômicos e financeiros que assolavam o País, esse gesto permitiria a retomada da presença francesa no País e na região.

Desde outubro de 1985, portanto, a relação franco-brasileira voltaria a fluir.

O momento Tancredo-Mitterrand envolveu, portanto, o encontro de 26 de janeiro de 1985 em Latche, o envio do chanceler Roland Dumas à cerimônia de posse do dia 15 de março, a presença da primeira-dama francesa nos funerais de Tancredo Neves e a visita de Estado do presidente Mitterrand ao Brasil em outubro do mesmo ano.

As sinalizações de retorno à democracia no Brasil e a boa impressão causada pela visita em Latche conduziram o presidente francês a simplesmente retomar os princípios estruturais da política externa francesa com relação ao Brasil e à América do Sul. Instaurados pelo general De Gaulle, esses princípios determinavam à atuação exterior francesa o imperativo de independência sem isolamento e propunham o permanente recolocar da França no cenário mundial para além da tensão Leste-Oeste.

Desde janeiro de 1985, portanto, cenários da realidade brasileira eram mais intensamente auscultados no Élysée e no Quai d’Orsay. O retorno à democracia com a superação do fardo dos militares era observado e calculado desde Paris. Conselheiros como Régis Debray e enviados nas Américas como Alain Rouquié e o próprio Bernard Dorin eram absolutamente experimentados do fato latino-americano. Mas o imponderável da doença do presidente Tancredo Neves certamente os fez refazer suas fichas. O retorno dos militares era absolutamente plausível em seus cálculos e temores. Mesmo que a força das Diretas Já e sua significação democrática ainda se fizesse sentir.

Com o adeus ao presidente Tancredo Neves, o desconhecido vice-presidente José Sarney sairia de relativa sombra para assumir os rumos do País. Ele havia participado da situação no regime anterior. Por isso era rejeitado pela opinião pública. Tinha pouco acesso a grupos econômicos apoiadores da candidatura Tancredo Neves. Desconhecia a maior parte dos ministros escolhidos e a razão de suas indicações pelo presidente eleito a 15 de janeiro de 1985. Sabia pouco do programa de governo. Ele havia, verdadeiramente, ingressado na chapa para ser um vice-presidente fraco diante de um presidente forte. Mas os destinos da providência modificaram os planos e a sua legitimação no poder custaria esforços diários. O trunfo de maior importância era não ser deposto por militares ou populares. Os demais sucessos viriam como decorrência.

A ação exterior brasileira desse momento da transição ficou a cargo do Itamaraty e do chanceler Olavo Egydio Setúbal.

Empresário e banqueiro com passagem política pela prefeitura de São Paulo, o chanceler Setúbal, como os demais ministros, fora indicação do presidente Tancredo Neves e tinha por incumbência continuar a renovação da feição exterior brasileira iniciada pelo próprio presidente Tancredo Neves em sua tournée de janeiro-fevereiro de 1985.

No referente à França, ele manteria intenso contato com o chanceler Dumas. Sua extensa troca de correspondências seria intensificada após a morte do presidente Tancredo Neves. Pois do 15 de março ao 21 de abril de 1985, as relações exteriores brasileiras passaram por um momento de relativa suspensão. Os interesses nacionais seguiram irmanados no Hospital de Base de Brasília e depois no Hospital das Clínicas em São Paulo.

No dia 20 de maio de 1985, o chanceler brasileiro agradeceria ao chanceler francês pelas palavras de pêsames pela morte do presidente Tancredo Neves e reafirmaria o empenho do presidente José Sarney no estreitamento da relação entre os países, Brasil e França. Daí em diante, o seu diálogo seria conduzido pela preparação da visita de Estado do presidente Mitterrand ao Brasil que ocorreria em outubro daquele ano de 1985.

Malgrado as incertezas brasileiras, o presidente Mitterrand mantivera sua visita de Estado acordada com o presidente Tancredo Neves em Latche. Mas o encontro estratégico dos mais importantes e esperados ocorreria entre os chanceleres Setúbal e Dumas.

Havia semanas que esse encontro era preparado pelo Quai d’Orsay e pelo Itamaraty. No dia 8 de outubro imediatamente anterior se confirmou o local e horário do encontro deles. Seria no gabinete do chanceler brasileiro, às 17h40. O núcleo da discussão seria o projeto Brasil-França de autoria brasileira. Esse projeto havia sido despachado mês antes às autoridades francesas desde o gabinete do chanceler Setúbal. O projeto Brasil-França envolvia dois eixos de ação. O primeiro consistia na consolidação dos programas de intercâmbio franco-brasileiros existentes. O outro sugeria a promoção de um conjunto de eventos para realçar a reciprocidade e o reconhecimento mútuo dos dois países. Esses eventos incorporariam atividades e discussões no âmbito de cultura, educação, esporte, cooperação científica e industrial em níveis nacional, estaduais e municipais tendo por meta a) fazer convergir os elementos de união franco-brasileira, b) renovar o conhecimento das potencialidades atuais dos países e c) refletir em conjunto sobre os grandes problemas do mundo.

Os franceses se mostraram muitíssimo reticentes sobre essas atividades. No encontro do dia 14 de outubro elas foram tratadas marginalmente. Em sua manifestação, o chanceler francês as considerou interessantes enquanto iniciativa, mas apresentou a necessidade de maior atenção por trocas bilaterais no plano da biomedicina e da biotecnologia. Segundo ele, o interesse francês rumo ao Brasil naquele momento estava mais inclinado à cooperação na formação de pessoas e produção de produtos em áreas imunobiológicas. Entretanto, sob motivação do presidente Mitterrand, o projeto Brasil-França seria transformado em amplo programa de trocas culturais executado entre 1986 e 1989. E assim se daria o tímido recomeço das relações entre os dois países. Tudo em razão do momentum Tancredo-Mitterrand, daquele janeiro de 1985, que, agora, completa quarenta anos.

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