Agonia e morte do Mercosul?
Paulo Roberto de AlmeidaO Brasil sempre foi um dos países mais protecionistas do mundo e, por conseguinte, das Américas também, sendo uma ilusão aquela história de que os EUA se industrializaram precocemente por terem adotado tarifas protetoras desde o início do século XIX, ao passo que o Brasil se deixava supostamente levar por teorias livre-cambistas e de abertura econômica. Isso nunca foi verdade, e o Brasil, junto com Argentina aliás, sempre praticou diversas formas de protecionismo comercial, não apenas tarifas aduaneiras, mas também restrições para-tarifárias, lei do similar nacional, monopólios estatais e reservas de mercado para empresas nacionais, etc.
Não obstante, a partir de meados do século XX, os diferentes governos apoiaram projetos de integração econômica entre os países da América Latina, já tendo em vista a dimensão e a sofisticação de sua estrutura produtiva interna e sua capacidade competitiva com os vizinhos, especialmente os do Cone Sul, com os quais sempre foi mais intenso o comércio regional.
Esta é razão de o Brasil ter apoiado e incentivado os dois acordos de liberalização comercial consolidados nos dois tratados de Montevidéu: o de 1960, criando a Alalc, a Associação Latino-Americana de Livre Comércio, e o de 1980, que substituiu a Alalc pela Aladi, a Associação Latino-Americana de Integração, baseado num modelo mais flexível, de preferências tarifárias de modo parcial e de escopo limitado e um número menos de países. Na verdade, esses acordos da Alalc e da Aladi sempre serviram bem mais às multinacionais estrangeiras instaladas nos grandes países da região do que às empresas nacionais estrito senso.
Mas diferente foi a história do Mercosul, no espírito e na forma, nos objetivos e no formato institucional.
Iniciado em 1998, por um Acordo bilateral entre o Brasil e a Argentina, que já previa o projeto de um mercado comum, o Mercosul, no espaço de dez anos, e era uma tentativa de superar a integração superficial dos esquemas da Alalc e da Aladi, por uma integração mais profunda, ou seja, já prevendo o formato do mercado comum. A metodologia e o ritmo desse processo foram ainda acelerados pelos dois países em 1990, reduzindo o prazo à metade e acelerando a liberalização comercial, tornando-a automática, e não mais dependente da assinatura de protocolos setoriais como estavam sendo feitos desde meados dos anos 1980. Foi esse formato, derivado da Ata de Buenos Aires que se transformou no Tratado de Assunção, em 1991, quando Paraguai e Uruguai também fizeram questão de participar do projeto de mercado comum entre o Brasil e a Argentina.
Quando ocorreu a proposta americana do projeto de Área de Livre Comércio da América Latina, o Mercosul já estava adiantado na implementação da sua união aduaneira, com a negociação de uma Tarifa Externa Comum, formato que não estava previsto no projeto americano da ALCA. O Mercosul também já tinha decidido que negociaria conjuntamente com qualquer parceiro externo, seja acordos bilaterais com países específicos, seja acordos mais amplos com blocos já constituídos – como a União Europeia – ou em implementação, o que era o caso da ALCA justamente. É preciso deixar claro que zonas de livre comércio não são excludentes ou exclusivas, podendo ser concluídas com quaisquer tipos de países, em número praticamente infinito, ao passo que uniões aduaneiras são, por definição, processos mais restritos, que exigem concordância dos membros em diversos aspectos de suas políticas macroeconômicas e setoriais (comercial, industrial, tributária, cambial, etc.).
Tudo isso era feito e negociado não apenas entre burocratas de governo, economistas e diplomatas, mas com base em intensas consultas com representantes da comunidade empresarial e das associações de trabalhadores, com vistas a obter o acordo e o envolvimento e a participação ativa da sociedade civil nesses importantes processos negociadores, uma vez que eles implicam questões relevantes da estratégia nacional de inserção econômica internacional e devem estender-se por um longo período de tempo, praticamente por mais de um mandato eletivo (presidencial e congressual). A sociedade e seus representantes devem, pois, ter acesso aos processos negociadores em âmbito bilateral ou no caso dos acordos mais amplos, como era o caso do processo hemisférico (que já está encerrado) e do acordo de associação com a União Europeia, que tardou vinte anos para ser concluído (e ainda não se sabe quando poderá entrar em vigor, em função das preocupações europeias com a postura do governo Bolsonaro em matéria de meio ambiente).
Como o Brasil sempre foi um país enfaticamente protecionista, com mobilização intensa de seus industriais e demais agentes produtivos na proteção do mercado interno e na defesa contra a concorrência externa, é evidente que o país sempre exibiu enorme relutância na negociação de projetos mais ambiciosos de abertura econômica e de liberalização comercial, o que significa, também, que nossa participação nos grandes fluxos de comércio internacional de produtos com maior elasticidade-renda era bastante limitada, sendo ainda mais reduzida nos intercâmbios de intangíveis (serviços). A legislação sobre investimentos estrangeiros também sempre apresentou limitações em função de monopólios estatais, reservas de mercado aos nacionais e limitações das compras governamentais a ofertantes instalados no país. O Mercosul expressa bastante esse protecionismo entranhado, e o governo só pode limitar-se às concessões que o empresariado esteja disposto a fazer, em função de sua competitividade externa, regional ou internacional.
Os descompassos diplomáticos atuais do Brasil em suas relações com a Argentina, dificultam enormemente a busca de uma solução aos problemas atuais do bloco.
Aparentemente, o presidente argentino Javier Milei não vê nenhum problema em sacrificar o patrioônio diplomático e econômico do Mercosul pela ilusão de um acordo de livre comércio com os EUA de Donald Trump, o presidente mais protecionista que já existiu na história americana.
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