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domingo, 12 de janeiro de 2025

O Brasil não é mais neutro no grande jogo da geopolítica mundial - Paulo Roberto de Almeida

O Brasil não é mais neutro no grande jogo da geopolítica mundial

Paulo Roberto de Almeida

        Durante a maior parte da nossa existência enquanto Estado nacional independente, os dirigentes políticos, eventualmente estadistas de grande tirocínio e visão do mundo, os diplomatas responsáveis pelas nossas relações exteriores, os chefes militares encarregados da defesa do território e da soberania nacional, os principais membros das elites dominantes e dirigentes, essa comunidade algo difusa que representa o Brasil no mundo e que representa o Estado e a nação para si própria, frente aos súditos do Império e aos cidadãos da República, tentou ser coerente vis-à-vis os grandes interesses nacionais de desenvolvimento econômico e social, de estabilidade politica, de funcionamento das instituições do Estado, de preservação de um regime de liberdades — chamemo-lo de democracia, com todas as imperfeições dessa que temos — e tentou, na frente externa, ser basicamente neutra e amplamente autônoma, no plano decisório nacional, em face das disputas externas entre grandes potências, vis-à-vis as contradições do cenário internacional, no qual momentos de conflitos parciais ou globais interromperam períodos de relativa estabilidade, paz e segurança, num mundo sempre confrontado com divergências ou conflitos entre atores poderosos, belicamente capazes, o que nunca foi o nosso caso no terreno da necessária preparação militar (inclusive porque sempre tivemos um ambiente externo relativamente pacífico).

        Nas poucas vezes nas quais tivemos desafios significativos na defesa da soberania e da dignidade nacionais empreendemos com certo sacrifício dos meios disponíveis um esforço correspondente à magnitude dos perigos revelados: foram talvez apenas em número de três esses desafios, um no plno regional, no século XIX, e dois na primeira metade do século XX, no plano global. A guerra da Tríplice Aliança, contra o ditador do Paraguai que violou nossa soberania e invadiu nosso território, nos custou quase cinco longos anos de um esforço hercúleo no terreno puramente militar e a grandes despesas para a nação no terreno econômico, com um final bem sucedido nos anos e décadas seguintes, graças à capacidade da diplomacia imperial em lidar com os resultados do conflito numa conjuntura de ascensão de um aparente competidor na esfera regional do Cone Sul, uma problemática também encaminhada de modo favorável pelo grande diplomata que foi o Barão do Rio Branco.

        No século XX, os desafios não se exerceram diretamente sobre o território nacional, mas atingiram nossa soberania e dignidade nos transportes internacionais e até no funcionamento de nossas instituições e interesses nacionais. O esforço dispendido na Grande Guerra não representou um custo exagerado para os cofres da nação, mas as lições aprendidas e as doutrinas formuladas em termos de protagonismo diplomático internacional foram significativas, em grande medida graças ao tirocínio de um jurista, Rui Barbosa, aliás desde 1907, concebendo posturas que depois foram incorporadas ao eixo central do multilateralismo contemporâneo, como é a defesa intransigente do princípio da igualdade soberana dos Estados. Sua lição exemplar, feita em 1916, sobre os “deveres dos neutros”, um dos componentes do Direito Internacional, também contribuiu para o fortalecimento do patrimônio jurídico de nossa diplomacia, e que também serviu de base política para o excepcional trabalhos de construção de uma estratégia de defesa dos interesses nacionais por Oswaldo Aranha, quando novos desafios vindos de potências militaristas e expansionistas se abateram sobre o país nos anos 1930-40.

        O Brasil esteve presente na criação da nova ordem mundial do segundo pós-guerra, defendendo aqueles princípios quando a ocasião se apresentou, em San Francisco, por exemplo, protestando contra o privilégio abusivo concedido aos “mais iguais entre os iguais”, os vencedores do maior conflito global da história, na preservação elusiva da paz e da segurança internacionais. Na Guerra Fria que se seguiu entre as duas maiores potências mundiais continuamos a ser fiéis aos valores e princípios que fundamentam a ação interna e externa do Estado nacional, mas no plano diplomático nos mantivemos basicamente neutros e autônomos em face da grande disputa estratégica mantida entre os dois super poderes nucleares. A diplomacia nacional continuou a ser guiada pelo interesse maior do desenvolvimento econômico e social do país, em consonância com escolhas próprias no tocante às ferramentas para alcançar a prosperidade da nação. Assim o proclamamos ao mundo, cada vez que, desde 1946, abríamos os debates na Assembleia Geral da ONU, paralelamente à discussão dos grandes temas da agenda mundial a cada momento.

        Continuamos a assim proceder durante a maior parte do restante do século XX e até o início do presente século, o que aliás granjeou para a nossa diplomacia uma aura de prestígio e de respeitabilidade, sobretudo no plano regional, que muito fez para conquistar credibilidade e confiança nas relações mantidas com todos os parceiros da comunidade internacional, resultando em ganhos econômicos consideráveis, tendo em vista o equilíbrio e a independência de nossas posições no plano internacional. A partir do início do presente século, o primeiro governo lulopetista introduziu novos elementos de política externa que não figuravam entre os fundamentos de nossa doutrina diplomática, quais sejam, considerações partidárias, de natureza ideológica, em especial quanto aos parceiros preferenciais com os quais o Brasil deveria manter “parcerias estratégicas”. Insinuou-se então uma nítida escolha por alianças políticas e diplomáticas supostamente fora do eixo global das “grandes potências hegemônicas”, tendentes a uma agregação de esforços no âmbito de um alegado Sul Global, com o objetivo de mudar as “relações de força no mundo, favorecendo potências emergentes e os países em desenvolvimento do Sul. O primeiro exemplo dessa postura foi a conformação do IBAS (com Índia e África do Sul), no próprio ano de 2003, logo adiante seguido pela criação, em 2006 (em nível ministerial) e em 2009 (em nível de cúpula), do BRIC, o primeiro foro, com Rússia, Índia e China, inspirado por uma sugestão não propriamente interna, de natureza diplomática, mas por uma ideia externa à diplomacia dos quatro primeiros engajados, qual seja, uma plataforma econômica para investimentos de cunho financeiro a partir de fundos institucionais.

        Essa segunda instância encontrou bom acolhimento midiático e significativo sucesso na esfera internacional e foi logo ampliada, em 2011, com a incorporação da África do Sul, por injunção da China, de longe o maior e mais importante membro do novo foro. Ela passou a fazer parte, mais até do que o IBAS, do "patrimônio diplomático" dos governos lulopetistas. Por ocasião de uma interrupção de alguns anos, entre 2016 e 2022,  no ciclo dos governos lulopetistas, ocorreu certa descontinuidade de algumas iniciativas do lulopetismo diplomático nos planos regional (Unasul) e plurilateral (reuniões dos chefes de Estado da América Latina e seus contrapartes africanos e do mundo árabe, por exemplo), as reuniões anuais do grupo Brics se mantiveram regularmente nos anos intermediários, e mesmo durante os quatro anos mais bizarros jamais enfrentados pela diplomacia nacional, quando princípios e valores da diplomacia tradicional foram afastados em favor de um antiglobalismo demencial e de um antimultilateralismo irracional no plano da principal metodologia operativa no campo das relações internacionais. 

        Já no terceiro governo do lulopetismo tinha ocorrido uma nítida postura em desacordo com a inquestionável adesão da diplomacia brasileira ao princípio da intangibilidade das fronteiras estatais oficiais, de estrito respeito à Carta da ONU e às mais elementares regras do Direito Internacional. Quando da invasão e anexação ilegais da península ucraniana da Crimeia pela Rússia de Putin, o governo de Dilma Rousseff permaneceu rigorosamente em silêncio, chegando mesmo a chefe de Estado a proclamar que o assunto era "uma questão interna da Ucrânia". Apenas para registro da consistência histórica da doutrina jurídico-diplomática do Brasil, nem o Estado Novo ousou inverter a posição tradicional de não reconhecer usurpação de territórios estatais pela força, sobretudo com países com os quais mantínhamos relações diplomáticas; foi assim com a Polônia, invadida militarmente em 1939 pela Alemanha nazista e pela União Soviética, e com os três países bálticos, incorporados à força por Stalin, atos unilaterais de agressão que nunca reconhecemos.

        A dissociação mais evidente da diplomacia brasileira, e do Estado brasileiro, com relação a princípios básicos das relações internacionais, aliás constitucionalizados, ocorreu a partir da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia em fevereiro de 2022, quando, a despeito de aderir, formalmente, a uma resolução da Assembleia Geral – em vista da paralisia, por veto da Rússia, do CSNU – condenando a Rússia pela invasão, claramente violadora dos primeiros artigos da Carta da ONU, o governo de Bolsonaro, seguido de forma ainda mais enfática pelo de Lula, não adotou qualquer postura mais resolutiva, deixando de se referir de forma nítida, em sua declaração de voto, ao agressor unilateral, apenas conclamando de forma genérica à “solução pacífica da controvérsia entre as partes”, como se ambas fossem equivalentes. Não apenas isso: o governo Bolsonaro, por razões basicamente eleitoreiras, continou e até incrementou as importações brasileiras de fertilizantes e de combustíveis russos, beneficiando objetivamente a potência agressora, depois do próprio chefe de Estado ter proclamado, em visita bilateral uma semana antes da invasão, sua “solidariedade à Rússia”. Permanecemos indiferentes ao artigo da Carta da ONU que conclama todos os Estados membros a prestar assistência à parte ilegalmente atacada, como o fizeram quase todos os países ocidentais, sendo que os principais passaram a suprir de imediato meios de defesa, em conformidade com o espírito e a letra da Carta.

        O governo Lula recrudesceu no apoio deliberado, aliás voluntário, à guerra de agressão da Rússia, parceiro original no Brics, declarando, ainda antes das eleições, que a Ucrânia era igualmente responsável pela guerra, o que obviamente chocou a totalidade dos paises membros do G7, quando o presidente compareceu, a convite, na reunião do grupo em Hiroshima, em 2023. As importações da Rússia cresceram mais do que exponencialmente sob o presente Governo Lula, que chegou inclusive a vetar a exportação de material humanitário brasileiro para a Ucrânia, mesmo com o assentimento da diplomacia e das FFAA. Lula chegou inclusive a contestar a adesão do Brasil ao TPI, que pediu a detenção de Putin por crimes contra a humanidade, assim como tentou subtrair o Brasil das obrigações decorrentes do Estatuto de Roma, na tentativa de fazer com que Putin comparecesse à cúpula do G20, realizada no Rio de Janeiro em novembro de 2024.

        De modo muito claro, e não apenas com relação à guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, o governo Lula abandonou completamente a postura da diplomacia profissional e do próprio Brasil, de respeito ao Direito Internacional e de observância da Carta da ONU, ao ter abandonado a neutralidade e a imparcialidade em face de conflitos que colocam justamente em cheque os princípios consagrados nas cláusulas constitucionais pelas quais se rege o país em suas relações internacionais. Em mais de uma ocasião, sua diplomacia presidencial personalista confirmou sua adesão ao projeto russo-chinês de uma “nova ordem global multilateral”, jamais definida ou explicitada de forma clara pelos seus proponentes, e sem que o tema tenha sido exaustiva e expressamente debatido em nivel de governo, com o Parlamento ou com a sociedade de uma forma geral. 

            Ao se posicionar verbalmente do lado da China e da Rússia numa alegada confrontação com a “ordem ocidental” identificada com a dominação ocidental sobre o resto do mundo, em especial um diáfano Sul Global, a postura diplomática de Lula não confronta exatamente a ordem internacional, apenas por desejar uma "nova ordem global multipolar", mas mais precisamente por escolher o seu campo e se posicionar do lado dos países que estão adotando uma postura agressiva e confrontacionista, aumentando as tensões que podem ameaçar ainda mais a paz e a segurança internacionais. A diplomacia presidencialista personalista aderiu a um dos lados da contenda potencial, rompendo, portanto, com a postura histórica e tradicional da diplomacia brasileira de absoluta neutralidade nos conflitos de natureza geopolítica, envolvendo interesses e objetivos nacionais de grandes potências que não são aqueles normalmente perseguidos pelo Brasil, aspirando a um ambiente de cooperação propício ao desenvolvimento do país.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 12 de janeiro de 2025


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