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sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

As relações internacionais do Brasil numa era de fragmentação geopolítica - Paulo Roberto de Almeida

 As relações internacionais do Brasil numa era de fragmentação geopolítica


Paulo Roberto de Almeida


A divisão bipolar do planeta durante a Guerra Fria iniciada em 1947 parecia ter sido superada em 1992, quando os presidentes dos Estados Unidos, George Bush, e da Rússia, Boris Ieltsin, proclamaram a emergência de uma “nova ordem mundial”. O otimismo quanto à convergência de interesses entre os grandes atores geopolíticos se manteve durante alguns anos, chamados de “pós-Guerra Fria”, mas depreciativamente caracterizados como sendo de um“momento unipolar”, isto é, da hegemonia dos Estados Unidos. A Rússia de Putin ainda se encontrava empenhada numdifícil reconstrução econômica (e militar) a China, recém-admitida na OMC em 2001, ainda ensaiava sua extraordinária expansão comercial e tecnológica das décadas seguintesque levou se afirmar, em poucos anos, como a segunda maior potência econômica do planeta e a primeira no domínio do comércio mundialEm 2009 ela já tinha substituído os Estados Unidos como primeiro parceiro comercial do Brasil, depois de um domínio americano de mais de 150 anos nos nossos intercâmbios externos.

Analogias históricas são sempre enganosas, mas observa-se uma tendência, entre os analistas internacionais, no sentido de caracterizar o atual cenário geopolítico internacional como sendo o de uma “segunda Guerra Fria”, ao início com características mais econômicas e tecnológicas, no período recente mais marcadamente geopolíticos. Ela coloca, em dois campos opostos, o império americano, de um lado, ainda hegemônico no plano militar, e, de outro, dois novos contendores, Rússia e China, unidos por uma “aliança sem limites” a partir de fevereiro de 2022, pouco antes da invasão da Ucrânia pela Rússia

A similaridade de situações pode não se dar exatamente nos moldes da “primeira” Guerra Fria, quando o que predominou foi o chamado “equilíbrio do terror nuclear; mas eventuais desenvolvimentos, nesta nova fase, podedesembocar num cenário ainda mais preocupante, que foi oque prevaleceu no “Norte Global” dos anos 1930, colocando em confronto aberto as democracias de mercado do Atlântico Norte então com vários pacifistas no comando das principais potências – e as potências fascistas, expansionistas e belicistas, que se opunham a esse poderio geopolítico e que pretendiam contestar pela força das armas essa hegemonia. O confronto desembocou na maior conflagração militar da história, com dezenas de milhões de mortos e a conformação de uma nova ordem global a partir de 1945, um cenário mundial construído principalmente pelos Estados Unidos e que seguiu sendo caracteristicamente ocidental, em virtude da mediocridade econômica do universo comunista e das tribulações internas da China durante maior parte do período.

No pós-guerra, em face da grande divisão do mundo, a da Guerra Fria geopolítica das contendas interimperiais do período 1946-1989o Brasil construiu, com hesitações ao início, uma postura diplomática de neutralidade e de real autonomia na política externa. Isto foi positivo para oobjetivos prioritários da nação, o do crescimento econômico e o do seu desenvolvimento social. Não parece mais ser o caso no período recente, desde quando o candidato Lula, ainda em 2022, e o agora presidente, a partir de 2023,  proclamou várias vezes sua preferência pessoal – ou seja, ainda não uma escolha da diplomacia brasileira – pela construção de uma “nova ordem global multipolar”, nos mesmos termos vagos que vem sendo anunciados pelo presidente russo Vladimir Putin, secundado pelo líder chinês Xi JinpingEsse objetivo pode ser encampado pelo foro Brics, em fase de ampliação para o Brics+, com a incorporação de mais de uma dezena de países associados a partir de 2023.

De maneira já evidente, o que se assiste em 2025 – quando o Brasil responde pela presidência interina do Brics+,acolhendo sua reunião de cúpula – é a uma nova fratura entre as grandes potências, como não se via desde o entre guerras. A preeminência de fato de uma ordem ocidental,construída nos estertores da Segunda Guerra Mundial, vem sendo ativamente contestada pelo novo poderio econômico e militar das duas grandes potências declaradamente adversárias dessa ordemA Rússia de Putin, em especial, parece repetir os descaminhos diplomáticos dos impérios centrais na fase preliminar à Grande Guerra, assim como as aventuras bélicas das potências fascistas agressivas dos anos 1930. Naquela conjuntura, o Brasil tentou manter, tanto quanto conseguiu, sua neutralidade em face dessas disputas imperiais, mas soube escolher o seu campo no momento decisivo, graças ao tirocínio esclarecido de um estadista, Oswaldo Aranha, nutrido nos ensinamentos do barão do Rio Branco e na doutrina jurídica construída pelo jurista Rui Barbosa. 

A fragmentação geopolítica da atual conjuntura internacional, que vem sendo chamada – sem muita originalidade histórica – de “segunda Guerra Fria, ameaça, assim, se converter em guerra quente, talvez em conflagração direta, pela agressividade bélica de uma das duas potências autocráticas, declaradamente opostas à ordem ocidental “hegemônica”. É nesse contexto que o presidente Lula, em clara ruptura com os padrões tradicionais da diplomacia brasileira, de afirmada autonomia em relação às contendas políticas das grandes potências e de neutralidade em face dos conflitos interimperiais, parece ter escolhido o seu “campo”, que é o dos promotores de uma largamente indefinida “nova ordem global multipolarsem que isso constitua, ainda, uma nova doutrina para a diplomacia brasileira.

Se tal orientação se confirmar, enquanto política de Estado, ela pode ser prejudicial ao Brasil, não apenas no contexto dos seus objetivos e interesses nacionais permanentes, de crescimento econômico e desenvolvimento social, mas também no campo dos valores e princípios democráticos e humanistas expressos nas cláusulas de relações internacionais do artigo 4º da Constituição de 1988. No primeiro semestre de 2025, um eventual desvio em relação a essefundamentos conceituais da política externa e da diplomacia brasileira permanecia ainda no terreno das hipóteses. Uma evolução mais conforme à tradicional postura do Brasil nas suas relações internacionais indicaria um desejável retorno à autonomia e à independência de sua política externa e de neutralidade no posicionamentdiplomático em face das contendas interimperiais.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 24 de janeiro de 2025


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