A Ideia de um Ateliê de Humanidades

O Ateliê de Humanidades é um espaço livre e colaborativo de estudo, pesquisa, escrita e formação, visando gerar condições para formação intelectual e produção científica em níveis de excelência na interface entre a filosofia e as ciências, em especial as ciências humanas e sociais.

Mais do que um nome, a noção de “ateliê” remete ao “artesanato intelectual” próprio às atividades de estudo, pesquisa e escrita, no que se opõe a certa tendência de massificação, estandartização e engessamento do sistema de educação formal e de pesquisa em nível superior. O espaço de estudo e formação é concebido tendo por principal inspiração a concepção clássica de educação, presente nos termos grego de Paideia e alemão de Bildung. Compreende-se, aqui, que alguns traços do modelo clássico de educação são perfeitamente compatíveis, desde que atualizados e reformulados, com as sociedades contemporâneas.

O Ateliê envolve atividades de pesquisa integrando, em uma perspectiva transdisciplinar, a filosofia com as ciências. Neste sentido, ele pretende ser um espaço não apenas de formação de alto nível em humanidades, como também se volta a produzir conhecimento sobre temas e problemáticas de nosso tempo, fazendo uso das modernas metodologias científicas com um interesse emancipatório. Tem em vista contribuir, com isso, para pensar e conhecer o tempo presente. Para tanto, são incentivados, no interior do Ateliê, projetos de pesquisa científica – sociológica, antropológica, filosófica, psicológica, econômica e histórica -, seja por iniciativa do próprio espaço seja por meio de parcerias e projetos com instituições públicas e privadas.

O Ateliê é, portanto, um espaço ao mesmo tempo complementar e alternativo ao sistema formal de ensino superior. Ele é alternativo porque não subordina os estudos, a pesquisa e a formação a resultados pragmáticos de vista curta, nem tampouco se submete a imperativos de formação de recursos humanos para um mercado de trabalho. Complementar, porque é um espaço voltado a formar e orientar livremente pessoas que, inseridas no sistema de ensino superior ou postulando sua inserção, demandam serviços especiais que supram deficiências do sistema, aprofundem estudos ou possibilite acesso a conhecimentos que não estão disponíveis. Além do mais, ao se voltar a uma formação e pesquisa de excelência, tem por consequência subsidiária aumentar a qualificação de profissionais de pesquisa e de trabalho intelectual.

Os Valores do Ateliê

Liberdade de estudo, pesquisa e formação: por um ofício vocacionado

Ateliê de Humanidades é voltado para a promoção de talentos acadêmicos, fomentando liberdade de iniciativa e autonomia de pensamento, visando atender a indivíduos engajados em estudos e pesquisas inovadores. Ele se fundamenta no princípio de confiança na capacidade de formular problemas por parte dos livre-formandos e pesquisadores, incentivando uma parceria conjunta, em relação de forte simetria, com o tutor. Entendendo os ofícios de estudante e pesquisador como vocações atreladas a um processo de formação (Bildung), o Ateliê é um espaço tanto de complementação e de aprofundamento da formação de jovens pesquisadores, quanto também de realização de estudo, pesquisa, escrita e formação por parte de indivíduos que desejam se engajar livremente em tais atividades sem quaisquer pretensões de seguir carreira acadêmica. As atividades não excluem, portanto, o acesso de pessoas sem titulação ou não iniciadas institucionalmente nos estudos em humanidades. Não são exigidos títulos formais para a realização de atividades no interior do Ateliê, bastando para tanto ter, ao mesmo tempo, interesse, disposição e talento.

Historicidade do pensamento, experimentação da reflexão e brasilidade da experiência

O Ateliê tem uma compreensão do conhecimento e da atividade de pensamento como sendo atravessados pela historicidade. Isso quer dizer, antes de tudo, que assumimos o fato da historicidade do pensamento e que somos sensíveis ao quanto que, para pensar, devemos nos relacionar com a experiência histórica e com as múltiplas possibilidades de temporalidade. Trata-se tanto de pensar as relações entre passado, presente e futuro para além de uma visão ingênua de linearidade do tempo, quanto, sobretudo, de uma abertura a outras possibilidades de temporalidade. Desta forma, a preocupação com a historicidade do conhecimento e da experiência é assumida em nossas atividades de estudo, pesquisa e formação e está presente em todas as nossas linhas, segmentos e planos. Contudo, isso é feito considerando que todo pensamento é, acima de tudo, um esforço de reflexão em relação ao próprio tempo presente, indagando-se: o que nos acontece? Como responder ao que nos afeta? Isso explica o porquê o Ateliê não pretende reduzir os estudos e as pesquisas às histórias de disciplinas e autores, pois as entende como resultando em fragmentação, em desconexão e, sobretudo, em uma dessubstancialização da reflexão, o que a torna, enfim, vazia. Toda reflexão e todo pensar são, para nós, corporificados e envolvem uma dimensão de experimentação localizada no espaço-tempo. Por isso, o Ateliê nasce e responde pelo local de onde floresce, tomando a questão da brasilidade como sendo um plano de convergência nodal de suas atividades; brasilidade que é apreendida não como algo evidente do qual partir, mas sim como um problema, uma tarefa e uma experiência a nos defrontar.

Pelo tempo cadenciado do pensamento, da ciência e da cultura

Como tal forma de conhecimento demanda uma reflexão elaborada historicamente, em um esforço que não deixa de exigir uma capacidade de erudição e conexão, não é por acaso, assim, que o Ateliê reivindica um direito ao tempo próprio por parte da atividade intelectual. Diante da tendência atual de uma atividade de produção científica dirigida a índices de produtividade e à produção acelerada de saberes, feitos em detrimento do tempo cadenciado do estudo, da pesquisa e da formação, o Ateliê toma partido em prol do Manifesto por uma Slow Science, defendendo a ideia que a ciência necessita de tempo: tempo para pensar, tempo para ler, tempo para digerir e refletir, tempo para acertar, errar e arriscar. O Ateliê tem o intuito, assim, de contribuir para revivescer e proteger o tempo próprio à ciência, ao filosofar e à cultura, constituindo-se em um espaço disponível para uma reapropriação do tempo próprio à vocação intelectual.

Formação e estudos voltados à excelência

O sistema formal de ensino superior, sobretudo o do setor público, cumpre um papel fundamental e incontornável. Contudo, diante da grande escala e da formação de estruturas burocráticas bem pesadas tanto para os alunos quanto para os professores, há pouca possibilidade, nas universidades brasileiras, em meio à carga de créditos, às leituras fragmentadas e às corridas pelo posicionamento na carreira, para uma formação aprofundada, sistemática e voltada à excelência em determinados temas, autores e disciplinas. Soma-se a isso o fato de que, com o processo de hiperdisciplinarização, ocorre um fechamento precoce do ciclo de formação dos estudantes com um estreitamento disciplinar logo nas primeiras fases de estudos. Além do fato de que, com isso, acabamos por não possuir um conhecimento aprofundado de tradições de pensamento e de campos de pesquisa, temos também, como conseqüência igualmente grave, uma perda da possibilidade de aquisição de cultura geral e, por isso, uma ausência de capacidade de formular soluções para os problemas mais radicais – no sentido de que nos exigem que mergulhemos até a raiz. O Ateliê constitui-se, para tanto, em um espaço que fomenta o estudo aprofundado, voltado à excelência, com leituras e estudos densos, analíticos e sistemáticos em campos de estudos livremente escolhidos e acordados.

Transdisciplinaridade e centralidade das problemáticas de pesquisa

A disciplinarização e a profissionalização dos saberes são uma conquista das ciências modernas que deve ser defendida contra as facilidades do amadorismo e do charlatanismo. Contudo, no nosso tempo, existe a tendência da degradação da disciplinarização em uma hiperespecialização acadêmica, tendo por resultado a criação em larga escala de programas de pesquisa endógenos que possuem por principal critério de criação o pertencimento a faculdades ou fronteiras nitidamente estabelecidas. Um dos seus efeitos é um sentimento geral de diminuição da relevância de muito do que é produzido nas universidades, voltadas em demasia à reprodução de quadros e com dificuldade crescente de lidar com as grandes questões sociais, políticas e científicas do nosso tempo, posto que elas demandam, quase sempre, competências polivalentes e conhecimentos gerais. O Ateliê tem objetivo, para tanto, de trabalhar fomentando a cooperação transdisciplinar entre filosofia e ciências humanas, das ciências humanas e sociais entre si e, enfim, entre as humanidades e as ciências naturais. Isso é feito dando centralidade, nas atividades de estudo, pesquisa e formação, às problemáticas de pesquisa e aos caminhos de sua investigação e solução, e não aos pertencimentos disciplinares e profissionais ou às identificações a autores ou escolas de pensamento.

Liberdade e cuidado da escrita: por uma ética do trabalho bem feito

Como um dos efeitos da supressão do tempo próprio à formação, à ciência e ao pensar, ocorre, de um modo geral, uma notável diminuição da qualidade dos trabalhos científicos, ao mesmo tempo em que abunda a sua quantidade. Nas pós-graduações, torna-se comum o término de investigações ainda inacabadas tendo em vista os prazos draconianos. Nas publicações científicas, é cada vez mais comum a produção em série de textos fragmentados em conformidade com a padronização científica feita, em desrespeito à especificidade das humanidades, pelo acompanhamento do modelo das ciências da natureza. Temos com isso um amplo desincentivo a investigações vocacionadas, com fôlego intelectual e que envolvam risco por parte de pesquisadores. O Ateliê tem por objetivo, diante deste cenário, constituir um espaço em que o artesanato da escrita se torne possível, conciliando ao mesmo tempo a liberdade do escrever com um cuidado artesanal no seu fazer, voltando-se a uma ética do trabalho bem feito que não se subordine à regra do deadline. Como resultado das atividades de livre-formação e de livre-pesquisa, objetiva-se tornar públicos ensaios e análises em blogs parceiros, artigos em revistas especializadas e, especialmente, livros em editoras ou em selo próprio.

Um trabalho intelectual a serviço do público e orientado a uma formação democrática

O Ateliê se orienta por uma intuição a respeito do papel das humanidades para a construção de uma autonomia individual de pensamento e uma cultura política democrática. Não apenas apesar, mas sim por causa da crise cultural de nosso tempo, entendemos que o trabalho intelectual tem um papel incontornável e imprescindível nas democracias contemporâneasÉ uma intuição que se generaliza, na verdade, enquanto resposta à crise por nós vivida, o que se traduz, hoje, em várias propostas que se disseminam, tais como as da sociologia pública, da pop-filosofia, da teoria da complexidade, da ecologia política, dentre outras. Se há de se inspirar na concepção clássica de formação legada pelos antigos e transmitida pelo humanismo clássico, esta deve ser orientada, sem titubear, a uma Paideia democrática que esteja à altura do desafio do novo século. Além de apresentar ao público os resultados de nossos estudos e pesquisas por meio de publicações escritas, o Ateliê se propõe a realizar palestras, cursos e projetos, seja em empresas, escolas, ONGs ou quaisquer atores civis ou públicos, com o intuito de promover um esclarecimento de temas e problemas candentes na esfera pública de modo a auxiliar na formação de juízo individual e da vontade política. Tal proposta preside, até mesmo, a própria abertura do Ateliê – feita sem quaisquer receios – a livre-formandos e livre-pesquisadores que sejam alheios à perspectiva de carreira universitária. Pretendemos proporcionar um espaço de livre estudo, pesquisa, escrita e formação que seja próximo a indivíduos, grupos ou instituições que dele demandam. Para tanto, o Ateliê acolhe aqueles que desejam e são afeitos ao ofício, ainda que o seja não por causa da profissionalização acadêmica, mas sim em função de um enraizamento em suas próprias experiências existenciais e profissionais que, enquanto tais, os impelem a uma busca intelectual. Tal caminho pode bem ser através de um labor teórico e científico, mas pode igualmente ser por um acesso direto, didático e adequadamente traduzido a um público leigo, mas com ânsia de saber. Talvez nada mais propício para tal do que a solicitude ao pensar proporcionado por um Ateliê de Humanidades.