A tempestade e o fio: o Brasil entre poderes em fricção, fé em disputa e a urgência da escuta democrática
* Paulo Baía
O Brasil, em julho de 2025, é um país que caminha sob a vertigem. A paisagem institucional permanece em pé, mas há rachaduras nos pilares. As cores da democracia ainda estão nas bandeiras, nos tribunais, nas urnas e nas palavras dos discursos oficiais. No entanto, os três poderes da República caminham como corpos desajustados, um de costas para o outro, sem sincronia, sem harmonia, em fricção constante. A ideia de equilíbrio entre os poderes tornou-se peça de ficção constitucional. O que há é um embate silencioso e cotidiano entre instâncias que se desejam autônomas, mas que se sabotam mutuamente, num jogo de vaidades e estratégias dissimuladas. Neste palco de choques institucionais, pulsa a vida real de um país desigual, fatigado e ainda assim vivo.
Para compreender os últimos quinze anos da vida nacional é necessário nomear, sem rodeios, o lugar central que o Supremo Tribunal Federal passou a ocupar. O STF deixou de ser apenas o guardião da Constituição. Tornou-se ator de cena, não mais bastidor. Seus ministros passaram da toga ao microfone, do voto técnico à decisão com gestos dramáticos. O Supremo passou a ditar o ritmo da política brasileira, interferindo diretamente nos processos eleitorais, nas ações do Executivo, nas disputas legislativas, nos embates simbólicos do país. É um protagonismo visceralmente político, alimentado tanto pela omissão dos demais poderes quanto pela tempestade de crises que exigiram posicionamento. Seus votos tornaram-se editoriais. Suas decisões, capítulos do romance nacional. Seus ministros, personagens centrais da narrativa coletiva.
Mas o protagonismo do STF, ainda que por vezes necessário diante do colapso de outras instituições, é também sintoma. Sintoma de uma democracia tensionada, que transfere ao Judiciário o papel de árbitro quando a política perde sua capacidade de mediação. O Supremo preenche o vazio deixado por um Executivo sob constante cerco e por um Legislativo que se transformou num superpoder descontrolado. O Congresso Nacional já não é apenas uma casa de leis. Tornou-se o verdadeiro centro do governo, agindo sob um parlamentarismo informal, não declarado, mas operante. Um parlamentarismo de fato, em que deputados e senadores controlam a execução orçamentária por meio das emendas, exigem recursos, ministérios, cargos, favores. E tudo isso sem qualquer responsabilidade direta pelas consequências. A fatura é do Executivo. A cobrança é da população. A glória é do Legislativo.
Esse modelo deformado de governança cria um poder que governa sem governar, que executa sem responder, que pressiona sem assumir. O presidente da República torna-se um negociador permanente, um refém com caneta, um gerente de emendas. A responsabilidade pública permanece com o Executivo, mas o comando do orçamento está nas mãos do Parlamento. A inversão é brutal. É um regime de submissão consentida, em que o governo, para sobreviver, entrega partes da alma do Estado. O presidencialismo que resta é apenas uma imagem invertida no espelho da Constituição.
E nesse campo de distorções, reina também o bolsonarismo. Não como governo, mas como assombração. Jair Bolsonaro, ainda que fora do cargo, permanece como centro simbólico de um movimento que sobrevive a ele. O bolsonarismo é hoje um sistema articulado, operante, incrustado em igrejas, câmaras, corporações, escolas militares, polícias e redes sociais. Alimenta-se do ressentimento, da desconfiança, da descrença na política, da fé manipulada, do medo como método. Atua como vírus ideológico e cultural, contaminando o debate público, deslegitimando as instituições, instilando a lógica da ruptura permanente. Já não depende de Bolsonaro. Tornou-se maior que ele. Respira por aparelhos próprios.
A ofensiva internacional de Donald Trump, ao impor um tarifaço de cinquenta por cento sobre produtos brasileiros, foi mais que hostilidade econômica. Foi um gesto político, um aceno internacional à extrema direita brasileira, uma tentativa de desestabilizar o governo Lula e reforçar a ideia de que o Judiciário brasileiro age por vingança, não por justiça. Foi uma interferência grosseira nas escolhas internas do Brasil. Uma aliança explícita com o bolsonarismo em versão transnacional. Uma diplomacia da intimidação. Um gesto simbólico que buscava empurrar o Brasil de volta ao mundo das tutelas coloniais.
A resposta de Lula foi serena e firme. Acionou os canais diplomáticos, convocou a embaixadora brasileira nos Estados Unidos, prometeu reciprocidade, falou como chefe de Estado de uma nação que não aceita ser humilhada. O gesto teve peso. E reverberou. Porque há momentos em que é preciso erguer a voz com sobriedade, para que o país se reconheça em sua própria dignidade.
As ruas, até então dispersas, reagiram. Em 10 de julho, dezenas de milhares de pessoas tomaram praças e avenidas em várias capitais. A convocação partiu das frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo, com apoio do MST, da CUT, da UNE, do PT, do PSOL. O grito não era apenas contra Trump, mas contra a tentativa de submeter o Brasil a um jogo autoritário global. Era um grito por soberania, por justiça tributária, por proteção ao Judiciário, por respeito à democracia. Era, sobretudo, um ato de memória coletiva. Uma lembrança de que o povo ainda sabe reconhecer os momentos em que a história exige presença.
O impacto foi imediato. O instituto Quaest registrou interrupção na curva de queda da aprovação do governo Lula. A tendência mudou. O povo entendeu o gesto. A firmeza diante da agressão externa foi compreendida como força, não como confronto gratuito. O episódio devolveu ao governo a capacidade de recompor sua narrativa. Recolocou Lula como protagonista. Mas essa recuperação, embora simbólica, não basta. O campo democrático precisa de mais que gestos pontuais. Precisa de enraizamento. Precisa de escuta.
Escutar as vozes do país profundo. Escutar as igrejas, sim, mas todas elas. Ouvir padres, pastores, bispos, cardeais, pregadores, líderes evangélicos, teólogos populares. Ouvir os terreiros, os babalorixás, os pais e mães de santo, os dirigentes de casas de Umbanda. Ouvir também os espíritas kardecistas, os médiuns, os esotéricos. Ouvir os que vivem da fé, que comungam com a espiritualidade de um povo que é profundamente religioso, místico, plural. Esses espaços não são apenas templos. São centros de escuta, redes de cuidado, territórios de acolhimento. São onde o povo busca sentido, refúgio, força. Negar isso é negar o coração do Brasil.
É preciso também escutar os adversários que não se tornaram inimigos. Aqueles que votaram contra, mas que não entregaram sua alma ao bolsonarismo. Gente comum. Trabalhadores, estudantes, pequenos empreendedores, donas de casa, motoristas de aplicativo, jovens desiludidos, mães aflitas. Gente que sente, sofre, espera. Muitos não escolheram a extrema direita por convicção, mas por solidão. Por ausência de alternativa. Por desinformação. Por medo. Esses não devem ser atacados, mas ouvidos. Porque ali também está o futuro.
Lula começou a reencontrar esse caminho. Rompeu o silêncio estratégico. Assumiu as rédeas. Recompôs a base, reorganizou as prioridades, enfrentou a chantagem institucional com mais firmeza. Mas o desafio é imenso. A engrenagem é pesada. O centrão exige mais. O STF seguirá intervindo. Trump não recuará. O bolsonarismo avançará pelas bordas, pelas frestas, pelos corpos.
É nesse cenário que se impõe a urgência de escolhas. Há decisões que não podem mais ser adiadas. Há pactos que não podem mais ser mantidos. Há zonas de conforto que se tornaram campos de rendição. A estabilidade não vale a perda da alma. A governabilidade não pode custar a dignidade do projeto. A conciliação não pode se transformar em traição. É preciso ter coragem para dizer não. Para traçar limites. Para afirmar valores.
Como escreveu a jornalista Silvia Debossan Moretzsohn, em seu artigo “Sobre escolhas difíceis — e óbvias”, publicado no site Come Ananas, há momentos em que já não se pode continuar fingindo que tudo é questão de cálculo. Há horas em que o óbvio se impõe, não por ser simples, mas por ser urgente. Porque há lutas que não admitem postergação. Porque há uma história que precisa ser escrita com coragem.
O fio da história foi reencontrado. Mas segurá-lo exige firmeza, escuta, clareza e, sobretudo, compromisso. O futuro do Brasil, entre as fricções dos poderes, as tormentas externas e os fantasmas internos, dependerá da capacidade de enfrentar o que precisa ser enfrentado. Com beleza. Com dureza. Com generosidade. E com a coragem de não desistir. Porque, no fundo, é disso que se trata: de não desistir. De novo. E sempre.
* Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ
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