Doutrina Monroe

Doutrina Monroe

A Estratégia de Segurança Nacional do governo Donald Trump, anunciada recentemente, representa a mais profunda inflexão da política externa americana desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Em suas 33 páginas, o documento enuncia de forma direta o que já vinha sendo percebido por analistas e diplomatas: o abandono explícito da ordem liberal internacional construída a partir de 1945. Pela primeira vez em oito décadas, Washington deixa de organizar sua política externa em torno de alianças multilaterais, previsibilidade institucional e distinções normativas entre democracias e autocracias.

Os valores que davam aos Estados Unidos o papel de guardião do mundo “livre e ocidental” são substituídos por um pragmatismo no qual se aceita a divisão do mundo entre esferas de influência das principais potências: Estados Unidos, China e Rússia. A Europa, que Donald Trump qualificou como decadente, perde relevância na estratégia trumpista, assim como o sistema de defesa do Atlântico Norte, a OTAN. Dessa maneira, Putin fica de mãos livres para avançar na Ucrânia e na Eurásia, e Xi Jinping, na Ásia e em regiões do Indo-Pacífico. É a lei dos mais fortes subjugando os demais. Nesse reordenamento mundial, manda quem pode e obedece quem tem juízo.

A comparação com Ronald Reagan ajuda a dimensionar a mudança. Reagan também exerceu liderança assertiva, pressionou aliados e adversários e defendeu interesses americanos com firmeza. Mas o fez dentro de uma lógica de fortalecimento das instituições internacionais e de consolidação da ordem liberal. O atual movimento, ao contrário, rompe com essa tradição ao substituir liderança por imposição circunstancial e previsibilidade por improviso.

A prioridade de Donald Trump é outra: sua própria área de influência, o “Hemisfério Ocidental”. Particularmente a América Latina, que seu Secretário, Pete Hegseth, chamou de “quintal” dos Estados Unidos.

A Doutrina Monroe, criada há 200 anos, ressurge das cinzas. Proclamada pelo presidente dos EUA James Monroe em 1823, declarava o continente americano fechado para novas colonizações europeias e proibia a intervenção europeia nos assuntos das nações americanas, sob o lema “América para os americanos”. Inicialmente defensiva, pretendia proteger as novas repúblicas da América Latina da recolonização, mas evoluiu para justificar o intervencionismo e a hegemonia dos EUA na região, tornando-se um símbolo do imperialismo americano.

O trecho mais emblemático do documento da nova estratégia não deixa margem a dúvidas: “Após anos de negligência, os Estados Unidos reafirmarão e farão cumprir a Doutrina Monroe para restaurar a preeminência americana no Hemisfério Ocidental e proteger nosso acesso a áreas-chave em toda a região.” Mais adiante, o texto explicita seu escopo: os EUA “negarão a concorrentes de fora a capacidade de posicionar forças ou controlar ativos estrategicamente vitais na região”. Não se trata de retórica vaga ou formulação diplomática ambígua. Trata-se de uma geopolítica que recoloca a América Latina no centro da estratégia de segurança dos Estados Unidos e restaura, de maneira aberta, a lógica das esferas de influência.

O embaixador Rubens Barbosa, em artigo publicado no Estado de São Paulo, foi direto ao afirmar que o documento “na prática, afirma que a região pertence à área de influência dos Estados Unidos”. Em outras palavras: não se trata apenas de uma mudança de tom, mas da institucionalização de uma visão de mundo que recoloca a América Latina no papel que ocupava durante a Guerra Fria: o de zona tutelada, sensível à presença militar, econômica e tecnológica de potências rivais.

É nesse contexto que a América Latina reaparece como prioridade. Sob o rótulo de “Hemisfério Ocidental”, o documento prevê maior presença naval, operações ampliadas contra cartéis, vigilância sobre minerais estratégicos (como lítio e terras raras) e monitoramento intensivo de cadeias críticas de suprimentos. Ou seja, áreas sensíveis para o futuro tecnológico e energético dos EUA. A região passa a ser vista não como plataforma indispensável para a segurança nacional, devendo ser protegida contra “interferências de potências externas”, em referência clara à China e, em menor grau, à Rússia.

Esse redesenho tem impactos profundos para o Brasil e seus vizinhos. A ascensão chinesa consolidou a presença de Pequim em portos, telecomunicações, energia e minérios; a Rússia mantém parcerias militares em vários países; o Irã constrói relações políticas e logísticas em territórios específicos. A nova estratégia americana sinaliza que tais movimentos não serão mais tolerados como parte do jogo diplomático corrente. O que antes era questão de comércio ou desenvolvimento passa a ser enquadrado como desafio à segurança nacional. O resultado provável é um aumento da pressão política, econômica e militar para limitar a inserção de potências externas na região — processo que tende a gerar atritos crescentes com governos que buscam maior autonomia na política externa.

Nesse quadro, o retorno da Doutrina Monroe pode representar uma ameaça direta à soberania nacional dos países latino-americanos. Não apenas no caso da Venezuela, que corre o risco de uma ação militar direta, mas também do Brasil. No nosso caso, possuímos a segunda maior reserva mundial de terras raras e atraímos vultosos investimentos chineses em tecnologia, energia, portos e 5G. Ou seja, a disputa por cadeias produtivas críticas nos coloca no centro da geopolítica americana.

Esse retorno ao paradigma das esferas de influência tem duas implicações centrais. A primeira é global: a ordem liberal surgida em 1945 está sendo substituída por uma ordem de contenção e rivalidades, na qual grandes potências delimitam zonas de interesse exclusivas. A segunda é regional: a América Latina volta a ser tratada como extensão da segurança americana. O desafio para os países latino-americanos será preservar margens de autonomia neste cenário.

A geopolítica voltou, e voltou com o vocabulário do século XIX. Por isso mesmo, fazem todo sentido as palavras do ex-ministro do STF Celso de Mello, ao qualificar a nova política de Trump como uma arrogância imperial: “Trata-se, a um só tempo, de gesto anacrônico, de vocação hegemônica e de grave retrocesso histórico, pois reedita fórmulas obsoletas que o Direito Internacional e a consciência democrática das nações há muito repudiaram”.

Diante dessa nova realidade, caberá aos governos latino-americanos articular estratégias capazes de proteger seus interesses sem provocar confrontos diretos com a potência hegemônica do hemisfério.

O retorno da Doutrina Monroe, sob essa forma pragmática e desinstitucionalizada, não significa necessariamente um retorno ao passado, mas aponta para um futuro mais áspero. Um mundo em que regras cedem lugar a relações de força, e em que países médios precisam navegar com cautela entre interesses conflitantes.

O desafio brasileiro será preservar espaços de soberania e decisão num ambiente internacional cada vez menos tolerante à ambiguidade.

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Hubert Alquéres é presidente da Academia Paulista de Educação.