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quarta-feira, 31 de maio de 2023

Editorial do Partido NOVO: Bajular ditadores não é política externa - Nota sobre a recepção de Lula ao ditador da Venezuela, Nicolas Maduro

 



Editorial: Bajular ditadores não é política externa

Em 1972, o presidente americano, Richard Nixon, surpreendeu o mundo ao visitar o líder comunista chinês Mao Zedong, um dos ditadores mais cruéis e sanguinários do século 20. A visita marcou o fim de 25 anos de isolamento entre os dois países, consolidou uma aliança tácita contra a União Soviética e pavimentou o caminho para a abertura econômica chinesa que ocorreria a partir de 1979.

A viagem de Nixon à China mostra que a política externa é a arte de manter relações não só com países que admiramos, mas também com aqueles que execramos ou com quem temos divergências. Para isso serve a diplomacia, que em tempos de guerra negocia até com inimigos declarados.

Por outro lado, o fortalecimento da nossa democracia requer um constante repúdio a ditaduras e a violações de direitos humanos. Ao mesmo tempo em que se defende e se promove os interesses nacionais, é preciso pontuar a crítica à tirania – ou pelo menos evitar rasgar elogios a ditadores que massacram a própria população.

Por isso é tão revoltante que o presidente Lula receba, repleto de sorrisos, elogios e honrarias militares, o ditador venezuelano Nicolás Maduro. Ao contrário de Nixon em 1971, o presidente brasileiro abandonou seu papel de líder internacional para aderir à pura e simples bajulação de alguém que submete seu país a uma ditadura tenebrosa.

Num surto de negacionismo histórico, Lula tratou como “narrativas” e “preconceito” a repressão de manifestantes por esquadrões da morte, as denúncias de assassinatos, perseguições políticas e torturas muito bem documentadas e relatadas pela ONU e pela Anistia Internacional. 

Petistas tentam justificar o comportamento de Lula afirmando que a união dos países latino-americanos os torna mais fortes diante de ameaças de “grandes potências” como a Europa e os Estados Unidos. Na verdade, ao se alinhar ao bloco autocrático composto por China, Rússia, Irã e Venezuela, Lula destrói seu capital político junto às grandes potências ocidentais.

Há um prejuízo adicional. Ao chamar todos os presidentes da América do Sul para a cúpula sobre a Unasul, mas receber com honrarias de chefe de Estado apenas o ditador da Venezuela, Lula transmitiu a mensagem de que Maduro é mais importante que os demais.

Não à toa, os presidentes do Uruguai e até mesmo do Chile, o esquerdista Gabriel Boric, se mostraram incomodados com a reunião bilateral que antecedeu a cúpula e criticaram as falas do presidente brasileiro. A reunião acabou em clima de decepção, bem distante do consenso que Lula esperava. 

O povo de um país é diferente do seu governo. É possível estreitar relações com o povo venezuelano sem endossar crimes contra a humanidade. Por isso o Partido Novo não é contrário a que se mantenha uma agenda para a defesa dos interesses brasileiros, com eventual pagamento da dívida venezuelana com o Brasil, desenvolvimento do comércio e parceria em projetos de fronteira.

Mas não se pode perder de vista o compromisso inegociável do Brasil com a democracia – e o estrago que o governo causa a si próprio ao se alinhar ao bloco autocrático que cada vez mais causa preocupações ao Ocidente.

Bajulação não é diplomacia: é só subserviência. Ao adular tiranos como Maduro, Lula se afasta das democracias da América do Sul e faz do Brasil não um líder, mas um pária internacional.

Avaliação da revista Veja: "Como Lula boicotou o próprio governo na cúpula de países latinos"

Como Lula boicotou o próprio governo na cúpula de países latinos

Reunião com chefes de Estado tinha a missão de exaltar pontos de convergência, que acabaram ofuscados pela discussão sobre a ditadura venezuelana

 Por Robson Bonin

Revista Veja,30 Maio 2023, 20h13  

https://veja.abril.com.br/coluna/radar/como-lula-boicotou-o-proprio-governo-na-cupula-de-paises-latinos/?utm_source=pushnews&utm_medium=pushnotification


A convite de Lula, os líderes dos países sul-americanos reuniram-se em Brasília nesta terça para, nas palavras do governo,  “intercambiar pontos de vista e perspectivas para a cooperação e a integração da América do Sul”.

A reunião, na avaliação de integrantes do governo, tinha o grande objetivo de lançar luz sobre os pontos de união entre os diferentes países da região.

O regime autoritário de Nicolas Maduro, na Venezuela — marcado por violações de direitos humanos, perseguição política e miséria –, não era um dos temas da conversa.

Virou assunto principal do encontro, no entanto, quando Lula decidiu organizar uma festiva recepção ao colega ditador no Planalto.

Em vez de surfar no evento em que a América Latina se reencontrava para discutir interesses comuns, Lula terminou o encontro enfrentando o constrangimento de ter que comentar as críticas dos presidentes do Uruguai e do Chile.

O líder chileno disse que Lula distorcia a realidade ao pintar a Venezuela como uma democracia alvo de “narrativas” e fazia vista grossa aos crimes na Venezuela. Já o líder uruguaio disse que o petista tentava tapar o sol com o dedo ao negar o autorismo do colega Maduro.

Não faz muito tempo, o Brasil tinha no Planalto um presidente que costumava boicotar agendas do próprio governo, criando fatos negativos que ofuscavam agendas positivas.


terça-feira, 30 de maio de 2023

Consenso de Brasilia (sobre a reunião de presidentes da América do Sul): seria realmente um consenso? (Nota do MRE)

 Ministério das Relações Exteriores

Assessoria Especial de Comunicação Social

 

Nota nº 217

30 de maio de 2023 

Consenso de Brasília – 30 de maio de 2023

1.  A convite do Presidente do Brasil, os líderes dos países sul-americanos reuniram-se em Brasília, em 30 de maio de 2023, para intercambiar pontos de vista e perspectivas para a cooperação e a integração da América do Sul.

2.  Reafirmaram a visão comum de que a América do Sul constitui uma região de paz e cooperação, baseada no diálogo e no respeito à diversidade dos nossos povos, comprometida com a democracia e os direitos humanos, o desenvolvimento sustentável e a justiça social, o Estado de direito e a estabilidade institucional, a defesa da soberania e a não interferência em assuntos internos.

3.  Coincidiram em que o mundo enfrenta múltiplos desafios, em um cenário de crise climática, ameaças à paz e à segurança internacional, pressões sobre as cadeias de alimentos e energia, riscos de novas pandemias, aumento de desigualdades sociais e ameaças à estabilidade institucional e democrática.

4.  Concordaram que a integração regional deve ser parte das soluções para enfrentar os desafios compartilhados da construção de um mundo pacífico; do fortalecimento da democracia; da promoção do desenvolvimento econômico e social; do combate à pobreza, à fome e a todas as formas de desigualdade e discriminação; da promoção da igualdade de gênero; da gestão ordenada, segura e regular das migrações; do enfrentamento da mudança do clima, inclusive por meio de mecanismos inovadores de financiamento da ação climática, entre os quais poderia ser considerado o ‘swap’, por parte de países desenvolvidos, de dívida por ação climática; da promoção da transição ecológica e energética, a partir de energias limpas; do fortalecimento das capacidades sanitárias; e do enfrentamento ao crime organizado transnacional.

5.  Comprometeram-se a trabalhar para o incremento do comércio e dos investimentos entre os países da região; a melhoria da infraestrutura e logística; o fortalecimento das cadeias de valor regionais; a aplicação de medidas de facilitação do comércio e de integração financeira; a superação das assimetrias; a eliminação de medidas unilaterais; e o acesso a mercados por meio de uma rede de acordos de complementação econômica, inclusive no marco da ALADI, tendo como meta uma efetiva área de livre comércio sul-americana.

6.  Reconheceram a importância de manter um diálogo regular, com o propósito de impulsionar o processo de integração da América do Sul e projetar a voz da região no mundo.

7.  Decidiram estabelecer um grupo de contato, liderado pelos Chanceleres, para avaliação das experiências dos mecanismos sul-americanos de integração e a elaboração de um mapa do caminho para a integração da América do Sul, a ser submetido à consideração dos Chefes de Estado.  

8.  Acordaram promover, desde já, iniciativas de cooperação sul-americana, com um enfoque social e de gênero, em áreas que dizem respeito às necessidades imediatas dos cidadãos, em particular as pessoas em situação de vulnerabilidade, inclusive os povos indígenas, tais como saúde, segurança alimentar, sistemas alimentares baseados na agricultura tradicional, meio ambiente, recursos hídricos, desastres naturais, infraestrutura e logística, interconexão energética e energias limpas, transformação digital, defesa, segurança e integração de fronteiras, combate ao crime organizado transnacional e segurança cibernética.

9.  Concordaram em voltar a reunir-se, em data e local a serem determinados, para repassar o andamento das iniciativas de cooperação sul-americana e determinar os próximos passos a serem tomados.

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Consenso de Brasilia

 1. Por invitación del presidente de Brasil, los líderes de los países sudamericanos se reunieron en Brasilia, el 30 de mayo de 2023, para intercambiar puntos de vista y perspectivas para la cooperación e integración de Sudamérica.

2. Reafirmaron la visión común de que América del Sur constituye una región de paz y cooperación, basada en el diálogo y el respeto a la diversidad de nuestros pueblos, comprometida con la democracia y los derechos humanos, el desarrollo sostenible y la justicia social, el Estado de derecho y la estabilidad institucional, la defensa de la soberanía y la no injerencia en asuntos internos.

3. Coincidieron en que el mundo se enfrenta a múltiples retos, en un escenario de crisis climática, amenazas a la paz y a la seguridad internacional, presiones sobre las cadenas de alimentos y energía, riesgos de nuevas pandemias, aumento de desigualdades sociales y amenazas a la estabilidad institucional y democrática.

4. Concordaron en que la integración regional debe ser parte de las soluciones para afrontar los desafíos compartidos en la construcción de un mundo pacífico; el fortalecimiento de la democracia; la promoción del desarrollo económico y social; la lucha contra la pobreza, el hambre y todas las formas de desigualdad y discriminación; la promoción de la igualdad de género; la gestión ordenada, segura y regular de migraciones; el enfrentamiento al cambio climático, incluso por medio de mecanismos innovadores de financiamiento de la acción climática, entre los cuales podría considerarse el canje, por parte de países desarrollados, de deuda por acción climática; la promoción de la transición ecológica y energética a partir de energías limpias; el fortalecimiento de las capacidades sanitarias; y el combate al crimen organizado transnacional.

5. Se comprometieron a trabajar por el incremento del comercio y de las inversiones entre los países de la región; la mejora de la infraestructura y logística; el fortalecimiento de las cadenas de valor regionales; la aplicación de medidas de facilitación del comercio e integración financiera; la superación de las asimetrías; la eliminación de medidas unilaterales; y el acceso a los mercados por medio de la red de acuerdos de complementación económica, incluso en el marco de la ALADI, teniendo como meta una efectiva área de libre comercio sudamericana.

6. Reconocieron la importancia de mantener el diálogo regular, con miras a impulsar el proceso de integración en América del Sur y proyectar la voz de la región en el mundo.

7. Decidieron establecer un grupo de contacto, encabezado por los Cancilleres, para evaluación de las experiencias de los mecanismos sudamericanos de integración y la elaboración de una hoja de ruta para la integración de América del Sur, a ser sometida a la consideración de los Jefes de Estado.

8. Acordaron promover, desde ahora, iniciativas de cooperación sudamericana, bajo un enfoque social y de género, en áreas que atañen a las necesidades inmediatas de los ciudadanos, en particular las personas en situación de vulnerabilidad, incluyendo los pueblos indígenas, tales como salud, seguridad alimentaria, sistemas alimentarios basados en la agricultura tradicional, medio ambiente, recursos hídricos, desastres naturales, infraestructura y logística, interconexión energética y energías limpias, transformación digital, defensa, seguridad e integración de fronteras, combate al crimen transnacional organizado y ciberseguridad.

9. Acordaron volver a reunirse, en fecha y lugar a ser determinados, para repasar el curso de las iniciativas de cooperación sudamericana y determinar los próximos pasos a tomarse.

 

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Brasilia Consensus

 At the invitation of the President of Brazil, the leaders of the South American countries met in Brasilia, on May 30, 2023, to exchange views and perspectives on cooperation and the integration of South America.

2. The Presidents reaffirmed the common vision of South America as a region of peace and cooperation, based on dialogue and on the respect for the diversity of our peoples, committed to democracy and human rights, sustainable development and social justice, the rule of law and institutional stability, the upholding of sovereignty and non-interference in internal affairs.

3. Concurred that the world is facing multiples challenges, in a context of climate crisis, threats to peace and international security, pressure on food and energy chains, the risk of new pandemics, increase in social inequalities and threats to institutional and democratic stability.

4. Agreed that regional integration should be part of the solution to the common challenges of building a peaceful world; strengthening democracy; promoting social and economic development; fighting poverty, hunger, and all forms of inequality and discrimination; promoting gender equality; managing migration in a safe, orderly and regular manner; tackling climate change, including through innovative financing mechanisms for climate action, among which could be considered debt-for-climate swaps by developed countries; fostering ecological and energy transition through clean energy; strengthening health capacities; and the fight against transnational organized crime.

5. Committed to work towards increasing trade and investment among the countries of the region; improving infrastructure and logistics; strengthening regional value chains; effectively implementing trade facilitation and financial integration measures; reducing asymmetries; eliminating unilateral measures; and increasing market access through the network of economic complementation agreements, including under LAIA, with the aim of reaching an effective South American Free Trade Area.

6. Recognized the importance of maintaining regular dialogue, with a view to furthering the integration process in South America and projecting the region's voice in the world.

7. Decided to establish a contact group, headed by the Foreign Ministers, to evaluate the experiences of South American integration mechanisms and to draft a roadmap for the integration of South America, to be submitted to the consideration of the Heads of State.

8. Agreed to promptly promote South American cooperation initiatives open to the participation of all interested parties, with a social and gender approach, in areas that concern the immediate needs of citizens, in particular the most vulnerable, including indigenous peoples, such as health, food security, food systems based on traditional agriculture, the environment, water resources, natural disasters, infrastructure and logistics, energy interconnection and clean energy, digital transformation, defense, border integration and security, and cybersecurity.

9. Agreed to meet again, on a date and place to be determined, in order to review the progress of the South American cooperation initiatives and determine the next steps.

 

[Nota publicada em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/consenso-de-brasilia-2013-30-de-maio-de-2023

Propostas de Lula aos líderes dos países sul-americanos presentes à reunião de Brasília (CNN)

A ofensiva de Lula contra o uso do dólar nas transações comerciais não se baseia em nenhum estudo técnico fundamentado, para demonstrar que o dólar é dispensável ou indesejável. Trata-se de uma postura puramente pessoal, baseada na raiva que Lula tem do dólar, dos EUA, dos americanos, por nada, apenas por preconceito ideológico.

Paulo Roberto de Almeida 

Propostas de Lula aos líderes dos países sul-americanos presentes à reunião de 30/05/2023, em Brasília:

  • colocar a poupança regional a serviço do desenvolvimento econômico e social, mobilizando os bancos de desenvolvimento como a CAF, o Fonplata, o Banco do Sul e o BNDES;
  • aprofundar nossa identidade sul-americana também na área monetária, mediante mecanismo de compensação mais eficiente e a criação de uma unidade de referência comum para o comércio, reduzindo a dependência de moedas extrarregionais;
  • implementar iniciativas de convergência regulatória, facilitando trâmites e desburocratizando procedimentos de exportação e importação de bens;
    ampliar os mecanismos de cooperação de última geração, que envolva serviços, investimentos, comércio eletrônico e política de concorrência;
  • atualizar a carteira de projetos do Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento (Cosiplan), reforçando a multimodalidade e priorizando os de alto impacto para a integração física e digital, especialmente nas regiões de fronteira;
  • desenvolver ações coordenadas para o enfrentamento da mudança do clima;
    reativar o Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde, que nos permitirá adotar medidas para ampliar a cobertura vacinal, fortalecer nosso complexo industrial da saúde e expandir o atendimento a populações carentes e povos indígenas;
  • lançar a discussão sobre a constituição de um mercado sul-americano de energia, que assegure o suprimento, a eficiência do uso de nossos recursos, a estabilidade jurídica, preços justos e a sustentabilidade social e ambiental;
  • criar programa de mobilidade regional para estudantes, pesquisadores e professores no ensino superior, algo que foi tão importante na consolidação da União Europeia; e
  • e retomar a cooperação na área de defesa com vistas a dotar a região de maior capacidade de formação e treinamento, intercâmbio de experiências e conhecimentos em matéria de indústria miliar, de doutrina e políticas de defesa.

segunda-feira, 29 de maio de 2023

Hesitações diplomáticas de Lula 3: O Brasil faz parte das democracias? - Lourdes Sola, Eduardo Viola (Estadão)

Fundamental convergência com as democracias

Emergência clara das dimensões políticas e ideológicas do alinhamento com Rússia e China erodiu dramaticamente o capital político de Lula no Ocidente coletivo

Por Lourdes Sola e Eduardo Viola

O Estado de S. Paulo, 27/05/2023 

Na avaliação da política externa, a tradição dominante entre analistas brasileiros é dar pouca relevância à questão dos regime políticos. Seguem uma abordagem neorrealista, conforme a qual os Estados têm interesses permanentes derivados de sua geografia, história e identidade cultural. Sem negar a relevância dessas dimensões, nosso argumento vai na direção oposta: os interesses dos Estados variam segundo os regimes políticos e os governos, e segundo as transformações da economia política mundial.

A invasão russa da Ucrânia consolidou um forte componente de guerra fria entre as democracias do “Ocidente coletivo” (que inclui Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Austrália e Nova Zelândia) e o bloco autocrático (com China, Rússia, Irã e Coreia do Norte). Esse confronto delineia-se desde 2015, mas o traço que define a guerra fria é mais recente: cada bloco vê o outro como ameaça existencial. Está em pleno curso o desacoplamento entre ambos no referente à alta tecnologia e, particularmente, à tecnologia de uso dual (civil e militar).

Isso aponta para um sistema internacional bipolar, e não multipolar, embora com características inéditas em relação à guerra fria no século 20. Primeira: alta interdependência econômica entre os dois blocos, embora menor entre Ocidente e Rússia desde a invasão. Segunda: à diferença da União Soviética, a China é uma superpotência econômica. Terceiro: há desafios globais, de ordem existencial, que só serão equacionados por meio da cooperação e, portanto, de regras e instituições acordadas: mudança climática, pandemias, regulação da inteligência artificial.

Os países do “Sul Global” estão em posição intermediária. Mas qual o valor analítico dessa noção? Inclui países de rendas média alta, média baixa e baixa; e regimes políticos numa escala que vai do democrático liberal, como Chile, Uruguai e Costa Rica, ao autocrático fechado da Arábia Saudita, dos Emirados, do Egito e do Vietnã (seguimos, aqui, a classificação do V-Dem 2023).

Apesar de ter perdido o status de democracia com traços liberais a partir de 2017, o Brasil é uma democracia eleitoral. Tem fortes convergências com o bloco do Ocidente coletivo: a proteção da democracia e de direitos humanos; o suprimento de equipamentos militares fabricados em países da Otan; o treino de altos oficiais se faz nesses redutos e as doutrinas de defesa são as ocidentais. Ao mesmo tempo, o desejável fortalecimento da interdependência comercial com China revelou-se, até aqui, compatível com a que estabelecemos com países do Ocidente – nas áreas financeira e de investimentos diretos.

Na viagem à China e na subsequente visita de Sergei Lavrov ao Brasil, no entanto, foram as dimensões políticas e ideológicas do alinhamento com a Rússia e com a China que emergiram com clareza. Isso erodiu dramaticamente o capital político de Lula no Ocidente coletivo.

Está claro que a estratégia de Lula/Celso Amorim apoia-se em supostos cujo teor exige reflexão crítica. O principal é a convicção de que estamos num sistema multipolar, quando na verdade a invasão da Ucrânia representa um ponto de virada macrohistórico, porque consolidou alinhamentos em torno de um confronto típico de sistema bipolar – embora mais complexo e desafiador.

Além disso, suas prioridades têm por foco o Brics, o que é questionável. Não só por incluir os dois líderes do bloco autocrático, mas principalmente pela suposição implícita de que esse clube constitui um território neutro. Como assim, se ele inclui a Índia? Um poder nuclear cujo conflito (existencial) com a China o fez integrar o grupo Quad – ao lado de Japão, Austrália e Estados Unidos?

A história política de Lula e do PT mostra uma visão política que inclui muitas reticências em relação às democracias liberais, um antiamericanismo light e admiração pela esquerda autoritária latino-americana. A campanha eleitoral, porém, foi pautada por acenos que apontavam para uma mudança de perspectiva – que, por sua vez, foram legitimados internacionalmente pelo empenho das democracias ocidentais em garantir a integridade do sistema eleitoral e dissuadir setores militares da tentação golpista.

Quatro meses depois da posse, está claro que a ambição de Lula é projetar-se como uma liderança mundial, com seus efeitos multiplicadores no doméstico. Neste caso, definitivamente, o caminho deve ser outro, pois o Brasil não tem excedente de poder para mediar numa região que conhece pouco e com a qual tem vínculos limitados. As áreas nas quais tem condições de protagonismo mundial são as políticas climática e de transição energética. Justamente aquelas que são decisivas para equacionar alguns dos desafios globais de ordem existencial mencionados. Para tanto, há que reduzir drasticamente o desmatamento, evitar as tentações do nacionalismo petroleiro e investir nas oportunidades abertas para exercer protagonismo ambiental – a presidência do G20 e a COP 30.

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COORDENADORES DO GRUPO DE PESQUISA DO INSTITUTO DE ESTUDOS AVANÇADOS (IEA) DA USP ‘ECONOMIA POLÍTICA INTERNACIONAL, VARIEDADES DE DEMOCRACIA E DESCARBONIZAÇÃO’, SÃO, RESPECTIVAMENTE, PROFESSORA SÊNIOR DO IEA/USP E PROFESSOR VISITANTE DO IEA/USP E DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA FGV

domingo, 28 de maio de 2023

Lula ‘perdido’ da Silva - Editorial do Estadão, 27/05/2023

Lula ‘perdido’ da Silva

 Editorial do Estadão, 27/05/2023

Sem plano estratégico para o País, o petista parece desorientado. As crises que já engolfam um governo de apenas cinco meses formam o retrato de um presidente fora do prumo.

É difícil acompanhar a política nacional e não se espantar com o fato de que o governo do presidente Lula da Silva não completou cinco meses, mas já está imerso em confusões que o fazem parecer precocemente envelhecido, como se já estivesse padecendo da fadiga de material típica de fim de mandato.
Lula parece perdido. Sabe-se que ele queria governar o País pela terceira vez, ou não teria se submetido, a essa altura da vida, ao desgaste de uma virulenta campanha eleitoral como foi a do ano passado. Mas, até agora, ainda não se sabe exatamente para quê. Afinal, aonde Lula quer levar o Brasil? Qual seu plano estratégico para o País?
Desencontros são naturais no início de qualquer governo. No entanto, não há explicação razoável para tantas crises políticas, em tão pouco tempo, a não ser a desorientação do presidente da República. Mais especificamente, a falta de um programa de governo consistente e de uma política de comunicação que sejam capazes de unir a sociedade em torno de objetivos comuns, malgrado todas as divergências políticas que possa haver entre os cidadãos, como as há em qualquer democracia saudável.
Enquanto as reais intenções de Lula não forem conhecidas, é lícita a inferência de que o presidente só está se movendo por seus caprichos e por sua pulsão pela desforra. É nítida a intenção do petista de demolir tudo o que foi feito de bom no País enquanto o PT esteve fora do poder, em particular o Marco Legal do Saneamento, a Lei das Estatais, a autonomia do Banco Central (BC), as reformas do Ensino Médio e a trabalhista e a capitalização da Eletrobras, entre outras medidas.
Lula pode vir a público e afirmar, como o fez há poucos dias, que “não voltaria à Presidência para ser menor” do que foi em seus mandatos anteriores. Porém, até o momento, isso é exatamente o que se descortina. Lula também pode fazer afagos públicos nas ministras do Meio Ambiente, Marina Silva, e dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, mas nada compensará o fato de que, em nome de uma certa governabilidade, permitiu que o Centrão desfigurasse esses Ministérios que, bem ou mal, serviam para ser a cara do governo petista. Como bem disse o próprio Lula depois da humilhação de suas ministras, “tudo parece normal”.
Em um Congresso infenso às pretensões do presidente, Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) brotam por todos os lados, em número sem precedentes para uma legislatura que mal começou. O que é isso senão o retrato de um governo fraco, como já destacamos nesta página?
Enquanto claudica na articulação para formar uma base de apoio no Legislativo consistente o bastante para aprovar projetos realmente importantes para o Brasil, Lula se perde entre questões distantes das prioridades do País, como a guerra na Ucrânia, sua rixa pessoal contra o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, suas agressões aos empresários do agronegócio, sobretudo os paulistas, e os endossos aos arruaceiros do MST. Enquanto o mundo já discute como serão as cidades do futuro, Lula dobra a aposta no transporte individual por meio de carros baratos movidos a combustíveis fósseis.
O que haveria de ser pior para o Brasil do que ser governado por um presidente desorientado, alguém que, ao invés de servir à Nação como fonte de estabilidade, funciona como vetor de crises perfeitamente evitáveis?
O País teve a infelicidade de ser governado por um desqualificado como Jair Bolsonaro durante a mais grave emergência sanitária em mais de um século. Seu despreparo e, principalmente, seu descaso com a vida dos brasileiros fizeram de sua gestão da crise, por assim dizer, uma tragédia dentro de outra tragédia. A razia promovida pelo ex-presidente em praticamente todas as áreas da administração pública demandava do sucessor um esforço de união e reconstrução sem precedentes.
Lula se apresentou como a única pessoa à altura dessa tarefa, o líder de uma fenomenal “frente ampla” capaz de reconectar os brasileiros com a esperança de dias melhores. Tempo há para que esse Lula, enfim, apareça. Resta saber se era isso o que ele realmente se propôs a fazer pelo País.

Guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia: uma entrevista sincera do chefe dos mercenários, Yevgeny Prigojin (O Globo)

 Mundo 

Por O Globo, com agências internacionais 

 


Yevgeny Prigojin, fundador do grupo Wagner
Yevgeny Prigojin, fundador do grupo Wagner AFP

O líder do Grupo Wagner, unidade paramilitar que combate ao lado das tropas russas na Ucrânia, Yevgeny Prigojin, afirmou que a invasão ordenada por Moscou contra seu vizinho do oeste falhou no objetivo de desmilitarizar Kiev, transformando as forças armadas inimigas em uma das "mais poderosas do mundo". A declaração de Prigojin foi feita em uma entrevista ao blogueiro militar russo Konstantin Dolgov, publicada em uma plataforma de vídeos russa nesta quarta-feira, na qual ele também admitiu ter perdido 20 mil homens durante os confrontos em Bakhmut. 

— No que diz respeito à desmilitarização... se eles tinham 500 tanques no início da operação especial, [agora] eles têm 5 mil tanques. Se eles tinham 20 mil pessoas capazes e treinadas para lutar, agora 400 mil pessoas sabem como lutar. Como nós os desmilitarizamos? Acontece que o oposto é verdadeiro - nós os militarizamos — disse o chefe do grupo Wagner. 

Prigojin ainda descreveu o Exército do país vizinho como forças com "alto nível de habilidades organizacionais, um alto nível de treinamento e um alto nível de inteligência", além de terem sido capacitados a utilizar uma vasta gama de equipamentos militares, aos quais tiveram acesso. 

— Eles têm diferentes tipos de armas e, o que é mais importante, eles podem trabalhar com facilidade e sucesso com todos os sistemas: soviético, Sistemas da Otan... você escolhe. 

Risco de revolução

Diante das dificuldades no campo de batalha e vendo os objetivos militares estabelecidos no início da operação especial para desnazificar a Ucrânia (como o Kremlin oficialmente de refere à invasão) cada vez mais distantes, o líder mercenário também fez previsões catastróficas sobre o possível futuro da Rússia, apontando a possibilidade de rebeliões internas desestabilizarem o país. 

— Estamos em uma situação em que nós podemos simplesmente perder a Rússia — disse Prigojin, defendendo que o governo decrete Lei Marcial enquanto durar o conflito — Nós precisamos introduzir a lei marcial. Nós, infelizmente, precisamos anunciar novas ondas de mobilização militar; nós precisamos colocar todo mundo que é capaz de trabalhar para aumentar a produção de munição. A Rússia precisa viver como a Coreia do norte por alguns anos, no sentido de fronteiras fechadas e trabalho duro. 

O líder paramilitar também aproveitou a entrevista para alfinetar integrantes da alta cúpula do poder militar russo, como o Ministro da Defesa, Serguei Shoigu — com quem discutiu publicamente outras vezes durante a guerra, pedindo mais apoio e munição a suas tropas. 

De acordo com Prigojin, a elite russa continua a esbanjar um padrão de vida muito acima dos cidadãos comuns, que estão sendo diretamente afetados pela guerra e pelas sanções impostas à Rússia. 

— Os filhos da elite fecham ficam calados na melhor das hipóteses, e alguns se permitem uma vida pública, farta e despreocupada. Esta divisão pode terminar como em 1917, com uma revolução, quando primeiro os soldados se levantarem e depois seus entes queridos o seguirem. 

Perdas no campo de batalha 

O líder do grupo mercenário também afirmou que a conquista de Bakhmut cobrou um preço alto em vidas, causando uma baixa de aproximadamente 20 mil homens em suas tropas. Segundo Prigojin, cerca de 10 mil dos prisioneiros recrutados nas prisões russas morreram na linha de frente, enquanto uma proporção semelhante de combatentes profissionais também tombou. 

— Selecionei 50 mil detentos, dos quais 20% morreram — disse Prigozhin na entrevista, que teve mais de uma hora de duração. 

Apesar disso, garantiu, o número de baixas no grupo Wagner foi inferior às registradas no lado ucraniano: — Tenho três vezes menos mortos (...) e cerca de duas vezes menos feridos — disse.