Reflexões sobre uma grande fissura diplomática
Existe uma visão do mundo, que abrange, incorpora e domina atualmente a diplomacia brasileira, que se funda sobre uma divisão radical e uma ruptura incontornável entre, de um lado, os interesses do chamado Norte Global (inexistente, mas que se considera ser representado pelos velhos colonialistas europeus e pelo hegemon universal desde meados do século XX), sempre imperialistas e opressores, e, de outro lado, os interesses do chamado Sul Global (antigamente chamado de Terceiro Mundo, ou países em desenvolvimento, antes subdesenvolvidos e dominados colonialmente pelos primeiros). Não se sabe exatamente quem representa esse Sul Global, mas Brasil, Índia e alguns outros Estados ex-colônias reivindicam tal liderança.
Segundo essa visão, há uma absoluta necessidade, dada a arrogância do Norte Global, de uma "nova ordem mundial" e de um "novo sistema financeiro internacional", obviamente não baseados na dominação do Sul Global pelos países do Norte, e de sabor distintamente antiocidental, pois que recusando o dólar nos intercâmbios comerciais e financeiros e promovendo moedas locais ou uma moeda comum de países afins (como os Brics, ou os do Mercosul, por exemplo).
A isso se dá, curiosamente, o nome de "democratização das relações internacionais", ou, no plano instrumental, uma indefinida "multipolaridade". Também se reclama a reforma da Carta da ONU e a ampliação do seu Conselho de Segurança, para acomodar as pretensões dessas novas potências emergentes.
Curiosamente, esses projetos, ruidosamente saudados e apoiados em certas esferas, são liderados explicitamente pelas duas grandes autocracias remanescentes das grandes potências socialistas da era da Guerra Fria. Não há como recusar a orientação claramente antiliberal e antidemocráticas dessas duas grandes potências, uma economicamente ou apenas militarmente.
Mais estranho ainda não existe, nessa nova "ordem global", nenhuma referência a democracia, liberdades individuais ou defesa dos direitos humanos, que são, supostamente, valores e princípios tradicionais da diplomacia brasileira, ademais de todas aquelas cláusulas de relações internacionais que estão inscritas no Art. 4 da Constituição de 1988, muito coincidentes com os grandes princípios da Carta das Nações Unidos e de vários tratados internacionais baseados nos direitos e garantias fundamentais de um Estado de Direito e de acordo a normas elementares do Direito Internacional.
O Brasil é uma antiga dependência colonial que se desenvolveu lentamente ao abrigo da ordem econômica liberal da belle époque, depois no contexto da ordem econômica mundial de Bretton Woods, ainda hoje dominante, a despeito de crises e reformas.
A adesão da atual diplomacia brasileira a essas duas autocracias, ainda que a pretexto de "neutralidade", pode incorporar o Brasil a uma nova, mais do que possível, Segunda Guerra Fria, desta vez mais de caráter econômica e tecnológica do que a pretexto de recusar a ordem capitalista e substitui-la por um "modo de produção socialista".
Não tenho certeza de que essa "ordem alternativa" esteja conforme aos interesses materiais do Brasil, e certamente não estaria de acordo a nossos princípios e valores democráticos, de defesa das liberdades individuais e dos direitos humanos.
Temo a deformação, mais uma vez, da diplomacia brasileira num sentido nitidamente antiocidental (como se esse mundo fosse contrário aos interesses nacionais) e em favor de ditadura explícitas ou disfarçadas.
Seria essa a tendência? Desde já manifesto minha inconformidade, sobretudo porque se atribui a guerra de agressão da Rússia à Ucrânia a um suposto "cerco da Otan" à Rússia, desprezando totalmente a vontade soberana de ex-países dominados pelos impérios russo e soviético, que simplesmente buscavam garantias no Ocidente (UE e Otan, justamente) contra o abraço do urso russo, muito conhecido na história trágica de todos esses países nos últimos dois séculos.
Deixo aqui estas minhas reflexões sobre o momento diplomático do Brasil atual.
BH, 25/05/2023
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