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quarta-feira, 30 de agosto de 2023

O espelho de OJESED e o cálice de cicuta - Dartagnan da Silva Zanela

 Li, gostei, resolvi transcrever, sem endossar necessariamente todos os argumentos, mas apreciando muito a maioria das afirmações do escritor, a quem não conheço, mas sei reconhecer as virtudes e qualidades de suas reflexões e escrita.

Paulo Roberto de Almeida

O ESPELHO DE OJESED E O CÁLICE DE CICUTA


por Dartagnan da Silva Zanela (*)


Sermos capazes de olhar para o nosso passado e sentirmos que fracassamos é um claro indicador de que não despirocamos de vez. Aliás, como certa feita havia sido dito pelo filósofo Leszek Kolakowski, quem nunca experimentou a sensação de ser um charlatão, no fundo, não passa de uma alma superficial, indigna de atenção.

 

Se nós nunca tivemos essa sensação, pode ter certeza de que há algo de muito errado conosco. Muito errado mesmo. Agora, se porventura, nós já sentimos nossa garganta ficar apertada por conta desse tipo de impressão, há um detalhe que merece nossa atenção. No caso, é a nossa inenarrável capacidade para justificar os nossos erros e fracassos, o nosso grande potencial para nos autoenganarmos.

 

Quando a nossa consciência pesa e nos acusa, mais do que depressa realizamos o movimento de nos colocarmos na defensiva, argumentando contra os apontamentos feitos por ela, justificando de mil e uma maneiras nossos erros diante dela. E, desta forma, sem nos darmos conta, acabamos por advogar contra nós mesmos.

 

Sim, eu sei, até as pedras sabem, que atualmente todo mundo bate no peito pra dizer o quanto se considera uma pessoa crítica, terrivelmente crítica, porém, se formos sinceros conosco mesmo, no prazo de duas cervejas iremos constatar que toda essa conversa de criticidade, patriotismo e tutti quanti, não passa de “bafo-de-boca”, como diria Paulo Francis.

 

“Bafo-de-boca” sim senhor, porque se nós nos consideramos críticos, mas não somos capazes de realizar uma franca e inclemente autocrítica, se não estamos abertos para ouvir as mais impiedosas e duras críticas, para vermos se aproveitamos algo do que nos foi apontado pelas línguas maldizentes, sinto em dizer, mas nós não somos críticos patavina nenhuma.

 

E não o somos não porque supostamente sejamos esquerdistas, direitistas ou o caramba a quatro, mas sim, porque não somos sinceros, não somos honestos com relação àquilo que fazemos e, muito menos, frente àquilo que dizemos acreditar.

 

Sim, é um Deus que nos acuda e Ele não vai acudir ninguém não. Na real, acho que Ele se diverte pra caramba com essas nossas firulas e dissimulações.

 

Sobre esse ponto, José Ortega y Gasset, de forma muito direta e clara, nos lembra do óbvio gritante, quando nos diz que o que define o sujeito não são suas palavras, mas sim, as suas ações. Na verdade, o Batman (Christian Bale) havia dito algo parecido para Rachel Dawes (Katie Holmes), em uma cena espetacular do filme “Batman Begins” (2005).

 

Enfim, não importa tanto qual seja a fonte desse dito. O que realmente interessa é que definitivamente somos aquilo que fazemos, não aquilo que dizemos ser, ou que imaginamos que somos. Não tem lesco-lesco.

 

Por exemplo: da mesma forma que um estudante que não estuda, não é um estudante, mas sim, outra coisa; pais que não amam e não educam os seus filhos, podem até ser genitores, mas não são pais que zelam pela integridade de sua família. Eles, também, são outra coisa.

 

Parêntese. Bem, verdade seja dita: é possível que uma pessoa de tanto fingir ser detentora de alguma virtude acabe, com o tempo, tornando-se portadora dela, mas, infelizmente, o que mais acontece nesse nosso triste país é vermos pessoas contentando-se apenas e tão somente com o fingimento. Fecha o parêntese.

 

Indo direto aos finalmente, todos nós cultivamos uma imagem a respeito de nós mesmos, imagem essa que gostamos de apresentar aos nossos semelhantes, sejam eles nossos conhecidos ou não. E, fazemos isso, porque, em alguma medida, acreditamos que essa imagem seria o retrato fidedigno de nós mesmos e, tal atitude, acaba por paralisar toda a dinâmica, todo o poder realizador da nossa alma.

 

Podemos dizer que, diante da autoimagem farsesca que fazemos de nós mesmos, ocorre conosco algo similar ao que acontece com as personagens das aventuras de Harry Potter, quando ficavam diante do “Espelho de OJESED” que, segundo a explicação dada por Dumbledore, nos mostra o mais profundo e desesperado desejo que habita em nosso coração.

 

Pois é. E é aí que a porca torce o rabo, e torce feio, porque o tal espelho, segundo as palavras de Dumbledore: “não nos dá nem o conhecimento nem a verdade. Já houveram homens que definharam diante dele, fascinados pelo que viram, ou enlouqueceram sem saber se o que o espelho mostrava era real ou sequer possível”.

 

Bem, se nossa alma estiver perfeitamente ordenada, o “Espelho de OJESED” não irá refletir nada além daquilo que nós somos. Agora, se nossa alma estiver desordenada – e ela sempre está, em alguma medida, desordenada - o bicho pega, porque o espelho irá nos mostrar tudo aquilo que gostaríamos de ser, mas que não o somos, paralisando-nos diante do reflexo apresentado, matando o que há de potencialmente mais elevado em nós.

 

E é mais ou menos desse jeito que acabamos vivendo quando sobrepomos uma autoimagem superficial à nossa consciência, confundindo autoconhecimento com autoproteção. É nisso que nos tornamos quando não experimentamos, de vez enquanto, a sensação de sermos um charlatão, porque é essa sensação que nos ajuda a lembrar que há muito mais entre o céu, a terra e em nosso coração, do que presume nossa vã disposição para nos autoenganar e, consequentemente, acabar vivendo uma vida que poderia ter sido, mas naufragou.


(*) professor, escrevinhador e bebedor de café. Mestre em Ciências Sociais Aplicadas. Autor de “A Bacia de Pilatos”, entre outros livros.

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quinta-feira, 25 de maio de 2023

Reflexões sobre uma grande fissura diplomática - Paulo Roberto de Almeida

 Reflexões sobre uma grande fissura diplomática


Paulo Roberto de Almeida


Existe uma visão do mundo, que abrange, incorpora e domina atualmente a diplomacia brasileira, que se funda sobre uma divisão radical e uma ruptura incontornável entre, de um lado, os interesses do chamado Norte Global (inexistente, mas que se considera ser representado pelos velhos colonialistas europeus e pelo hegemon universal desde meados do século XX), sempre imperialistas e opressores, e, de outro lado, os interesses do chamado Sul Global (antigamente chamado de Terceiro Mundo, ou países em desenvolvimento, antes subdesenvolvidos e dominados colonialmente pelos primeiros). Não se sabe exatamente quem representa esse Sul Global, mas Brasil, Índia e alguns outros Estados ex-colônias reivindicam tal liderança.
Segundo essa visão, há uma absoluta necessidade, dada a arrogância do Norte Global, de uma "nova ordem mundial" e de um "novo sistema financeiro internacional", obviamente não baseados na dominação do Sul Global pelos países do Norte, e de sabor distintamente antiocidental, pois que recusando o dólar nos intercâmbios comerciais e financeiros e promovendo moedas locais ou uma moeda comum de países afins (como os Brics, ou os do Mercosul, por exemplo). 
A isso se dá, curiosamente, o nome de "democratização das relações internacionais", ou, no plano instrumental, uma indefinida "multipolaridade". Também se reclama a reforma da Carta da ONU e a ampliação do seu Conselho de Segurança, para acomodar as pretensões dessas novas potências emergentes.
Curiosamente, esses projetos, ruidosamente saudados e apoiados em certas esferas, são liderados explicitamente pelas duas grandes autocracias remanescentes das grandes potências socialistas da era da Guerra Fria. Não há como recusar a orientação claramente antiliberal e antidemocráticas dessas duas grandes potências, uma economicamente ou apenas militarmente.
Mais estranho ainda não existe, nessa nova "ordem global", nenhuma referência a democracia, liberdades individuais ou defesa dos direitos humanos, que são, supostamente, valores e princípios tradicionais da diplomacia brasileira, ademais de todas aquelas cláusulas de relações internacionais que estão inscritas no Art. 4 da Constituição de 1988, muito coincidentes com os grandes princípios da Carta das Nações Unidos e de vários tratados internacionais baseados nos direitos e garantias fundamentais de um Estado de Direito e de acordo a normas elementares do Direito Internacional. 
O Brasil é uma antiga dependência colonial que se desenvolveu lentamente ao abrigo da ordem econômica liberal da belle époque, depois no contexto da ordem econômica mundial de Bretton Woods, ainda hoje dominante, a despeito de crises e reformas.
A adesão da atual diplomacia brasileira a essas duas autocracias, ainda que a pretexto de "neutralidade", pode incorporar o Brasil a uma nova, mais do que possível, Segunda Guerra Fria, desta vez mais de caráter econômica e tecnológica do que a pretexto de recusar a ordem capitalista e substitui-la por um "modo de produção socialista". 
Não tenho certeza de que essa "ordem alternativa" esteja conforme aos interesses materiais do Brasil, e certamente não estaria de acordo a nossos princípios e valores democráticos, de defesa das liberdades individuais e dos direitos humanos.
Temo a deformação, mais uma vez, da diplomacia brasileira num sentido nitidamente antiocidental (como se esse mundo fosse contrário aos interesses nacionais) e em favor de ditadura explícitas ou disfarçadas.
Seria essa a tendência? Desde já manifesto minha inconformidade, sobretudo porque se atribui a guerra de agressão da Rússia à Ucrânia a um suposto "cerco da Otan" à Rússia, desprezando totalmente a vontade soberana de ex-países dominados pelos impérios russo e soviético, que simplesmente buscavam garantias no Ocidente (UE e Otan, justamente) contra o abraço do urso russo, muito conhecido na história trágica de todos esses países nos últimos dois séculos.
Deixo aqui estas minhas reflexões sobre o momento diplomático do Brasil atual.

Paulo Roberto de Almeida
BH, 25/05/2023

domingo, 7 de março de 2021

Índia: reflexões sobre a situação das mulheres - Paulo Antônio Pereira Pinto

 ÍNDIA – REFLEXÕES SOBRE A SITUAÇÃO DAS MULHERES

Paulo Antônio Pereira Pinto


“Uma Passagem para a Índia era livro considerado, na década de 1920, leitura obrigatória, para quem procurasse entender os exotismos indianos. Na obra, E.M. Foster descreve sua experiência, no início do século passado, com o desencontro entre dois mundos distintos: o dos ocupantes ingleses e o dos nativos da colônia.

Tratava-se, no século passado, de ressaltar “hábitos exóticos” de culturas antigas (pois a Índia é um espaço político, onde várias delas buscam conviver em paz), em comparação com as “normas civilizadas” britânicas.

Noticiário atual sobre aquele país, no entanto, costuma relatar tragédias que afetam, de forma bárbara, mulheres indianas. 

Efetuo, a seguir, reflexões sobre duas das inúmerascondicionantes que ora influenciam a situação das mulheres na Índia. Inicialmente, trato da necessidade de projetar no exterior imagem mais favorável do tratamentoque lhes deve ser concedido, em sociedade que visa aaparecer como em fase de modernizaçãoEm seguida,recorrendo à rica mitologia indiana, registro o papel reservado às mulheres em uma das mais conhecidas de suas lendas, o Ramayana.

A emergência econômico-política em curso da Índiatem sido analisada principalmente na perspectiva de suacrescente inserção internacional, bem como a partir da cobiça quanto ao acesso de centenas de milhões de seus potenciais consumidores à oferta de produtos e serviços estrangeiros. 

Esquecido fica entre outras condicionantes, no plano interno, que este processo de crescimento recente tornanecessário lidar com a visão de prosperidade, até então restrita apenas a reduzido grupo de dirigentes tradicionais. É necessário também levar em conta a crescente participação feminina na produção de riquezas. Como decorrência da maior exposição das mulheres em atividades antes restritas aos homens, fica evidente a carência de sua proteção na sociedade.  

Prosperidade”, naquele país, parece ter adquiridoforça de uma “cultura própria”. Isto é, a Índia tem que lidar com a evolução, da cultura da pobreza e da escassez -conforme ditam muitas de suas crenças religiosas - para a idolatria da abundância.  

Receia-se, a propósito, que o dinheiro se torne o valor supremo e o consumismo a moralidade final. Sinais de alarme surgem, quando o crescente individualismo aumenta, enquanto a Índia tem sido considerada uma sociedade baseada no coletivismo. 

Em compensaçãoo processo de crescimento acelerado indiano resulta em crescente urbanização, acelerado ritmo de vida, ruptura da estrutura familiar e, entre outros aspectos favoráveis, na mudança no papel das mulheres na economia.

Do ponto-de-vista econômico, cabe reconhecer que o país conta, ainda, com 260 milhões de pobres, vivendo com o equivalente a menos de US 1 por dia. Metade das crianças morrem antes dos cinco anos. A infra-estruturalamentável e o ensino deficiente, mesmo considerando os centros de excelência existentes, inclusive na área de medicina, com a fabricação de vacinas, não facilitam a inclusão da população rural no processo de crescimento tão alardeado nas áreas urbanas.

Em Mumbai, a maior cidade, centro financeiro e comercial, onde residem cerca de 17 milhões de pessoas, estima-se que a metade viva em favelas ou nas ruas.

É necessário, portanto, definir de que Índia se fala, quando são feitas projeções de uma potência emergente. Os filmes produzidos em Bollywood não podem ser considerados como representativos do país. São um espetáculo. A riqueza dos casamentos exibidos nas películas e a alegria de suas danças não refletem a realidade da população. O que está sendo projetado no exterior é uma caricatura.

Existem, no entanto, pontos da realidade indiana atual, que fogem do contexto dos enredos filmados. . O primeiro é sobre as características gerais do cinema indiano. O segundo diz respeito a tendência recente, nesta cidade, de reverter avanços sociais obtidos desde que o nome Bombaim foi substituído por Mumbai.

Assim, cabe lembrar que o filme indiano típico é uma mistura de coreografia sensual – o que agrada à plateia masculina – e um final sempre conservador – que condiz com a expectativa das esposas e mães. Isto é, Bollywood é capaz de, em suas películas, exibir parte de ou sugerir “formas femininas”, enquanto conclui desaprovando qualquer exposição do corpo da mulher.

As audiências, na Índia, esperam que as atrizes sejam, ao mesmo tempo, sensuais e conservadoras. Quando uma delas casa – na vida real - espera-se que deixe a carreira. Quase sempre acontece assim. Em poucos casos, como o de Jaya Bachchan, retornam após o casamento para desempenhar o papel de matronas, do tipo de sogras sisudas, mas bondosas. 

Os personagens principais do cinema indiano são mais manequins de desfile, do que atores com grandes talentos dramáticos. Espera-se, portanto, que sejam, acima de tudo, muito bonitos. Em segundo lugar, devem saber dançar. Quanto às atrizes, cabe saberem conduzir com sedução, mas dentro dos limites pudicos locais, as cenas em que aparecem – invariavelmente – com o sári molhado, sobre o corpo.

Se forem capazes de atuar de forma razoável, melhor ainda – mas não é uma prioridade. O principal é provocar o imaginário popular, com cenas de riqueza, casamentos opulentos, sugestões de erotismo, sem que nada tenha a ver com a realidade da vida no país.

Logo após a independência da Índia, sua indústria cinematográfica, então no início, produziu documentários que fortaleciam o sonho da consolidação da liberdade política, do desenvolvimento econômico e da modernização. Os filmes, com frequência, tinham como cenário áreas rurais e apresentavam heróis que combatiam contra os males herdados do sistema colonial e do feudalismo.

Mais recentemente, as produções de Bollywoodpassaram a ser gravadas no exterior, sendo a Suiça um destino preferido, pelo fato de suas montanhas geladas sugerirem cenários indianos, como a Kashimira – onde, devido a situação de conflito com o Paquistão, não é possível efetuar filmagens. Como consequência, o fluxo de turistas da Índia para aquele país aumentou sensivelmente. Cingapura, Nova Zelândia, Reino Unido, África do Sul e Austrália, entre outros disputam a preferência dos produtores locais, com vistas a atrair a vinda de equipes de filmagem e a consequente divulgação de suas belezas a atrações turísticas.

Na prática, Bollywood, hoje atende à demanda de uma crescente classe média urbana representativa da maior cidade indiana que, a partir de 1996, deixou de ser chamada de Bombaim e adotou – por razões nacionalistas – o nome Mumbai.

Bombaim era, justamente, o símbolo do sonho de progresso individual, da ruptura com o rígido sistema social tradicional indiano. Aqui, predominava enorme tolerância, quanto à presença de imigrantes de outras partes do país, bem como à diversidade cultural. Praticava-se uma saudável convivência, entre comportamentos modernos – como a emancipação feminina e a diluição das castas – e a preservação de tradições – como as celebrações anuais do festival do Ganesha (deus hindu), do Ramadam (muçulmano) e de festas religiosas diversas.

Nos últimos anos, contudo, Mumbai torna-se, cada vez mais, apenas a capital do Estado de Maharashtra – perdendo os ideais típicos de Bombaim. Isto se reflete, entre outros aspectos, em crescente intolerância contra o que alguns “líderes conservadores” definem como agressão à cultura indiana.

Menciono, a propósito, experiência vivida, durante meu período como Cônsul-Geral naquela cidade, quando se comemorou, de acordo com calendário ocidental, o Dia dos Namorados (“Valentine’s Day”)Mumbai passou, então, a ser palco de declarações contra o que poderia ser identificado como “terrorismo afetivo”, pelos referidos auto- proclamados “guardiões das tradições nacionais”.

De acordo, por exemplo, comum certo “líder conservador” Sri Ram Sene, caberia exigir que as mulheres indianas usem apenas sáris, não frequentem bares, não comemorem o Dia dos Namorados e não beijem em público. Houve ameaças de agressões físicas àquelas que contrariassem tais sentenças talibãs e de queima de lojas que vendessem cartões comemorativos da data.

Como reação, formou-se o consórcio das “PubgoingLoose and Forward Women” (Mulheres que frequentam bares e adotam comportamento liberal) que se dispuserama enviar calcinhas cor de rosa para o referido líder conservador, no “Valentine’s Day”.

Desenvolveu-se, então, curioso debate, tendo, por um lado o novo símbolo das calcinhas rosas, como protestos contra ações com forte coloração contrária à emancipação feminina. Por outro, o sári – parece que, de preferência, de outra cor – permanece sendo o símbolo da feminilidade indiana.

No dia 14 de fevereiro de 2009, a “polícia ideológica” (alguns integrantes envergavam seus uniformes de policiais) espancou casais, por simplesmente estarem juntos. Assim, houve caso em que um irmão e uma irmã foram agredidos, por engano. Rapazes e moças, por estarem próximos, foram obrigados a “casar” – ou trocaram votos matrimoniais. 

Em contrapartida, na mesma data, houve vendas recordes de cartões do Dia do Namorados. O rosa tornou-se extremamente popular, inclusive para preservativos. Jovens desafiaram os que querem ditar-lhes normas de conduta ditas “culturais” e celebraram, publicamente, seu afeto mútuo.

Enquanto isso, continua sendo politicamente correto homens andarem de mãos dadas ou intimamente abraçados - parece que como forma tradicional de demonstrar amizade masculina.

 

O Papel da Mulher Indiana na Política, de acordo com a Mitologia

 

Na Índia, a cada mês de novembro, comemora-se o Diwali, uma espécie de Natal hinduísta. Durante cinco dias, portanto, é marcado na Índia o “festival das luzes”.

Em Mumbai, o principal motivo de comemoração é a lenda sobre o retorno de Lord Rama ao Reino de Ayodhya, com sua esposa Sita e seu irmão Lakshmana, após a vitórasobre o “Rei Demônio Ravana”, de dez cabeças, há cerca de três mil anos.  

Ramayana, que narra a saga de Rama, é um dos textos mais antigos da Índia e, tendo sido escrito há mais de três mil anos, permanece imensamente popular. Tem fascinado inúmeras gerações (encarnações) indianas. Não resta dúvida, quanto ao mérito literário da obra, que justifica, em parte, sua sobrevivência. 

Da mesma forma que em outras epopéias, o foco é uma sequência de incidentes na vida do herói da narrativa: Rama. Existe, no texto, ademais, enorme riqueza de personalidades e eventos, bem como fantasias do tipo de carruagens que voam, macacos, aves e outros animais que falam, dramas como o sequestro da esposa de Rama, Sita, e o fato de o Rei ter que determinar o exílio de seu filho querido.

Acima de tudo, o Ramayana representa a celebração de emoções e ideais. Assim, ressalta-se o profundo amor filial de Rama, a devoção de sua esposa a ele, a aliança incondicional de seu irmão Lakshmana. Tais sentimentos fortes têm afetado os leitores, através dos sucessivos momentos de turbulência e incertezas que afetaram a longa história da Índia.

Em resumo, o enredo do poema desenvolve-se em período durante o qual, dois poderosos reinos, o dos Kosalas e o dos Videhas, predominavam no Norte da Índia, entre os séculos XII e X A.C. Segundo a narrativa, o Rei Dasaratha, dos Kosalas, tinha quatro filhos – com diferentes esposas – o mais velho dos quais, Rama, é o herói da história. De sua parte, o Rei Janak, dos Videhas, tinha uma filha, Sita, que se torna a heroína da trama.

Então, o Rei Janak, para escolher entre os pretendentes à mão de sua bela filha Sita, determinou que apenas aquele capaz de empunhar um arco cravado no chão seria o eleito. Como esperado, o heróico Rama realizou a proeza e, portanto, casou com Sita. Nada sendo perfeito, grande intriga foi urdida por uma das esposas do Rei Dasaratha – pai de Rama – obrigando o monarca a coroar, como seu sucessor, não o filho mais velho – Rama – mas um de seus irmãos mais moços – Bharata .

Ademais, a referida Sra. obteve a promessa real de que Rama seria enviado ao exílio, durante quatorze anos. Obediente à ordem paterna – como deve ser um bom hinduísta, destinado a servir de exemplo de subserviência filial por milênios do porvir – nosso herói partiu para a floresta, acompanhado por Sita e pelo irmão Lakshmana

No capítulo seguinte, o Rei Dasharatha – pai de Rama – falece, arrependido de ter tratado seu primogênito daquela forma, e o trono deve passar para o filho Bharata, que reconhece sua incompetência para administrar os assuntos de Estado e resolve apelar para que Rama assuma todos aqueles problemas. Este – no espírito de preservar a obediência ao desejo paterno, já assinalado acima, sem saber do arrependimento final do pai – recusa, afirmando que iria cumprir a tal punição de quatorze anos. Bharata, então, decide levar consigo as sandálias de Rama, como símbolo de respeito ao irmão mais velho. 

Começa, então, uma alegoria digna a fazer inveja aos desfiles de Escolas de Samba no Rio de Janeiro. Entra em cena uma tribo de demônios, que se relacionam com um Rei de dez cabeças, Ravana, desfilam uma ave e um veado que falam. Sita é sequestrada. Torna-se, então, como mencionado no início desta coluna, símbolo da fidelidade e devoção que uma esposa indiana deve ter, como exemplo para as gerações (encarnações) futuras.

Felizmente, entra em cena um reino de macacos falantes, que ajudam Rama a resgatar Sita. Nesse processo teria sido criada a controvertida ponte de rochas que liga a Índia ao atual Sri Lanka, objeto atual de discórdia política. A apoteose ocorre com combate final, entre Rama e Ravana, que, cada vez que tinha uma cabeça cortada, lhe nascia uma outra, até que nosso herói descobre um ponto vital, no pescoço do monstro e lhe atinge com uma flecha. Assim encerrada a tragédia, Rama e Sita retornam ao Reino de Ayodhya.

Então, em função, principalmente, deste retorno triunfal, é celebrado em Mumbai, e outras cidades indianas, o “Festival das Luzes” ou  Diwali. Neste contexto, são louvadas virtudes de devoção familiar (dharma)  submissão ao destino (kharma). 

Para os críticos da devoção a Rama, fica o argumento de que todo o sistema de castas indianas seria justificado pela narrativa. Isto porque, a legitimação do poder monárquico, enquanto prevaleceu como forma de governança na Índia, teria sido a principal função do Ramayana. Assim, quando Rama retorna à capital de seu reino, prontamente retoma a forma absolutista de governar.

Segundo, a propósito, a concepção histórica do Estado indiano – em análise reconhecidamente simplificada - o reinado não tem origem divina, de “mandato celestial”, como na China antiga. Pelo contrário, o Estado era uma demonstração e reflexo de poder pessoal do próprio rei – isto é, uma personalidade forte capaz de unificar regiões díspares, de forma tirânica, sempre sob a ameaça de desintegração. Tudo o que era exigido era uma determinação de talento superior, capaz de manter o indivíduo no poder.

Em contrapartida, o Imperador chinês, por exemplo, foi, durante séculos, reverenciado como o “Filho do Céu”(tíen-tse) e era suposto personificar os princípios da realeza, através de rituais religiosos. Tratava-se do mediador entre o céu e a terra. Caso houvesse derrota, fome ou catástrofes, e ele mesmo fosse derrubado, isto seria atribuído à perda do Mandato Celestial, decorrente de alguma deficiência pessoal. O usurpador do poder, então, a seu turno, passaria a reivindicar tal mandato, a ser herdado por sua nova dinastia.

Os Reis Hindus não contavam com tal mandato. Apenas uma deusa, de menor estatura, Sri Lakshmi, era tida como protetora do sucesso e continuação do poder. Ela escolheria seu protegido e, temporariamente, reencarnaria em sua pessoa. Fosse este derrotado, ela, chorosa, passaria a proteger o novo vencedor. Sri Laksminada tinha a ver com a virtude. Apenas com a política e a evolução cíclica dos tempos. A filosofia dos reis e poderosos, na Índia, portanto, era fatalista, cética e realista.

No Dia da Mulher, cabe concluir clamando que, na Índia, a Lei Maria da Penha peça passagem.