ÍNDIA – REFLEXÕES SOBRE A SITUAÇÃO DAS MULHERES
Paulo Antônio Pereira Pinto
“Uma Passagem para a Índia” era livro considerado, na década de 1920, leitura obrigatória, para quem procurasse entender os exotismos indianos. Na obra, E.M. Foster descreve sua experiência, no início do século passado, com o desencontro entre dois mundos distintos: o dos ocupantes ingleses e o dos nativos da colônia.
Tratava-se, no século passado, de ressaltar “hábitos exóticos” de culturas antigas (pois a Índia é um espaço político, onde várias delas buscam conviver em paz), em comparação com as “normas civilizadas” britânicas.
Noticiário atual sobre aquele país, no entanto, costuma relatar tragédias que afetam, de forma bárbara, mulheres indianas.
Efetuo, a seguir, reflexões sobre duas das inúmerascondicionantes que ora influenciam a situação das mulheres na Índia. Inicialmente, trato da necessidade de projetar no exterior imagem mais favorável do tratamentoque lhes deve ser concedido, em sociedade que visa aaparecer como em fase de modernização. Em seguida,recorrendo à rica mitologia indiana, registro o papel reservado às mulheres em uma das mais conhecidas de suas lendas, o Ramayana.
A emergência econômico-política em curso da Índiatem sido analisada principalmente na perspectiva de suacrescente inserção internacional, bem como a partir da cobiça quanto ao acesso de centenas de milhões de seus potenciais consumidores à oferta de produtos e serviços estrangeiros.
Esquecido fica entre outras condicionantes, no plano interno, que este processo de crescimento recente tornanecessário lidar com a visão de prosperidade, até então restrita apenas a reduzido grupo de dirigentes tradicionais. É necessário também levar em conta a crescente participação feminina na produção de riquezas. Como decorrência da maior exposição das mulheres em atividades antes restritas aos homens, fica evidente a carência de sua proteção na sociedade.
“Prosperidade”, naquele país, parece ter adquiridoforça de uma “cultura própria”. Isto é, a Índia tem que lidar com a evolução, da cultura da pobreza e da escassez -conforme ditam muitas de suas crenças religiosas - para a idolatria da abundância.
Receia-se, a propósito, que o dinheiro se torne o valor supremo e o consumismo a moralidade final. Sinais de alarme surgem, quando o crescente individualismo aumenta, enquanto a Índia tem sido considerada uma sociedade baseada no coletivismo.
Em compensação, o processo de crescimento acelerado indiano resulta em crescente urbanização, acelerado ritmo de vida, ruptura da estrutura familiar e, entre outros aspectos favoráveis, na mudança no papel das mulheres na economia.
Do ponto-de-vista econômico, cabe reconhecer que o país conta, ainda, com 260 milhões de pobres, vivendo com o equivalente a menos de US 1 por dia. Metade das crianças morrem antes dos cinco anos. A infra-estruturalamentável e o ensino deficiente, mesmo considerando os centros de excelência existentes, inclusive na área de medicina, com a fabricação de vacinas, não facilitam a inclusão da população rural no processo de crescimento tão alardeado nas áreas urbanas.
Em Mumbai, a maior cidade, centro financeiro e comercial, onde residem cerca de 17 milhões de pessoas, estima-se que a metade viva em favelas ou nas ruas.
É necessário, portanto, definir de que Índia se fala, quando são feitas projeções de uma potência emergente. Os filmes produzidos em Bollywood não podem ser considerados como representativos do país. São um espetáculo. A riqueza dos casamentos exibidos nas películas e a alegria de suas danças não refletem a realidade da população. O que está sendo projetado no exterior é uma caricatura.
Existem, no entanto, pontos da realidade indiana atual, que fogem do contexto dos enredos filmados. . O primeiro é sobre as características gerais do cinema indiano. O segundo diz respeito a tendência recente, nesta cidade, de reverter avanços sociais obtidos desde que o nome Bombaim foi substituído por Mumbai.
Assim, cabe lembrar que o filme indiano típico é uma mistura de coreografia sensual – o que agrada à plateia masculina – e um final sempre conservador – que condiz com a expectativa das esposas e mães. Isto é, Bollywood é capaz de, em suas películas, exibir parte de ou sugerir “formas femininas”, enquanto conclui desaprovando qualquer exposição do corpo da mulher.
As audiências, na Índia, esperam que as atrizes sejam, ao mesmo tempo, sensuais e conservadoras. Quando uma delas casa – na vida real - espera-se que deixe a carreira. Quase sempre acontece assim. Em poucos casos, como o de Jaya Bachchan, retornam após o casamento para desempenhar o papel de matronas, do tipo de sogras sisudas, mas bondosas.
Os personagens principais do cinema indiano são mais manequins de desfile, do que atores com grandes talentos dramáticos. Espera-se, portanto, que sejam, acima de tudo, muito bonitos. Em segundo lugar, devem saber dançar. Quanto às atrizes, cabe saberem conduzir com sedução, mas dentro dos limites pudicos locais, as cenas em que aparecem – invariavelmente – com o sári molhado, sobre o corpo.
Se forem capazes de atuar de forma razoável, melhor ainda – mas não é uma prioridade. O principal é provocar o imaginário popular, com cenas de riqueza, casamentos opulentos, sugestões de erotismo, sem que nada tenha a ver com a realidade da vida no país.
Logo após a independência da Índia, sua indústria cinematográfica, então no início, produziu documentários que fortaleciam o sonho da consolidação da liberdade política, do desenvolvimento econômico e da modernização. Os filmes, com frequência, tinham como cenário áreas rurais e apresentavam heróis que combatiam contra os males herdados do sistema colonial e do feudalismo.
Mais recentemente, as produções de Bollywoodpassaram a ser gravadas no exterior, sendo a Suiça um destino preferido, pelo fato de suas montanhas geladas sugerirem cenários indianos, como a Kashimira – onde, devido a situação de conflito com o Paquistão, não é possível efetuar filmagens. Como consequência, o fluxo de turistas da Índia para aquele país aumentou sensivelmente. Cingapura, Nova Zelândia, Reino Unido, África do Sul e Austrália, entre outros disputam a preferência dos produtores locais, com vistas a atrair a vinda de equipes de filmagem e a consequente divulgação de suas belezas a atrações turísticas.
Na prática, Bollywood, hoje atende à demanda de uma crescente classe média urbana representativa da maior cidade indiana que, a partir de 1996, deixou de ser chamada de Bombaim e adotou – por razões nacionalistas – o nome Mumbai.
Bombaim era, justamente, o símbolo do sonho de progresso individual, da ruptura com o rígido sistema social tradicional indiano. Aqui, predominava enorme tolerância, quanto à presença de imigrantes de outras partes do país, bem como à diversidade cultural. Praticava-se uma saudável convivência, entre comportamentos modernos – como a emancipação feminina e a diluição das castas – e a preservação de tradições – como as celebrações anuais do festival do Ganesha (deus hindu), do Ramadam (muçulmano) e de festas religiosas diversas.
Nos últimos anos, contudo, Mumbai torna-se, cada vez mais, apenas a capital do Estado de Maharashtra – perdendo os ideais típicos de Bombaim. Isto se reflete, entre outros aspectos, em crescente intolerância contra o que alguns “líderes conservadores” definem como agressão à cultura indiana.
Menciono, a propósito, experiência vivida, durante meu período como Cônsul-Geral naquela cidade, quando se comemorou, de acordo com calendário ocidental, o Dia dos Namorados (“Valentine’s Day”). Mumbai passou, então, a ser palco de declarações contra o que poderia ser identificado como “terrorismo afetivo”, pelos referidos auto- proclamados “guardiões das tradições nacionais”.
De acordo, por exemplo, comum certo “líder conservador” Sri Ram Sene, caberia exigir que as mulheres indianas usem apenas sáris, não frequentem bares, não comemorem o Dia dos Namorados e não beijem em público. Houve ameaças de agressões físicas àquelas que contrariassem tais sentenças talibãs e de queima de lojas que vendessem cartões comemorativos da data.
Como reação, formou-se o consórcio das “Pubgoing, Loose and Forward Women” (Mulheres que frequentam bares e adotam comportamento liberal) que se dispuserama enviar calcinhas cor de rosa para o referido líder conservador, no “Valentine’s Day”.
Desenvolveu-se, então, curioso debate, tendo, por um lado o novo símbolo das calcinhas rosas, como protestos contra ações com forte coloração contrária à emancipação feminina. Por outro, o sári – parece que, de preferência, de outra cor – permanece sendo o símbolo da feminilidade indiana.
No dia 14 de fevereiro de 2009, a “polícia ideológica” (alguns integrantes envergavam seus uniformes de policiais) espancou casais, por simplesmente estarem juntos. Assim, houve caso em que um irmão e uma irmã foram agredidos, por engano. Rapazes e moças, por estarem próximos, foram obrigados a “casar” – ou trocaram votos matrimoniais.
Em contrapartida, na mesma data, houve vendas recordes de cartões do Dia do Namorados. O rosa tornou-se extremamente popular, inclusive para preservativos. Jovens desafiaram os que querem ditar-lhes normas de conduta ditas “culturais” e celebraram, publicamente, seu afeto mútuo.
Enquanto isso, continua sendo politicamente correto homens andarem de mãos dadas ou intimamente abraçados - parece que como forma tradicional de demonstrar amizade masculina.
O Papel da Mulher Indiana na Política, de acordo com a Mitologia
Na Índia, a cada mês de novembro, comemora-se o Diwali, uma espécie de Natal hinduísta. Durante cinco dias, portanto, é marcado na Índia o “festival das luzes”.
Em Mumbai, o principal motivo de comemoração é a lenda sobre o retorno de Lord Rama ao Reino de Ayodhya, com sua esposa Sita e seu irmão Lakshmana, após a vitórasobre o “Rei Demônio Ravana”, de “dez cabeças”, há cerca de três mil anos.
O Ramayana, que narra a saga de Rama, é um dos textos mais antigos da Índia e, tendo sido escrito há mais de três mil anos, permanece imensamente popular. Tem fascinado inúmeras gerações (encarnações) indianas. Não resta dúvida, quanto ao mérito literário da obra, que justifica, em parte, sua sobrevivência.
Da mesma forma que em outras epopéias, o foco é uma sequência de incidentes na vida do herói da narrativa: Rama. Existe, no texto, ademais, enorme riqueza de personalidades e eventos, bem como fantasias do tipo de carruagens que voam, macacos, aves e outros animais que falam, dramas como o sequestro da esposa de Rama, Sita, e o fato de o Rei ter que determinar o exílio de seu filho querido.
Acima de tudo, o Ramayana representa a celebração de emoções e ideais. Assim, ressalta-se o profundo amor filial de Rama, a devoção de sua esposa a ele, a aliança incondicional de seu irmão Lakshmana. Tais sentimentos fortes têm afetado os leitores, através dos sucessivos momentos de turbulência e incertezas que afetaram a longa história da Índia.
Em resumo, o enredo do poema desenvolve-se em período durante o qual, dois poderosos reinos, o dos Kosalas e o dos Videhas, predominavam no Norte da Índia, entre os séculos XII e X A.C. Segundo a narrativa, o Rei Dasaratha, dos Kosalas, tinha quatro filhos – com diferentes esposas – o mais velho dos quais, Rama, é o herói da história. De sua parte, o Rei Janak, dos Videhas, tinha uma filha, Sita, que se torna a heroína da trama.
Então, o Rei Janak, para escolher entre os pretendentes à mão de sua bela filha Sita, determinou que apenas aquele capaz de empunhar um arco cravado no chão seria o eleito. Como esperado, o heróico Rama realizou a proeza e, portanto, casou com Sita. Nada sendo perfeito, grande intriga foi urdida por uma das esposas do Rei Dasaratha – pai de Rama – obrigando o monarca a coroar, como seu sucessor, não o filho mais velho – Rama – mas um de seus irmãos mais moços – Bharata .
Ademais, a referida Sra. obteve a promessa real de que Rama seria enviado ao exílio, durante quatorze anos. Obediente à ordem paterna – como deve ser um bom hinduísta, destinado a servir de exemplo de subserviência filial por milênios do porvir – nosso herói partiu para a floresta, acompanhado por Sita e pelo irmão Lakshmana.
No capítulo seguinte, o Rei Dasharatha – pai de Rama – falece, arrependido de ter tratado seu primogênito daquela forma, e o trono deve passar para o filho Bharata, que reconhece sua incompetência para administrar os assuntos de Estado e resolve apelar para que Rama assuma todos aqueles problemas. Este – no espírito de preservar a obediência ao desejo paterno, já assinalado acima, sem saber do arrependimento final do pai – recusa, afirmando que iria cumprir a tal punição de quatorze anos. Bharata, então, decide levar consigo as sandálias de Rama, como símbolo de respeito ao irmão mais velho.
Começa, então, uma alegoria digna a fazer inveja aos desfiles de Escolas de Samba no Rio de Janeiro. Entra em cena uma tribo de demônios, que se relacionam com um Rei de dez cabeças, Ravana, desfilam uma ave e um veado que falam. Sita é sequestrada. Torna-se, então, como mencionado no início desta coluna, símbolo da fidelidade e devoção que uma esposa indiana deve ter, como exemplo para as gerações (encarnações) futuras.
Felizmente, entra em cena um reino de macacos falantes, que ajudam Rama a resgatar Sita. Nesse processo teria sido criada a controvertida ponte de rochas que liga a Índia ao atual Sri Lanka, objeto atual de discórdia política. A apoteose ocorre com combate final, entre Rama e Ravana, que, cada vez que tinha uma cabeça cortada, lhe nascia uma outra, até que nosso herói descobre um ponto vital, no pescoço do monstro e lhe atinge com uma flecha. Assim encerrada a tragédia, Rama e Sita retornam ao Reino de Ayodhya.
Então, em função, principalmente, deste retorno triunfal, é celebrado em Mumbai, e outras cidades indianas, o “Festival das Luzes” ou Diwali. Neste contexto, são louvadas virtudes de devoção familiar (dharma) e a submissão ao destino (kharma).
Para os críticos da devoção a Rama, fica o argumento de que todo o sistema de castas indianas seria justificado pela narrativa. Isto porque, a legitimação do poder monárquico, enquanto prevaleceu como forma de governança na Índia, teria sido a principal função do Ramayana. Assim, quando Rama retorna à capital de seu reino, prontamente retoma a forma absolutista de governar.
Segundo, a propósito, a concepção histórica do Estado indiano – em análise reconhecidamente simplificada - o reinado não tem origem divina, de “mandato celestial”, como na China antiga. Pelo contrário, o Estado era uma demonstração e reflexo de poder pessoal do próprio rei – isto é, uma personalidade forte capaz de unificar regiões díspares, de forma tirânica, sempre sob a ameaça de desintegração. Tudo o que era exigido era uma determinação de talento superior, capaz de manter o indivíduo no poder.
Em contrapartida, o Imperador chinês, por exemplo, foi, durante séculos, reverenciado como o “Filho do Céu”(tíen-tse) e era suposto personificar os princípios da realeza, através de rituais religiosos. Tratava-se do mediador entre o céu e a terra. Caso houvesse derrota, fome ou catástrofes, e ele mesmo fosse derrubado, isto seria atribuído à perda do Mandato Celestial, decorrente de alguma deficiência pessoal. O usurpador do poder, então, a seu turno, passaria a reivindicar tal mandato, a ser herdado por sua nova dinastia.
Os Reis Hindus não contavam com tal mandato. Apenas uma deusa, de menor estatura, Sri Lakshmi, era tida como protetora do sucesso e continuação do poder. Ela escolheria seu protegido e, temporariamente, reencarnaria em sua pessoa. Fosse este derrotado, ela, chorosa, passaria a proteger o novo vencedor. Sri Laksminada tinha a ver com a virtude. Apenas com a política e a evolução cíclica dos tempos. A filosofia dos reis e poderosos, na Índia, portanto, era fatalista, cética e realista.
No Dia da Mulher, cabe concluir clamando que, na Índia, a Lei Maria da Penha peça passagem.