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terça-feira, 25 de março de 2025

Defesa e soberania nacional - Rubens Barbosa (Estadão)

Opinião : Defesa e soberania nacional

Num mundo de incertezas, não se pode mais ignorar as atuais vulnerabilidades das Forças Armadas
Por Rubens Barbosa
Estadão, 25/03/2025

A evolução da economia global e a ordem política internacional nunca estiveram tão incertas e inseguras. A mudança da política externa dos EUA em relação à Rússia, aos aliados europeus e à Otan, caso mantida nos próximos anos, acarretará profundos impactos em todos os países, sobretudo nos em desenvolvimento. As transformações no cenário internacional terão consequências nos seus esforços para alcançar os objetivos relacionados ao desenvolvimento econômico e social e à segurança para a preservação da soberania nacional.
O Brasil é uma potência média, a 10.ª economia do mundo, 210 milhões de habitantes e território continental, cujo objetivo é se tornar um país plenamente desenvolvido. A estratégia nacional, além do desenvolvimento, deveria ter como objetivo a segurança interna e externa, levando em conta o ambiente internacional de que extraímos recursos, know-how, tecnologia e investimentos para o desenvolvimento do País, mas que também poderá vir a representar ameaças à soberania nacional.
As grandes vulnerabilidades na área da Defesa são a quase completa dependência do fornecimento de equipamento bélico dos EUA e da Otan e a imprevisibilidade orçamentária. A Lei Orçamentária aprovada pelo Congresso não reflete as necessidades reais das Três Forças, cujas despesas discricionárias estão muito abaixo do que seria necessário para atender aos projetos especiais. A obsolescência dos equipamentos, especialmente os da Marinha, e a falta de previsibilidade orçamentária dificultam um planejamento de médio e longo prazos, agravado agora pela instabilidade no cenário global. As áreas prioritárias definidas na Estratégia Nacional de Defesa, cibernética, nuclear e espacial, requerem investimentos, que são insuficientes. A Base Industrial de Defesa se ressente da baixa aquisição de seus produtos pelo governo (diferente do que ocorre em outros países), da falta de apoio oficial para o financiamento das exportações e de maior estímulo à pesquisa e desenvolvimento no setor. O esforço para uma autonomia gradual das Forças Armadas exige um planejamento de longo prazo (10 a 20 anos), que deveria incluir o processo de atualização conceitual das Três Forças, material e orçamentário, com a redução de seu efetivo, com maior mobilidade e aquisição de equipamentos modernos e mais adequados às realidades das novas formas de ameaças internas e externas, com a criação de uma base logística de defesa, independente do Ministério da Defesa, como ocorre em outros países desenvolvidos para racionalizar a aplicação dos investimentos. Tudo isso acarretaria uma redução no custo de pessoal e um gasto mais eficiente.
No entorno geográfico, o Brasil tem fronteira com dez países, crescentes problemas com o crime transnacional pelo tráfico de drogas, de armas e, mais recentemente, pelo garimpo ilegal na Amazônia. No litoral, a proteção dos campos de petróleo no território marítimo e o crime transnacional são preocupações. Nas duas frentes, as Forças Armadas não estão adequadamente equipadas para a defesa da soberania e do território nacionais. Em tempos em que se menciona a possibilidade de aquisição da Groenlândia e a retomada do Canal do Panamá, é bom lembrar a riqueza mineral e a biodiversidade da Amazônia, sem falar na disponibilidade da água, cada vez mais fatores estratégicos. Por outro lado, numa região livre de conflitos armados surgiu a ameaça de a Venezuela atacar a Guiana para atender a reivindicação territorial, o que representa um desafio para a Defesa nacional e poderia acarretar a presença de bases militares externas na América do Sul, contrariando a tradicional posição do governo brasileiro.
Nesse contexto, cresce a necessidade de definir, dentro do objetivo nacional de segurança, uma estratégia de Defesa. Essa necessidade, imposta agora de fora para dentro, esbarra em dois obstáculos: a cultura nacional e a vontade política interna. O contexto histórico tem direta influência sobre esses dois fatores: de um lado, a ausência de conflitos armados nos últimos 150 anos e de uma evidente ameaça externa que ponha em risco nosso território, e, de outro lado, as reservas políticas em relação às Forças Armadas em razão das sucessivas interferências na vida política do País desde o início da República, em 1889.
Num mundo de incertezas, não se pode mais ignorar as atuais vulnerabilidades das Forças Armadas e a necessidade do fortalecimento da indústria nacional de Defesa. E, com base na nova atitude profissional das Forças Armadas nos últimos 40 anos, examinar, de forma transparente, a normalização do relacionamento entre civis e militares com a definição de regras e práticas de um efetivo controle do Executivo, Legislativo e Judiciário sobre os militares, como em muitos países. A reformulação do artigo 142 da Constituição e a aprovação da PEC sobre a participação de militares na política devem ser examinadas dentro desse contexto. Com isso, seria virada uma página delicada da história nacional e seriam superadas as resistências para o fortalecimento institucional da Forças Armadas.
Neste novo cenário interno e externo, torna-se urgente incluir a Defesa na discussão sobre o lugar do Brasil no mundo e sobre seus objetivos de médio e longo prazos, acima da divisão e da polarização interna.

Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), foi embaixador do Brasil em Londres (1994-99) e em Washington (1999-2004)

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/defesa-e-soberania-nacional/

sexta-feira, 21 de março de 2025

Mein Kampf: cem anos de uma obra fatidica - Eugenio Bucci (Estadão)

 Cem anos dessa praga

Eugênio Bucci 

JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP · 

O Estado de São Paulo, 20 mar. 2025

Mein Kampf’ não é página virada. O Terceiro Reich foi projetado por Hitler para durar mil anos. Como doutrina, já durou cem. E vem mais por aí

Em julho de 1925, o livro Mein Kampf ( Minha luta), de Adolf Hitler, foi lançado na Alemanha. No ano seguinte, 1926, chegou aos leitores um segundo volume, este mais dedicado ao tema da organização partidária. A partir daí, nas edições posteriores, os dois volumes foram reunidos num só e Mein Kampf fez sua carreira editorial dividido em duas partes: a primeira, com 12 capítulos, e a segunda, com 15. Nesse compêndio de horrores, o autor destila ódio, megalomania, ressentimento, antissemitismo, nacionalismo, xenofobia e apologia da violência para fixar o ideário nazista. Com êxito.

Faz um século – e não passou. A coisa nunca mais arredou pé. Em 30 de janeiro de 1933, Hitler foi nomeado chanceler pelo presidente Paul von Hindenburg. Ato contínuo, transformou seu país numa ditadura totalitária. Logo que chegou ao poder, foi saudado por passeatas noturnas em que jovens fardados carregavam tochas em formação militar. Eram as Fackelzug. No documentário O Fascismo de Todos os Dias, de 1965, dirigido pelo russo Mikhail Romm, podemos ver esses rios ígneos apavorantes.

O espetáculo piromaníaco não se acomodou nas tochas notívagas. Logo evoluiu para rituais macabros, dentro das universidades, em que livros amontoados no pátio ardiam em fogueiras sacrificiais. Os nazistas cremaram páginas de Tolstói, Maiakovski, Thomas Mann, Anatole France, Jack London e outros gênios. Mais adiante, não satisfeitos com incinerar papel, passaram a queimar pessoas. Holocausto.

Na abertura do trecho em que as chamas devoram a literatura, o cineasta soviético projeta na tela uma frase atribuída ao próprio Hitler: “Qualquer cabo pode ser um professor, mas não é qualquer professor que pode ser um cabo”. O totalitarismo alemão acreditava que havia mais virtudes num quepe de milico do que numa beca de docente. O pior é que, na atualidade, alguns ainda acreditam nisso. Há relatos de que, num país remoto, que não fala alemão, as autoridades tomaram para si a tarefa de implantar as assim chamadas “escolas cívico-militares”. Na visão desses governantes, o coturno se sai melhor do que o quadro negro na missão de educar as crianças. O eleitorado aplaude.

O nazismo original sumiu de Berlim em 1945, derrotado pelas tropas aliadas. Em 30 de abril daquele ano, Hitler se matou. Sua mulher, Eva Braun, foi junto. O ministro da Propaganda, Joseph Goebbels, também cometeu suicídio ao lado da esposa, depois de assassinar os seis filhos com cianeto. O velho Estado maior veio abaixo, mas as teses hediondas do Mein Kampf seguem atormentando o mundo.

A palavra “propaganda” aparece 173 vezes nos 27 capítulos (quem primeiro me chamou a atenção para isso foi o professor Edgard Rebouças, da Universidade Federal do Espírito Santo). Os chefes do Terceiro

Reich arrancaram a investigação da verdade do campo da Filosofia, do método científico, da reportagem jornalística e dos estudos conduzidos por historiadores. Tudo isso deixou de ser fonte confiável. A Justiça e seus peritos também perderam o posto de verificadores da realidade. O nazismo monopolizou essa função, como num monoteísmo profano – aliás, em seus diários, Goebbels anotou seu sonho de fazer do partido a grande religião do povo. Quase conseguiu. Interditando a Filosofia, encabrestando a ciência, dizimando a imprensa, subjugando a Justiça e esvaziando a espiritualidade de cada um, o império da suástica fez da propaganda o único critério da verdade.

Em que se deve acreditar? Ora, naquilo que a propaganda repete mil vezes. O Mein Kampf determina que ela deve “estabelecer o seu nível espiritual ( cultural) de acordo com a capacidade de compreensão do mais ignorante dentre aqueles a quem ela pretende se dirigir”. Como se vê, a história de “nivelar por baixo” começou aí.

Hitler usou com malignidade inédita os meios de comunicação da indústria cultural. Manipulou até a morte as multidões sedentas de dominação. Hoje, podemos ver as mesmas técnicas no modo como a extrema direita instrumentaliza as plataformas sociais. As mídias digitais são o prolongamento da escola nazista: rompem com o registro dos fatos e promovem a substituição da política pelo fanatismo. O negacionismo contra as vacinas, contra o aquecimento global, contra as evidências históricas e contra a esfericidade do nosso planeta não é uma exceção, mas a regra.

Segundo o Führer, “a grande massa do povo ( é) sempre propensa a extremos”. Antes de muitos pesquisadores, ele notou que o público esclarecido pode até apreciar o equilíbrio do centro, mas a turba enfurecida prefere abertamente a falta de modos. Seus seguidores, declarados ou não, continuam a operar exatamente assim. Vide a aliança de Donald Trump e Elon Musk. Vide o triângulo rosa, com o qual os nazistas estigmatizavam os homossexuais, que o presidente dos Estados Unidos usou agora numa postagem. Vide como ele ataca as universidades e deporta inocentes.

Não, o Mein Kampf não é página virada. O Terceiro Reich foi projetado por Adolf Hitler para durar mil anos. Como doutrina, já durou cem. E vem mais por aí. •


terça-feira, 18 de março de 2025

Trump acima da lei, contra a lei - Estadão

Justiça questiona Casa Branca por rejeitar ordem que barrou deportação e tensão entre poderes cresce

Governo nega resposta a juiz que mandou voo com deportados para San Salvador dar meia-volta; para especialistas, episódio marca escalada na disputa entre Poderes

https://www.estadao.com.br/internacional/justica-questiona-casa-branca-por-descumprir-ordem-que-barrou-deportacao-de-imigrantes-a-el-salvador-nprei/

WASHINGTON — O juiz federal James Boasberg cobrou nesta segunda-feira, 17, o governo de Donald Trump a dar explicações sobre o descumprimento de uma ordem judicial que exigia o retorno aos EUA de voos de deportação de imigrantes para El Salvador, no caso que se converteu em uma queda de braço entre poderes em Washington e elevou o grau de tensão constitucional no país.


O voo carregava mais de 200 deportados expulsos dos EUA sem o devido processo legal. Para expulsá-los, a Casa Branca invocou uma legislação de guerra de 1798 e negou agir fora da lei.


No fim de semana, Boasberg bloqueou temporariamente as deportações para considerar as implicações do uso da lei e disse no tribunal que quaisquer aviões já no ar com os migrantes deveriam retornar aos EUA. Mas o governo Trump respondeu que os 250 deportados já estavam sob custódia de El Salvador, que se ofereceu para recebê-los.


Segundo o Washington Post, os dois primeiros voos partiram do Texas durante a audiência que discutia o uso da Lei de Inimigos Estrangeiros para deportar venezuelanos, acusados de pertencer ao grupo narcotraficante Trem de Arágua. O terceiro avião decolou, também do Texas, após a decisão da Justiça, que foi proferida às 18h47 e entrou no sistema às 19h26, pelo horário de Washington.


Mais cedo, o chamado czar da fronteira do presidente Trump, Thomas Homan, indicou que o governo planejava continuar tais deportações apesar da ordem do tribunal. “Não me importa o que os juízes pensam, não me importa o que a esquerda pensa. Estamos chegando”, disse ele em uma entrevista na Fox News.


O juiz Boasberg então marcou uma audiência ontem para avaliar se a Casa Branca havia violado a ordem do tribunal. O governo pediu que a audiência fosse cancelada. O juiz rejeitou imediatamente o pedido e exigiu que o governo comparecesse para explicar suas ações. Faltando apenas duas horas para o início da audiência no Tribunal Distrital Federal em Washington, os procuradores enviaram a posição do governo em um documento e disseram que não havia razão para ninguém comparecer à Corte porque a administração não forneceria mais informações sobre os voos de deportação.


O juiz deu um novo prazo para que eles se apresentem na terça-feira, 18, ao tribunal. Ao mesmo tempo, o Departamento de Justiça escreveu uma carta ao tribunal de apelações que supervisiona Boasberg, pedindo que o retirasse completamente do caso, por considerar seus “procedimentos altamente incomuns e impróprios”, que ameaçavam se tornar uma crise constitucional.


As duas iniciativas ocorreram em um dia de resistência extraordinária ao tribunal por parte do governo, que disse não ter violado a ordem do juiz, mas também que ele não tinha, em primeiro lugar, autoridade para emiti-la.


A batalha jurídica sobre a remoção dos imigrantes foi o mais recente – e segundo jornais americanos, um dos mais sérios – ponto crítico até agora entre os tribunais federais, que tentam coibir muitas das ações executivas de Trump, e um governo que chegou perto de se recusar a cumprir ordens judiciais em várias ocasiões.


O próprio Trump expressou ceticismo sobre uma decisão da semana passada de um juiz federal na Califórnia ordenando que a administração recontratasse milhares de trabalhadores em estágio probatório demitidos. Trump disse no domingo que o juiz estava “se colocando na posição do presidente dos EUA, que foi eleito por quase 80 milhões de votos”.


Para especialistas jurídicos americanos, os voos de deportação marcam uma escalada dramática na resistência do governo aos tribunais. Para eles, elas representam um colapso no frágil equilíbrio entre os poderes em Washington.


Steve Vladeck, professor de direito da Universidade de Georgetown, disse que o país está vendo “um grau sem precedentes de resistência, intencional ou não, a mandatos judiciais contra o governo federal”. “É difícil imaginar que isso vai melhorar antes de piorar”, disse Vladeck. “Se o governo estiver correto de que essas ordens são legalmente falhas, ele deveria apelar, não resistir a elas.”


Michael J. Gerhardt, professor de direito constitucional na Faculdade de Direito da Universidade da Carolina do Norte, disse que a resposta do governo ontem era o início de uma batalha desafiadora contra o Judiciário. “Agora, temos funcionários do governo que estão operando sem lei.” /NYT e WP

segunda-feira, 3 de março de 2025

O BEM-VINDO OCASO DE LULA E BOLSONARO ! - Editorial Estadão

OPINIÃO DO ESTADÃO, 3/03/2025

O BEM-VINDO OCASO DE LULA E BOLSONARO ! 

Enquanto Bolsonaro está a caminho do banco dos réus, Lula lida com a decepção e frustração popular. Um calvário que pode deixar órfãos seus eleitores, mas é oportunidade para o País ! 

Há um sentimento de orfandade no ar diante do presente frágil e do futuro sombrio reservados aos dois principais líderes que, nos últimos anos, empurraram o Brasil ladeira abaixo de uma divisão nefasta. O presidente Lula da Silva e seu antecessor, Jair Bolsonaro, enfrentam, cada um a seu modo, um julgamento público que pode significar-lhes o ocaso – um calvário gerador de incômoda melancolia na larga faixa do eleitorado que tem se movido por uma mistura de paixões políticas e ódio às identidades adversárias.

Como se sabe, o demiurgo petista se vê às voltas com uma queda profunda de sua popularidade, expressão do descontentamento e da frustração da base que o elegeu, além da insatisfação já duradoura da chamada frente ampla que apostou nele por temor e rejeição ao adversário. Não bastasse a impopularidade, Lula enfrenta ainda um mal maior: a dificuldade crônica de renovar ideias e soluções para o País, fazendo do seu governo uma soma inquietante de velhos projetos para novos problemas.

Já o ex-capitão liberticida, que passou seus anos de mau militar, mau parlamentar e mau presidente insuflando ânimos golpistas, precisará lidar com o julgamento do Supremo Tribunal Federal, acusado que foi de ter cometido os crimes de organização criminosa, tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito, entre outros delitos. Somadas, as penas podem passar dos 40 anos de prisão.

Dada a assimetria dos riscos impostos a ambos, não são julgamentos similares, mas seus efeitos, de certo modo, são. Para quem fez carreira dividindo o País entre “nós” e “eles”, não há perspectiva pior do que a perda de força política e a crescente incapacidade de inspirar o presente e o futuro – é disso, afinal, que depende o poder. Pois Lula e Bolsonaro podem passar cada vez mais, isso sim, a representar o passado.

Bolsonaro já poderia ter sido expelido da política desde quando ultrapassou os limites do decoro e da decência ao envergonhar a instituição parlamentar. Poupado, entendeu que não precisava respeitar limite algum – nem legal, nem político, nem moral – e foi em cima dessa ideia que se lançou à Presidência, em 2018, como candidato “antissistema”. E assim gestou um governo conflituoso, irresponsável e desastroso.

Lula retornou ao poder vendendo a falácia de que poderia ser o artífice da reconciliação tão desejada pelos brasileiros, mas tem se mostrado incapaz de fazer jus à missão recebida. As contradições e fragilidades do terceiro mandato são o preço a pagar pelo pensamento envelhecido de um líder e de um partido que se opuseram aos esforços para a estabilização da economia nos anos 1990, hostilizaram todos os governos aos quais fizeram oposição e, uma vez no poder, produziram a mais grave crise política e econômica da história recente do País.

O infortúnio dos dois deve tornar mais difícil a vida das hostes de militantes, mas é uma ótima notícia para um país que perde muito quando seus dois maiores líderes não conhecem outra língua senão a do enfrentamento, estimulam o rancor contra aqueles que consideram seus inimigos e buscam, como populistas empedernidos que são, confundir-se com os mais legítimos interesses do povo.

Se ambos não se recuperarem da crise que os abate, resta saber o que virá a seguir. Otimistas apontam uma boa dose de esperança para o surgimento de novas lideranças – menos personalistas, mais democráticas e plurais, e sobretudo mais capazes de oferecer novas e melhores ideias para os problemas atuais e futuros. Céticos sugerem, ao contrário, que o vácuo de lideranças pode abrir espaço para aventureiros que apostam na antipolítica.

Este jornal acredita na chance de o País virar a página, embora alerte para os aventureiros à espreita. Eis um momento-chave para que o debate público no Brasil afinal deixe de ser intoxicado pelo ódio, que reduz a política ao confronto estéril entre duas visões atrasadas de mundo. Os tempos destrutivos e paralisantes protagonizados por Lula e Bolsonaro podem chegar ao fim, desde que seus eventuais herdeiros não sejam a continuidade do atraso.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

A traição americana - Lourival Sant’Anna (Estadão)

 Certas coisas em Trump não pertencem ao campo da racionalidade política e não podem ser explicadas por meio de argumentos apoiados em evidências sólidas e intelectualmente compreensíveis; suas posturas são prejudiciais aos próprios americanos, empresas, consumidores, o país. Avento a hipótese de confusão mental e demência senil. Estou errado? PRA

Lourival Sant’Anna:

“Os movimentos de Donald Trump não podem ser entendidos da óptica convencional da geopolítica. As motivações comuns são o colonialismo mercantilista, a ideologia iliberal e nativista. Depois da 2.ª Guerra, os EUA firmaram alianças com a Europa, Japão e Coreia do Sul para não ter de enfrentar os inimigos em território americano. Ao abandonar os aliados e se unir aos adversários, Trump anula a confiabilidade dos EUA, trai seus interesses e a causa da liberdade.”

Minha coluna no ESTADÃO deste domingo: A traição americana

https://lnkd.in/dc3Km_As 

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Trump não tem a menor ideia da confusão que está criando: não vai dar certo - Thomas Friedman (NYT, Estadão)

Por que o bullying de Trump contra o mundo vai sair pela culatra

Thomas Friedman (NYT)

O Estado de S. Paulo, 19/02/2925

https://www.estadao.com.br/internacional/por-que-o-bullying-de-trump-contra-o-mundo-vai-sair-pela-culatra/

Creio que o mais assustador a respeito do que o presidente Donald Trump está fazendo com sua estratégia de tarifas para todos é ele não ter ideia do que está fazendo — nem sobre como a economia mundial funciona, nesse caso. Ele está simplesmente inventando tudo à medida que avança — e todos nós estamos nesse barco.

Não sou contra o uso de tarifas para combater práticas comerciais injustas. Eu apoiei as tarifas de Trump e do ex-presidente Joe Biden sobre a China. E se tudo isso não passa de um blefe de Trump para fazer com que outros países nos deem o mesmo acesso que nós damos a eles, por mim, tudo bem.

Mas Trump nunca é claro: algumas vezes ele diz que suas tarifas são para aumentar a receita, depois que elas servirão para forçar todos a investir nos Estados Unidos, outras vezes afirma que o objetivo é manter o fentanil fora.

Mas qual é a dele? Como cantavam Os Beatles, eu adoraria ver o plano. Tipo: É assim que achamos que a economia global opera hoje; portanto, para fortalecer os EUA, é aqui que precisamos cortar gastos, impor tarifas e investir — e é por isso que estamos fazendo X, Y ou Z.

Seria uma liderança real. Mas em vez disso Trump está ameaçando impor tarifas a rivais e aliados, sem nenhuma explicação satisfatória do porquê alguns países estão sendo tarifados e outros não, e sem se importar sobre como essas tarifas podem prejudicar a indústria e os consumidores americanos. É uma bagunça total.

Conforme apontou o presidente-executivo da Ford Motor, Jim Farley, corajosamente (comparado a outros presidentes-executivos): “Sejamos realmente honestos: a longo prazo, uma tarifa de 25% nas fronteiras do México e do Canadá abriria um buraco jamais visto na indústria dos EUA”.

Então, ou Trump quer abrir esse buraco ou está blefando ou não tem a mínima ideia do que está fazendo. Se a última hipótese for a verdadeira, Trump vai passar por um curso intensivo a respeito de duras realidades da economia global — como ela realmente é, não como ele a imagina.

Meu tutor favorito nesses assuntos é o economista Eric Beinhocker, da Universidade de Oxford, que chamou minha atenção quando conversávamos, outro dia, com a seguinte — e simples — fala: “Nenhum país do mundo é capaz de fabricar um iPhone sozinho”.

Pensem nessa frase por um instante. Não há um único país ou empresa na Terra que tenha todo o conhecimento, todas as peças, todas as capacidades de fabricação nem todas as matérias-primas que entram nesse dispositivo em seu bolso chamado iPhone. A Apple diz que monta seus iPhones, seus computadores e seus relógios com a ajuda de “milhares de empresas e milhões de pessoas, em mais de 50 países e regiões” que contribuem com “nossas habilidades, nossos talentos e nossos esforços para ajudar a construir, entregar, consertar e reciclar nossos produtos”.

Estamos falando de um enorme ecossistema de rede necessário para tornar esse telefone tão legal, tão inteligente e tão barato. E esse é o ponto de Beinhocker: a grande diferença entre a era em que estamos agora e aquela em que Trump pensa estar vivendo, é que hoje não é mais “a economia, estúpido”. Essa foi a era Bill Clinton. Hoje, “são os ecossistemas, estúpido”.

Ecossistemas? Ouça um pouco Beinhocker, que também é diretor-executivo do Institute for New Economic Thinking, na Oxford Martin School. No mundo real, argumenta ele, “Não existe mais uma economia americana que você possa identificar de forma real e tangível. Existe apenas essa ficção contábil que chamamos de PIB americano”. Sem dúvida, afirma ele, “Existem interesses americanos na economia. Existem trabalhadores americanos. Existem consumidores americanos. Existem empresas sediadas nos EUA. Mas não existe uma economia americana nesse sentido isolado”.

Os velhos tempos, acrescenta ele, “quando você fazia vinho e eu fazia queijo, e você tinha tudo o que precisava para fazer vinho e eu tinha tudo o que precisava para fazer queijo e então nós negociávamos um com o outro — o que nos melhorava a vida, conforme ensinou Adam Smith — esses dias já se acabaram há muito”. Exceto na cabeça de Trump.

Em vez disso, existe uma rede global de “ecossistemas” comerciais, de fabricação, serviços e negociação, explica Beinhocker. “Existe um ecossistema de automóveis. Existe um ecossistema de IA. Existe um ecossistema de smartphones. Existe um ecossistema de desenvolvimento de medicamentos. Existe um ecossistema de fabricação de chips.” E as pessoas, os componentes e o conhecimento que conformam esses ecossistemas se movem de um lado para o outro entre muitas economias.

Conforme observou a NPR numa reportagem recente sobre a indústria automobilística, “as montadoras construíram uma vasta e complicada cadeia de fornecimento que abrange toda a América do Norte, com peças atravessando fronteiras durante todo o processo de fabricação de automóveis. (…) Algumas peças cruzam fronteiras várias vezes — como, digamos, um fio que é fabricado nos EUA, enviado para o México para ser integrado a um grupo de cabos e, em seguida, volta aos EUA para ser instalado em um componente maior de um carro, como um assento”.

Trump simplesmente ignora isso tudo. Ele disse a repórteres que os EUA não dependem do Canadá. “Não precisamos deles para fazer nossos carros”, afirmou ele.

Na verdade, nós precisamos sim deles. E graças a Deus por isso. Isso nos permite não apenas tornar os carros mais baratos, mas também melhores. Tudo o que um Modelo T fez foi nos levar de um ponto a outro mais rapidamente do que um cavalo, mas os carros de hoje oferecem ar-condicionado quente ou frio e entretenimento via internet e satélites. Eles navegam para você, eles até dirigem para você — e são muito mais seguros. Quando somos capazes de combinar conhecimentos e componentes complexos para resolver problemas complexos, nossa qualidade de vida dispara.

Mas eis a questão: não é mais possível fazer coisas complexas sozinhos; é complexo demais.

Em um ensaio de 2021, publicado no website da Escola de Saúde Pública de Yale, Swati Gupta, diretora para doenças infecciosas emergentes da IAVI, uma organização de pesquisa científica sem fins lucrativos, explicou como as vacinas de mRNA contra a covid-19 foram desenvolvidas em tempo recorde:

“Vacinas tradicionalmente levam de 10 a 20 anos para serem desenvolvidas, e os custos de pesquisas e testes podem facilmente chegar a bilhões de dólares. Então, a pergunta natural após a pandemia de covid-19 é: como as vacinas atualmente disponíveis foram desenvolvidas tão rapidamente? (…) Houve uma colaboração global sem precedentes, realizada por meio de parcerias coordenadas entre governos, indústrias, organizações doadoras, organizações sem fins lucrativos e a academia. (…) Somente agindo dessa maneira nós teríamos alcançado o que foi visto no ano passado, pois nenhum grupo isolado poderia ter feito isso sozinho.”

O mesmo vale hoje para os microchips mais avançados. Agora eles são fabricados por um ecossistema global: a AMD, a Qualcomm, a Intel, a Apple e a Nvidia se destacam no design dos chips. A Synopsys e a Cadence criam ferramentas e softwares sofisticados de design auxiliado por computação nos quais os fabricantes de chips elaboram realmente suas ideias mais recentes. A Applied Materials cria e modifica os materiais para forjar bilhões de transistores e fios de conexão nos chips. A ASML, uma empresa holandesa, fornece as ferramentas de litografia em parceria com, entre outros, a Carl Zeiss SMT, uma empresa alemã especializada em lentes ópticas, que desenha os estênceis nas pastilhas de silício desses projetos. A Lam Research, a KLA e empresas da Coreia do Sul, do Japão e de Taiwan também desempenham papéis importantes nessa coalizão.

Quanto mais ultrapassamos limites da física e da ciência dos materiais para enfiar mais transistores em um chip, menos uma só empresa ou um só país pode se destacar em todas as partes do processo de design e fabricação. Todo o ecossistema global é necessário.

No Dia de Natal de 2021, eu despertei às 7h20 para assistir o lançamento do Telescópio Espacial James Webb, que vasculha profundamente o espaço sideral. De acordo com a NASA, “milhares de cientistas, engenheiros e técnicos qualificados”, de 309 universidades, laboratórios nacionais e empresas, principalmente nos EUA, Canadá e Europa, “colaboraram no projeto, na construção, nos testes, na integração, no lançamento, no comissionamento e nas operações do Webb”.

Adam Smith identificou famosamente a divisão do trabalho, e isso sem dúvida é importante — nós somos capazes de fabricar mais alfinetes com menos trabalhadores se dividirmos o trabalho corretamente. “Isso foi ótimo”, observa Beinhocker. “Mas o motor mais poderoso é a divisão do conhecimento, o que é necessário para fabricar coisas mais complexas do que alfinetes. Nós temos de nos valer da divisão do conhecimento, da divisão da expertise.”

Se dermos um passo atrás e considerarmos o grande arco da história da economia, explica Beinhocker, “a história é realmente de uma expansão de nossas redes de cooperação para utilizar e compartilhar conhecimento para fabricar produtos e serviços mais complexos, que nos conferem padrões de vida cada vez mais elevados. E se você não fizer parte desses ecossistemas, seu país não prosperará.”

E a confiança é o ingrediente essencial que faz esses ecossistemas funcionarem e crescerem, acrescenta Beinhocker. A confiança é a cola e a graxa. A confiança fixa laços de cooperação e ao mesmo tempo lubrifica fluxos de pessoas, produtos, capitais e ideias entre os países. Sem confiança os ecossistemas começam a ruir.

A confiança, no entanto, é erguida por regras boas e relações saudáveis, e Trump está pisoteando ambas. O resultado: se seguir nesse caminho, Trump tornará os EUA e o mundo mais pobres. Senhor presidente, faça sua lição de casa.


sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

A poluição por chumbo pode ter contribuído para a decadência do Império Romano - Katherine Kornei, The New York Times (Estadão)

Estadão

Ciência

A contaminação que pode ter baixado o QI de um dos principais impérios da história

Nova pesquisa detalha o que pode ter sido o primeiro caso de poluição industrial generalizada no mundo: a poluição na forma de chumbo entre os romanos

 

Por Katherine Kornei, The New York Times

O Estado de S. Paulo, 16/01/2025



Há aproximadamente dois mil anos, o Império Romano estava florescendo. Mas algo sinistro pairava no ar. Literalmente.

Uma poluição generalizada na forma de chumbo atmosférico estava afetando a saúde e a inteligência, relataram pesquisadores na semana passada na revista Proceedings of the National Academy of Sciences.

Durante cerca de dois séculos, a partir de 27 a.C., um período de relativa estabilidade e prosperidade conhecido como Pax Romana, o império se estendia por toda a EuropaOriente Médio e norte da África. Sua economia dependia da cunhagem de moedas de prata, o que exigia enormes operações de mineração.

No entanto, extrair prata da Terra produz muito chumbo, disse Joseph McConnell, cientista ambiental do Desert Research Institute, um grupo sem fins lucrativos baseado em Nevada (EUA), e o principal autor da nova pesquisa. “Se você produzir uma onça (unidade de medida que equivale a 28,35 gramas) de prata, teria produzido algo como 10 mil onças de chumbo.”

E o chumbo tem uma série de efeitos negativos no corpo humano. “Não existe um nível seguro de exposição ao chumbo”, disse Deborah Cory-Slechta, uma neurotoxicologista do Centro Médico da Universidade de Rochester que não esteve envolvida na pesquisa.

McConnell e seus colegas agora detectaram chumbo em camadas de gelo coletadas na Rússia e na Groenlândia que datam da época do Império Romano. O chumbo entrou na atmosfera a partir das operações de mineração romanas, pegou carona em correntes de ar e eventualmente caiu da atmosfera como neve no Ártico, supõe a equipe.

Os níveis de chumbo que McConnell e seus colaboradores mediram eram extremamente baixos, aproximadamente uma molécula contendo chumbo por trilhão de moléculas de água. Mas as amostras de gelo foram coletadas a milhares de quilômetros do sul da Europa, e as concentrações de chumbo teriam sido altamente dispersas após uma jornada tão longa.

Para estimar a quantidade de chumbo originalmente emitida pelas operações de mineração romanas, os pesquisadores trabalharam de forma reversa: usando poderosos modelos computadorizados da atmosfera do planeta e fazendo suposições sobre a localização dos locais de mineração, a equipe variou a quantidade de chumbo emitido para corresponder às concentrações que mediram no gelo.

Em um caso, eles assumiram que toda a produção de prata ocorria em um local de mineração historicamente importante no sudoeste da Espanha conhecido como Rio Tinto. Em outro caso, presumiram que a mineração de prata estava igualmente distribuída por dezenas de locais.

A equipe calculou que de 3.300 a 4.600 toneladas de chumbo eram emitidas na atmosfera a cada ano pelas operações de mineração de prata romanas. Os pesquisadores, então, estimaram como todo aquele chumbo seria espalhado pelo Império Romano.

“Executamos o modelo na direção correta para ver como essas emissões seriam distribuídas”, disse McConnell.

Com essas concentrações de chumbo na atmosfera em mãos, os pesquisadores usaram dados dos dias modernos para estimar quanto chumbo teria entrado na corrente sanguínea das pessoas na Roma antiga.

McConnell e seus colegas se concentraram em bebês e crianças. Os jovens são particularmente suscetíveis a absorver chumbo do ambiente por meio da ingestão e da inalação, disse o Dr. Bruce Lanphear, médico de saúde pública da Universidade Simon Fraser na Colúmbia Britânica que não esteve envolvido na pesquisa.

Nas últimas décadas, os níveis de chumbo no sangue das crianças foram correlacionados com uma série de métricas de saúde física e mental, incluindo QI, disse Cory-Slechta. “Temos dados reais sobre os escores de QI em crianças com diferentes concentrações de chumbo no sangue.”

Usando essas relações dos dias modernos, McConnell e sua equipe estimaram que as crianças em grande parte do Império Romano teriam cerca de 2 a 5 microgramas adicionais de chumbo por decilitro de sangue. Tais níveis correspondem a declínios de QI de aproximadamente 2 ou 3 pontos.

Para comparação, as crianças americanas nos anos 1970 tinham aprimoramentos médios nos níveis de chumbo no sangue de cerca de 15 microgramas de chumbo a mais por decilitro de sangue antes da eliminação gradual da gasolina com chumbo e das tintas com chumbo. Seu correspondente declínio médio de QI foi de cerca de 9 pontos.

Mas a exposição ao chumbo teria tido outros efeitos negativos nos romanos também. Níveis mais altos de chumbo no sangue também foram vinculados a maiores incidências de partos prematuros e funcionamento cognitivo reduzido na velhice. “Isso te segue ao longo da vida”, disse Lanphear.

Alguns estudiosos desenvolveram a hipótese de que o envenenamento por chumbo desempenhou papel importante no declínio do Império Romano. Mas essa ideia tem sido questionada, pelo menos no que diz respeito à água contaminada por tubulações de chumbo. Um estudo de 2014 mostrou que, embora as tubulações usadas para distribuir água em Roma aumentassem os níveis de chumbo, era improvável que a água fosse verdadeiramente prejudicial.

Esses novos achados fazem sentido, disse Hugo Delile, geoarqueólogo do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França, que não esteve envolvido na pesquisa. “Eles confirmam a extensão da poluição por chumbo resultante das atividades de mineração e metalurgia romanas.”

De acordo com McConnell, a pesquisa também confere uma honra duvidosa à mineração romana. “Até onde sei, é o exemplo mais antigo de poluição industrial generalizada.”

 

sábado, 4 de janeiro de 2025

Parabéns, Estadão! - Blog do Marcelo Guterman

Desde que eu me conheço por gente, isto é, um estudante, recém saído do primário e começando a aprender as coisas do mundo, e tendo opinião a respeito, eu me informei, e me formei (sobretudo em economia) nas páginas do Estadão, primeiro chamando o vetusto jornal de "reacionário", depois reconhecendo o seu valor, embora nem sempre concordando com seus editoriais, nos quais aprendi muito mais, a ser ponderado, moderado e objetivo. (PRA)

Parabéns, Estadão!

Procurei rapidamente no Google quais são as empresas privadas mais antigas do Brasil ainda em atividade. Combinando algumas fontes, cheguei à seguinte ordem:

1) Cervejaria Bohemia (1853)

2) Casa Granado (1870)

3) Instituto Presbiteriano Mackenzie (1870)

4) Cedro Cachoeira Têxtil (1872)

5) O Estado de São Paulo (1875)

O Estadão, portanto, é a quinta empresa privada brasileira mais antiga em atividade. Não é para muitos, considerando a enorme mortalidade das empresas no inóspito capitalismo brasileiro.

A coisa é ainda mais notável se considerarmos tratar-se de um jornal em uma nação de analfabetos. A circulação dos jornais brasileiros é uma fração da circulação nas nações ricas. Manter-se viável comercialmente, ainda mais em um mundo em que a publicidade está mudando rapidamente, é para poucos.

E mais notável ainda fica quando consideramos os, digamos, “dotes empresariais” da família Mesquita. Enquanto Roberto Marinho construiu um império jornalístico e Otávio Frias expandiu seus negócios para o UOL (que se tornou um dos 10 sites de maior tráfego no Brasil), hospedagem de sites e meios de pagamento (PagSeguro), a única aventura empresarial do grupo foi uma pequena participação na concessionária de telefonia móvel BCP, que nunca conseguiu dar lucro e foi incorporada pela Claro.

Considerando esse histórico, podemos dizer que o Estadão é um pequeno milagre empresarial. Mas essa é só a parte econômica. A parte editorial é ainda mais intrigante.

A Província de São Paulo nasceu como oposição ao regime, um jornal republicano no Império. E assim continuou ao longo desses 150 anos. Foi censurado no Estado Novo e na ditadura militar, sempre seguindo o mote “se hay gobierno, soy contra”. É notável que um jornal com esse tipo de orientação tenha sobrevivido ao longo de 150 anos. Governos vieram e foram, o Estadão permaneceu.

E permaneceu porque o editorial do Estadão verbaliza, como poucos, a opinião pública média da classe média brasileira. Cada um de nós, com nossas próprias convicções e vivendo dentro de nossas próprias câmaras de eco, muitas vezes condenamos aquilo que lemos na página de opinião do jornal. Um dos editoriais mais famosos do jornal foi o “Uma escolha muito difícil”, na véspera do 2o turno entre Bolsonaro e Haddad, em 2018. Da esquerda à direita, o jornal até hoje é condenado por se colocar no muro. Ocorre que, tirando as bolhas, não havia mesmo muita convicção, como não houve em 2022. Lembre-se, a sua opinião é muito respeitável por ser a sua opinião. Mas é só uma opinião.

O editorial do Estadão, assim como o de outros jornais, faz parte de uma coreografia que envolve as elites que detém o poder e a sociedade. O editorial ao mesmo tempo pauta e é pautado, sendo difícil discernir a influência que exerce sobre as decisões políticas e o humor da sociedade. Trata-se de uma dança, em que os parceiros se movimentam de acordo com suas próprias convicções, mas precisam também estar atentos às convicções dos outros, para que a coreografia não saia do ritmo. Não há maestro, o que existe é uma espécie de caldo cultural de onde bebem todos os personagens dessa dança. O editorial do vetusto Estadão é aquele parceiro que resiste a alterar o ritmo, mesmo que a música comece a tocar em uma batida diferente.

Acho graça quando “acusam” o jornal de ter apoiado “isso ou aquilo”, e de depois passar a criticar “isso ou aquilo”. Foi assim na ditadura militar, por exemplo, em que o Estadão, assim como todos os jornais da época, apoiou a deposição de Jango, para, algum tempo depois, passar a criticar o novo regime, a ponto de ser censurado. Hoje não é diferente, só mudaram os personagens: o Estadão apoiou o STF no desmonte da Lava-Jato e hoje lamenta os desmandos da Suprema Corte. Criticou Bolsonaro e agora critica Lula. Acho graça porque exigem do editorial uma espécie de fidelidade partidária, como se uma opinião tivesse que ser fiel a pessoas e não a ideias. Tanto no caso de Jango/militares quanto nos casos Lava-Jato/STF e Bolsonaro/Lula, o combate a um não significa apoio automático ao outro. Para os sectários, que não suportam a ideia de não se apoiar ninguém, essa é uma atitude difícil de engolir.

Mas um jornal não vive somente de opinião. É preciso ter um sólido corpo de repórteres. Aqui, o Estadão não escapa da sina do, em geral, pobre jornalismo que se pratica no Brasil. Eu mesmo não canso de criticar matérias publicadas aqui, com seus erros e vieses. Tendo dito isso, o jornalismo profissional ainda é, e sempre será, imprescindível. Sabemos disso quando, ao receber uma notícia no zapzap, logo buscamos na chamada mídia profissional uma confirmação. Sabemos que as notícias só chegam aos jornais depois de devidamente apuradas. Não há falhas? Claro que há! A natureza humana é falha. Mas, dentro da fragilidade humana, o método jornalístico tradicional ainda é o menos ruim.

Faço menção honrosa ao caderno de Economia do Estadão, que poderia ser um jornal de economia à parte. No geral, as matérias têm excelente qualidade, e atingem um nível de profundidade surpreendentemente profundo para um jornal de temas gerais.

Já é hora de terminar essa singela homenagem. Meu pai já assinava o Estadão desde que me conheço por gente. Portanto, já lá se vão mais de 50 anos lendo o diário paulista. Como já não assisto mais a telejornais regularmente, posso dizer que o Estadão é o veículo de comunicação de maior longevidade na minha vida. É notável como, ao longo de décadas, um jornal muda, mas consegue permanecer o mesmo.

Parabéns, Estadão!

Blog do Marcelo Guterman é uma publicação apoiada pelos leitores.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

José Serra se vinga, em 2024, do “golpe publicitário” armado pelo PT em 2022 (Estadão)

Da ‘Carta ao Povo Brasileiro’ ao vídeo ao povo brasileiro

José Serra

O Estado de S. Paulo, 26 de dez. de 2024

Em 2002, quando disputei a minha primeira eleição a presidente da República, na sucessão de Fernando Henrique Cardoso, deparei-me com um PT que jurava que não era o PT. A Carta ao Povo Brasileiro, urdida nos porões da burocracia petista, vendia a alma em troca da aceitação do mercado financeiro de um governo de esquerda.

E aí já começava a ópera bufa. Aqueles ativistas radicais que pregavam o “fora FHC” em manifestações estridentes, os que saíram em caravana pelo dito “Brasil real” para apontar as mazelas do governo capitalista pareciam não existir mais. Já dos que haviam criticado e se posicionado contra o Plano Real, nem uma sombra restou.

Lula passara a ser o comandante de um partido pronto a dar garantias de que seria perfeitamente adequado ao establishment. A Carta ao Povo Brasileiro expressava um cavalo de pau ideológico desavergonhado. Ela dizia que sim, os contratos seriam respeitados, mas queria dizer mais: que o mercado financeiro podia confiar que o governo petista manteria tudo como dantes. A Carta sepultou as palavras de ordem e mudou a forma de o Partido dos Trabalhadores compreender a realidade. Antigos inimigos execráveis passaram, rapidamente, à condição de parceiros.

Pois bem, passaram-se 22 anos. Embora o PT tente equacionar sua geralmente débil credibilidade, que tem origem na contabilidade criativa do segundo governo Lula e nas traquinagens contábeis do governo Dilma, sim, há uma história de “malandragens” na gestão da política fiscal dos governos do PT, e isso turbina o descrédito do mercado, jogando lenha na fogueira dos processos especulativos.

Nos últimos dias, o mesmo quadro de desconfiança do chamado “mercado” para com o governo ganhou uma forma aguda. O centro visível da questão era a distância entre a realidade das contas públicas e as metas que o próprio governo propôs dentro do arcabouço fiscal.

Mas o descrédito nem veio do quantitativo do pacote fiscal. O visível descompromisso do conjunto do governo e do presidente com a montagem das medidas deu a indicação de que o passado da contabilidade criativa não tinha sido enterrado. Para completar, a desastrosa comunicação do pacote à sociedade deixou escancarada a dificuldade interna do governo de articular os compromissos políticos, os interesses estabelecidos e as contas públicas.

O conjunto de medidas fiscais que tinha apoio fragmentado internamente ao Executivo chegou ao Legislativo da pior forma. Primeiro porque a exuberância dos posicionamentos dos presidentes das duas Casas Legislativas deixou claro que o governo não tinha o controle do processo. Segundo, porque ver o pacote derrotado indicaria uma imensa fragilidade política e fiscal.

Os R$ 8 bilhões despejados na forma de pagamentos de emendas aos parlamentares, em dezembro, não são apenas anormalidade desta forma heterodoxa de negociação de ideias para basear a construção das leis que dão suporte jurídico ao funcionamento de nossa economia e da sociedade brasileira. Em verdade, são fruto do desespero governamental em perder novamente o jogo do Congresso.

Enquanto isso, as tensões no mundo financeiro explodiam. As estimativas de taxas de juros futuros foram às nuvens diante dos movimentos de elevação da Selic e do comunicado do Banco Central de que novas correções de 1% seriam realizadas nas duas próximas reuniões. As taxas dos títulos do Tesouro também explodiram, gerando grandes estragos nas carteiras dos investidores e até dificuldades de negociação de títulos já emitidos.

No mercado de câmbio, a forma mais visível da crise, o dólar chegou aos R$ 6,30. Não foi pura especulação, afinal há um forte movimento de transferência de lucros das filiais brasileiras a suas matrizes no final do ano. Estas podem ter sido turbinadas pela insegurança sobre possíveis medidas com respeito ao Imposto de Renda das empresas e pelo volume de lucros gerado em 2024.

Não há dúvida de que ocorreu um processo especulativo, baseado na insegurança fiscal, na elevação da taxa de juros e na percepção de debilidade do governo. Pior, o guardião da moeda, o Banco Central, ficou apenas olhando, como se não tivesse nada que ver com aquilo. Depois, saiu correndo atrás e teve de despejar bilhões de dólares para estancar a hemorragia.

Ao final da ópera o País foi brindado com o vídeo ao povo brasileiro, veiculado pelas redes sociais, com direito à presença de Lula, Haddad e Galípolo. Nele, Lula sucumbe ao “mercado”, que tanto atacara recentemente, e promete que não se intrometerá na política monetária do Banco Central. De quebra, reautoriza Haddad como condutor das decisões sobre as contas públicas.

O vídeo ao povo brasileiro é quase uma confissão de impotência ante o mercado. Assim como a Carta ao Povo Brasileiro era a mensagem de que o PT não faria nada do que sempre propôs. Só que a discrepância entre o discurso e a prática é o combustível dos processos especulativos, ancorados na falta de credibilidade. •

Admirável mundo novo - Rubens Barbosa (Estadão)

 Opinião:  

Admirável mundo novo

Estão governo e empresas brasileiras conscientes das mudanças e preparados para defender os interesses nacionais neste novo cenário mundial?

 

Por Rubens Barbosa

24/12/2024 | 03h00

No meio de grandes transformações na economia e na ordem internacional, estamos entrando numa nova etapa histórica pela interação de diversos fatores de grande intensidade.

Em primeiro lugar, a supremacia ocidental econômica, financeira e militar dos últimos 200 anos está sendo questionada e, na visão de muitos, está sendo reduzida. O mundo começa a se dividir em um grupo de nações ocidentais (sem definição geográfica) – EUA, Europa, Japão, Austrália e outras – e, de outro, um crescente grupo de nações, liderado pela China, tendo como base o Brics, formado por dez países, com 13 nações convidadas como associadas e mais de uma dezena pedindo para integrá-lo. A influência dos EUA, como a nação mais poderosa do mundo, parece estar em declínio, como se vê na tentativa de conter o conflito no Oriente Médio.

Em segundo lugar, o rápido avanço das tecnologias em várias áreas – inteligência artificial, computação, biotecnologia –, o mais profundo da história da humanidade (maior, talvez, que a invenção da roda, que a revolução industrial e mesmo que a arma nuclear), sobretudo pela possibilidade de a inteligência artificial tomar decisões independentemente da ação humana, com profundas consequências políticas e econômicas globais.

Em terceiro lugar, as mudanças climáticas produzidas pela ação humana estão na raiz de uma crescente crise ecológica, com desastres em todos os continentes (furacões e inundações, queimadas, chuvas e secas) causando destruição e morte, além do crescimento do nível dos oceanos em razão do aquecimento global, ameaçando aumentar o número de refugiados.

Em quarto lugar, as instituições multilaterais criadas depois do fim da guerra, em 1945, para a preservação da paz e da segurança mundiais, não são mais capazes de responder a todos esses desafios por não mais serem representativas da nova geopolítica e da nova geoeconomia global. A Cúpula do Futuro, reunião convocada pelo secretário-geral da ONU, em setembro passado em Nova York, para examinar como poderia ser a governança num mundo multipolar em tempos de grandes mudanças e desafios para a humanidade, terminou esvaziada, sem qualquer perspectiva para indicar caminhos de uma nova governança global. As guerras na Ucrânia e no Oriente Médio em crescente tensão, pela invasão do Líbano e da Síria pelo exército israelense, com a possibilidade de escalada, continuarão a ter impacto na economia e na política global. Caso o conflito se estenda com um eventual ataque de Israel contra o Irã, com o apoio dos EUA, a situação poderá sair do controle, com a possível interferência de potências antiocidentais ao lado do Irã.

Um quinto fator poderia ser acrescentado. Um livro recente – A guerra por Outros Meios (War by Other Means, Harvard Press) – capta as mudanças na formulação e na execução das políticas internas e externas dos países. Um dos aspectos novos examinados é o uso de instrumentos econômicos e comerciais como um meio de alcançar objetivos geopolíticos. A relação entre poder econômico e geopolítica passa a ser fundamental no mundo atual. Nesse sentido, tornam-se elementos básicos a performance macroeconômica do país, a evolução da política econômica internacional e os instrumentos utilizados na busca dos objetivos geopolíticos.

A geoeconomia passou a ser um elemento crítico quando se analisa o papel de cada país neste novo mundo. A geoeconomia focaliza o uso da força por meio de instrumentos econômicos e comerciais para promover e defender os interesses nacionais, para produzir resultados geopolíticos favoráveis e efeitos positivos sobre os objetivos geopolíticos. As restrições à venda de chips para a China, a proibição de compra de roteadores chineses pelos EUA, as medidas protecionistas comerciais da União Europeia, com a desculpa de evitar o desmatamento de florestas, as políticas restritivas minerais da China e o congelamento unilateral de reservas de terceiros países são alguns exemplos da utilização de medidas econômicas como armas, criando verdadeiras guerras por outros meios.

No contexto da geoeconomia, a defesa da segurança nacional passa a ser frequentemente utilizada na ação política nos EUA, na China e em outros países. Utilizado de forma crescente como justificativa de medidas econômicas e comerciais, “o papel da segurança nacional na política e estratégia de comércio e investimento está aumentando em toda parte. Há mudanças na maneira como as pessoas estão abordando a questão da política comercial, a política econômica internacional e isso é verdade nas economias de mercado do mundo todo”, como reconheceu alto funcionário norte-americano. As prioridades econômicas e as novas preocupações com a segurança nacional (que pode incluir tudo) se fundem e tornam superados os conceitos de liberalismo e livre mercado.

Essas são as novas realidades globais. Os países terão de se ajustar para conseguir defender com êxito seus próprios interesses, mas, em primeiro lugar, terão de definir seus objetivos estratégicos, fortalecer os fundamentos de sua economia e ter uma clara visão de seus interesses de médio e longo prazos.

Estão governo e empresas brasileiras conscientes dessas mudanças e preparados para defender os interesses nacionais neste novo cenário?

 

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE), É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS

 

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/admiravel-mundo-novo/