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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Quem não aprendeu deve passar de ano? - Claudio de Moura Castro (Estadão)

 Quem não aprendeu deve passar de ano?

 

Claudio de Moura Castro

 

 

Parece muito claro, em cada ano letivo, há um conjunto de aprendizados. Quem conseguiu dominá-los, passa para o ano seguinte, para enfrentar novos assuntos. Quem não conseguiu, deve tentar de novo, ou seja, repetir o ano. É única chance para aprender o que deveria. A lógica é cristalina.

 

Pois não é que apareceu uma tal de “progressão automática”! Nela, quem não aprendeu, ainda assim, passa de ano. Contraria o bom senso.

 

A confusão criada por essa regra é antiga dentre nós. Mas um artigo recente mostra que, nos Estados Unidos, as mesmas controvérsias estão pipocando (https://theconversation.com/why-holding-kids-back-fails-and-what-to-do-about-it). Alguns estados reprovam, outros não. O artigo, através de pesquisas rigorosas compara o impacto de uma ou outra política. Vale notar, os resultados são equivalentes aos já encontrados pelo mundo afora, desde décadas atrás. Ou seja, poucas novidades.

 

Antes de entrar no assunto, uma notinha sobre o método científico. Nele, começamos por formular algumas hipóteses ou teorias. Por exemplo, a promoção automática é prejudicial aos alunos. Porém, manda a ciência, chega a hora de verificar se a hipótese descreve o mundo real. E aqui está o imperativo metodológico: se a realidade é diferente, lixo com a teoria! Se não há imperfeições nos métodos usados, somos obrigados a rejeitar nossa bela explicação.

 

Basicamente, a nova revisão da literatura técnica mostrou, novamente, que promover quem não sabe é melhor do que fazê-lo repetir o ano. Poderíamos parar por aqui, se a conclusão é essa, temos que aceita-la.

 

Mas ajuda tentar entender o porquê. Fica demonstrado, os repetentes têm desempenho pior do que se fossem aprovados sem saber. Ao confrontarem as mesmas aulas, terão os mesmos resultados negativos. Ademais, a repetência chamusca sua autoestima e aumenta o seu grau de ansiedade. Pior, nos Estados Unidos, acirra a desigualdade racial. E, obviamente, aumenta os custos da educação pública. 

 

Diante disso, a melhor solução é manter a promoção automática e, ao mesmo tempo, identificar precocemente os alunos que, durante o ano, vão ficando para trás. Para eles, cumpre oferecer auxílio suplementar, para que não se distanciem dos colegas, ao longo do mesmo ano.

 

O interesse desse artigo é sua total aplicabilidade no Brasil. Estivemos e estamos diante do mesmo quadro. Onde a repetência é permitida, esses alunos se separam de seus colegas e amigos, ficando isolados em turmas mais jovens. Ficam frustrados. Não têm paciência para enfrentar as mesmas aulas que não haviam entendido antes. Assim, aprendem menos do que se estivessem na série seguinte. Note-se bem, isso não é divagação ou especulação, é o que mostram as boas pesquisas. 

 

O caso brasileiro merece alguns comentários adicionais. Seja nas mesas de bar, seja nos eventos mais sérios, a mesma choradeira contra a progressão automática se faz presente. 

 

Os pais se queixam de que se eliminam os incentivos para estudar mais. Ficou mais difícil para eles forçar os pimpolhos a mergulharem nos livros, já que não vão ser reprovados. De fato, esse parece um argumento imbatível. 

 

Porém, não podemos ignorar uma diferença fundamental. Quem se queixa são os pais de classe média e alta, mais conscientes de seu papel de assegurar uma boa educação para seus filhos. 

 

No fundo, não é que a repetência seja saudável para eles. Quem faz a mágica é o medo da repetência. Esse sim, é um santo remédio para esses jovens. Como temem a ira paterna e as terríveis punições pairando no ar, tratam de não levar bomba. Ou seja, o temor da reprovação é um acicate poderoso para estudar mais. E, com efeito, quase todos conseguem escapar dela.

 

É totalmente distinto o caso das famílias mais pobres – muito mais numerosas que as ricas. Em geral, acreditam que repetir é melhor, é uma nova chance de aprender. Erradamente, nem pressionam os filhos para estudar mais e nem defendem a progressão automática – como deveriam, se entendessem do assunto. Repetir é a vida, é o destino.

 

É lamentável a incapacidade da nossa escola para lidar com os muitos que vão ficando para trás. Mas como amplamente demonstram as pesquisas, os repetentes mais pobres são os grandes perdedores.

 

Insistindo, uma política que admite a reprovação é a alternativa mais nociva. Atrapalha um pouquinho as famílias de classe média, que perdem uma excelente ferramenta, chamada de “medo da repetência”. Mas pune, cruelmente, a maioria mais pobre, para quem a reprovação e repetência levam a resultados bem piores.

 

Como dito, a melhor solução é aquela já mencionada. Nada de repetência, mas uma identificação precoce daqueles que vão ficando para trás, seguida de apoio firme e eficaz para eles. Não há grandes mistérios para implementar essa assistência seletiva. Contudo, na maioria das escolas públicas, tais providências primam pela ausência. 

 

 


domingo, 27 de outubro de 2024

A esquerda brasileira enfrenta um desafio crucial : entrevista com Jairo Nicolau - Hugo Henud (Estadão)

 Dica de leitura : "A esquerda brasileira enfrenta um desafio crucial"( Jairo Nicolau, FGV/Rio)

Entrevista | Jairo Nicolau, cientista político: ‘Faltam à esquerda líderes para dialogar com o Brasil atual’

Por Hugo Henud 

 O Estado de S. Paulo, domingo, 27 de outubro de 2024


Para Jairo Nicolau, professor da FGV, a ausência de novas lideranças na esquerda capazes de se conectar com o novo perfil do eleitorado explica o desempenho eleitoral aquém do esperado desse campo político: ‘Eleitor vota em líderes, não em partidos’

 

A esquerda brasileira enfrenta um desafio crucial: a falta de renovação de lideranças capazes de dialogar com o novo perfil do eleitorado, especialmente em um País onde as personalidades políticas têm mais peso que os programas partidários. A avaliação é do cientista político e professor da FGV, Jairo Nicolau, que aponta que o eleitor se conecta mais com figuras carismáticas capazes de traduzir seus anseios do que com ideias ou plataformas de governo. ‘O brasileiro escolhe candidatos por afinidade pessoal, não por propostas’, afirma Nicolau, destacando que, enquanto nomes à direita ocupam esse espaço, partidos como PT e PSOL vêm perdendo terreno em segmentos nos quais antes tinham força, como periferias, jovens e evangélicos — o que explica o desempenho eleitoral aquém do esperado dessas siglas nas eleições municipais.

Em entrevista ao Estadão, Nicolau avalia que, embora o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), saia fortalecido destas eleições, esse desempenho não garante, necessariamente, sucesso nas eleições majoritárias de 2026. Como exemplo, o cientista político cita João Doria, que governou São Paulo de 2019 a 2022 e chegou a lançar sua pré-candidatura à Presidência naquele ano, mas não conseguiu viabilizar-se na disputa. “Prefiro relativizar a ideia de que vitórias ou nomes fortes com articulações — como é o caso de Tarcísio — nas eleições municipais sejam preditores de sucesso nas eleições seguintes”, pontua.

Quanto à projeção para 2026 e aos “recados” das urnas nestas eleições, Nicolau ressalta que o alto volume de recursos destinados por meio de emendas parlamentares, direcionadas por deputados federais e senadores a seus redutos eleitorais, representa um obstáculo à renovação política, ao colocar esses políticos em vantagem competitiva para a reeleição daqui a dois anos. “Nunca tivemos uma legislatura como esta, em que deputados e senadores distribuem tanto recurso para suas bases”, completa.

Confira a seguir a íntegra da entrevista concedida ao Estadão:

 

A esquerda enfrentou dificuldades em várias capitais e grandes centros urbanos. Na sua avaliação, o que explica essa perda de terreno, especialmente em regiões que antes eram redutos tradicionais desse campo político?

Vou trazer um elemento que me parece crucial para a esquerda hoje: a ausência de lideranças. O que está faltando à esquerda são justamente novas lideranças, mais do que ideias, porque o Brasil não é um país onde as pessoas votam em partidos pelas ideias. Um exemplo disso são as novas lideranças da direita, como Nikolas Ferreira. São muitas lideranças de direita que estão surgindo nos últimos anos. Por outro lado, quantos jovens com menos de 40 anos existem entre as lideranças de esquerda? Quase nenhum. Veja as eleições em São Paulo: a discussão na capital paulista gira em torno de três personagens – NunesBoulos Marçal. Quer dizer, quem falou em partido, quem falou em doutrina em São Paulo? Ninguém. No caso de Marçal, não é sobre suas ideias, mas sim sobre ele como figura, como pessoa física, que atraiu o eleitorado. Quem fala em partido? Quem fala em programa? São os nomes que se destacam: LulaJair Bolsonaro, Pablo Marçal, Ricardo Nunes, Guilherme Boulos, Nikolas. Faltam à esquerda líderes para dialogar com o Brasil atual.

E quanto ao desempenho do PT nessas eleições? Há uma percepção de que políticas públicas assistencialistas, por exemplo, já não são suficientes para assegurar a adesão eleitoral.

Os partidos de esquerda, diante do insucesso em algumas cidades e de certo cansaço com políticas públicas do governo Lula, precisam fazer um balanço. Mas, se me perguntassem o que eu sugeriria para um partido de esquerda formar novos quadros ou discutir propostas para o Brasil, eu diria: formar novas lideranças. O eleitor vota em líderes, não em partidos.

Quem são, hoje, os nomes do PT? Faltam às siglas de esquerda lideranças emergentes que possam se comunicar, nas cidades e nas câmaras, com um Brasil que mudou. Um país onde as pessoas são mais escolarizadas, mais religiosas; onde a elite é menos homogênea racialmente — ainda majoritariamente branca, mas em transformação. Um Brasil em que as pessoas se conectam pelas redes sociais e por novos meios. Esse novo Brasil demanda novas lideranças. Aqui, os partidos dependem de líderes mais do que em outros países, e o que falta à esquerda, mais que programas, são lideranças capazes de se conectar com o novo perfil do eleitorado. O brasileiro escolhe candidatos por afinidade pessoal, não por propostas.

Qual partido conseguiu, de fato, dialogar melhor com os eleitores evangélicos nessas eleições? Os resultados mostram que partidos de centro e direita tiveram mais sucesso nesse público. Quais fatores ajudam a explicar esse desempenho?

Esse é um fenômeno recente. Nem sempre a esquerda teve dificuldades. Lula já foi eleito presidente com o apoio das principais denominações evangélicas, em 2002 e 2006. O que aconteceu é que parte da agenda comportamental, antes pouco politizada, foi politizada e atraiu os evangélicos para a direita. E isso ocorreu porque a direita apresentou líderes que dialogam diretamente com esse segmento, enquanto a esquerda não apresentou quase nenhum representante no segmento. Sabe como os partidos de esquerda vão se aproximar dos evangélicos? Quando tiverem um dirigente do PT, por exemplo, que seja evangélico, carismático e que as pessoas realmente gostem. Assim, eles chegam aos evangélicos. O Brasil funciona em função de nomes.

Como o senhor avalia a atuação do governador Tarcísio de Freitas nestas eleições? Ele sai politicamente fortalecido para 2026?

O Republicanos, partido de Tarcísio, teve um bom desempenho, o que, sem dúvida, o fortalece como uma liderança importante no Estado. No entanto, prefiro relativizar a ideia de que vitórias ou nomes fortes com articulações — como é o caso de Tarcísio — nas eleições municipais sejam, necessariamente, preditores de sucesso nas eleições seguintes. Veja o caso de Doria: enquanto prefeito e, depois, governador, muitos analistas o apontavam como um dos principais nomes para a eleição presidencial de 2022, mas isso não se concretizou. O mesmo vale para Serra, Cabral, Alckmin... Portanto, não é tão simples assim.

Olhando para o cenário nacional, os resultados municipais podem influenciar as eleições de 2026?

Os resultados municipais nunca influenciaram resultados nacionais. Resultados municipais servem para uma reconfiguração da distribuição dos partidos como as câmaras municipais, prefeitura, e essa mudança acontece de maneira tênue. Mas mostra padrões, tendências...

Existe um “recado” das urnas que já sinaliza tendências?

Com esses resultados, acho que dificilmente a direita deixará de dominar a Câmara dos Deputados, com cerca de 60% a 70% dos assentos. Posso dizer isso com certa segurança. A direita, provavelmente, será majoritária no Senado e elegerá muitos nomes. Também está ocorrendo uma clara compactação do sistema partidário brasileiro e uma redução da dispersão, tornando a vida muito difícil para os pequenos partidos devido à reforma política e à cláusula de desempenho [medida que limita o acesso de partidos com pouca votação ao fundo partidário e tempo de propaganda em rádio e TV]. Outro ponto: um partido central da política brasileira até 2016 está em um processo contínuo de declínio preocupante, que é o PSDB. Eu diria que, se o PSDB não tivesse dois governos de Estado, hoje três, estaria uma situação ainda mais complicada. Já os partidos da esquerda precisam se movimentar.

O senhor avalia que as emendas parlamentares tiveram um papel decisivo no apoio de lideranças locais nas campanhas municipais? Até que ponto essas emendas podem influenciar os resultados das eleições e o processo de renovação política?

O que vai começar a atrapalhar a renovação é a combinação dos recursos de financiamento público com as emendas parlamentares, que subiram a valores astronômicos. Nunca tivemos uma legislatura como esta, em que deputados e senadores distribuem tanto recurso para suas bases. Quando chegarmos a 2026, com as redes que esses políticos montaram — que já apareceram nas eleições municipais em algumas cidades — será muito difícil que um deputado ou senador não seja reeleito. Hoje, um deputado está em uma posição muito melhor do que seus colegas de 10 ou 20 anos atrás, quando as emendas ainda não eram obrigatórias. Agora, são valores de milhões, que superam até o orçamento de pequenas cidades no Brasil. Esses recursos são distribuídos a cidades, organizações da sociedade civil e entidades estatais; ou seja, todos os aliados do político. Em 2026, provavelmente veremos uma redução na renovação, porque os políticos que já ocupam cargos estão em uma situação muito mais favorável do que seus desafiadores.

 

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito mais que a renovação de líder à esquerda se afastou do eleitor pela sua origem marxista que separa O capital e o trabalho sendo os dois um dependente do outro e inerente da vida
Acrescentando isso ao valor e a importância que a esquerda dá asfalta dente áreas completamente fora da média do eleitor brasileiro que é conservador cristão e preza pela família
Para acabar com o prestígio que ainda tinha , ao assumir esse viés autoritário do. PT apoio do STF censurando, perseguindo e prendendo a oposição está afastando mais ainda o eleitor

27/10/24 11:00

domingo, 29 de setembro de 2024

A indignação seletiva da diplomacia brasileira Lourival Sant'Anna (Estadão)

 A indignação seletiva da diplomacia brasileira

A subordinação ideológica do Itamaraty
Lourival Sant'Anna
O Estado de S. Paulo
29 de setembro de 2024

A retirada dos diplomatas brasileiros antes do discurso do primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, na Assembleia-Geral da ONU, foi uma amostra de subordinação do Itamaraty à ideologia que emana do Palácio do Planalto e aos ressentimentos antiocidentais que dominam a política externa brasileira.

Os brasileiros imitaram o gesto de colegas do Irã, Turquia, Chile, Colômbia, Botsuana, Djibuti e Guiné-Bissau, entre outros. Numa flagrante indignação seletiva, eles não tiveram a mesma iniciativa perante os discursos ultrajantes e delirantes do embaixador russo, Vasili Nebenzia, que usa a tribuna da ONU desde 2022 para repetir as distorções da história da Ucrânia e as paranoias do ditador Vladimir Putin.

Netanyahu proferiu um discurso abusivo e arrogante, repleto de ameaças. Mas, diferentemente de Putin, tratado com mal disfarçada complacência pelo presidente Lula e seu assessor especial Celso Amorim, Netanyahu defende seu país da ameaça real, não imaginária, de inimigos a seu redor.

A indignação seletiva é apenas o pano de fundo da incoerência que torna ainda mais espantoso o gesto dos diplomatas. A retirada do auditório da ONU assinala a ruptura das tradições da diplomacia brasileira, baseadas na sobriedade, profissionalismo e coerência.

O Brasil é uma potência regional média. Não tem o poderio militar, econômico, político e tecnológico para impor seu desejo ao mundo. Países com esse perfil compensam essas fragilidades com o chamado poder brando, construído com a fidelidade a valores universais e, acima de tudo, às leis e tratados internacionais.

TRADIÇÃO. Não é por acaso que corpo diplomático e Forças Armadas são dois estamentos, o que significa um status distinto do restante do funcionalismo público. Essas duas categorias devem estar ainda mais blindadas de influências políticas, porque representam interesses nacionais permanentes, que não podem ser contaminados por interesses eleitoreiros e afinidades ideológicas dos governantes de turno.

A subordinação da política externa a afinidades ideológicas e pessoais de um governante acarreta prejuízos à credibilidade de um país e aos interesses nacionais. Esses danos se amplificam quando, para esconder suas incoerências, o governante distorce os fatos e fere a dignidade de outros povos, como tem feito sistematicamente o presidente Lula. Desde que ele assumiu pela primeira vez a presidência, há duas décadas, a longa tradição da diplomacia brasileira vem desmoronando. @


E COLUNISTA DO ESTADÃO E ANALISTA DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS


sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Editorial do Estadão desmonta a lamentável politica externa de Lula

 O UMBIGO DE LULA 

O Estado de S.Paulo - Editorial - 27.09.2024

Quando olha para seu umbigo, o presidente Lula da Silva imagina ver o mundo. A passagem do demiurgo pela Assembleia Geral da ONU foi um retrato penoso de sua decadência e da desmoralização para a qual ela está arrastando a política externa brasileira. No plano ideológico, tudo é reduzido a uma grande conspiração dos “ricos” contra os “pobres”. No plano pragmático, tudo se passa como se os conflitos globais pudessem ser solucionados em conversas de botequim.

É preciso dizer que, naquilo que tem de genuíno, o sonho de Lula, ainda que limitado por seu enquadramento progressista, seria pertinente e até, em certa medida, factível. Basicamente, é a ideia do Brasil protagonizando alguma liderança numa coalizão do chamado “Sul Global” para obter concessões dos países desenvolvidos.

Do ponto de vista estrutural, o Brasil é uma potência pacífica na região latino-americana, um grande exportador de alimentos, guardião de minerais e biomas críticos, e ainda conta com um quadro diplomático competente. Do ponto de vista conjuntural, Lula tem (ou ao menos teve) carisma, e sua vitória sobre Jair Bolsonaro foi vista com bons olhos pelas lideranças democráticas, a começar pelo americano Joe Biden. A conjunção do G-20, em 2024, e da COP-30, em 2025, ofereceria condições para o Brasil se projetar, erguer pontes e promover negociações.

Mas para que isso funcionasse o presidente precisaria combinar de maneira crível credenciais democráticas, capacidade de articulação e humildade. Movida, porém, pela megalomania de Lula, inspirada pela ideologia perniciosa de Celso Amorim, a diplomacia presidencial se choca com a realidade da maneira mais grotesca, e dos destroços de um sonho resta apenas uma massa incôngrua de delírios.

Em questões em que o Brasil tem escassa capacidade de influência, como a governança global ou a geopolítica na Europa ou no Oriente Médio, Lula foi grandiloquente, mas oscilou entre quimeras irrealistas e o mais bruto cinismo. Onde o Brasil poderia dar exemplos de responsabilidade e liderança, como no meio ambiente ou na geopolítica latino-americana, foi omisso – e também cínico.

Que espetáculo deprimente foi ver jovens lideranças como os presidentes da Ucrânia ou do Chile passando descomposturas em Lula. Ao sugerir que, se Volodmir Zelenski fosse “esperto”, aceitaria a proposta de paz de Brasil e China, Lula se prestou a garoto de recados de um “chefe mafioso” (como disse na ONU o chanceler britânico, David Lammy, sobre Vladimir Putin). Zelenski eviscerou o plano sino-brasileiro como aquilo que é – uma proposta de capitulação da Ucrânia –, questionou o “verdadeiro interesse” do Brasil e insinuou que o de Lula é uma ambição narcisista de ser premiado com um Nobel da Paz. Bingo.

Em uma cúpula “pela democracia” e “contra o extremismo” promovida pelo Brasil, esvaziada e só com lideranças de esquerda, o chileno Gabriel Boric desmoralizou sem meias palavras a pusilanimidade de Lula em relação à Venezuela e outras ditaduras.

As lideranças democráticas talvez até tenham visto com condescendência as platitudes de Lula sobre a “reforma da ONU” e suas promessas de liderá-la, mas se frustraram com sua evasão sobre a questão mais premente na América Latina, o recrudescimento da ditadura de Maduro, e com o vácuo de ofertas do Brasil em relação ao meio ambiente que não literalmente “apagar incêndios”. E certamente estão desconfiadas de seu alinhamento com China e Rússia.

Eis a dura verdade: para China, Rússia, Irã e outras autocracias, Lula não passa de um “idiota útil”; para o Ocidente, ele é, na melhor das hipóteses, um fanfarrão inútil, e, na pior, um ressentido cínico. Não há pontes firmes a construir nem negociações sérias a encampar com tão leviana e irrelevante figura. Talvez a mais eloquente imagem do tour de Lula por Nova York tenha sido o momento em que a organização de uma cúpula ironicamente chamada “do Futuro” se viu obrigada a cortar o seu microfone por estouro de tempo, e o envelhecido líder progressista foi deixado gesticulando aos quatro ventos, falando sozinho, aos ouvidos de ninguém.

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Reforma do Judiciário no México A insegurança jurídica e influência do crime organizado - Rubens Barbosa (Estadão)

Opinião: 

Reforma do Judiciário no México

A insegurança jurídica, a influência do crime organizado e a politização das decisões poderão vir a ser evidenciadas nos próximos anos


Por Rubens Barbosa

Estadão, 24/09/2024

 

O Congresso mexicano aprovou uma ampla mudança constitucional que prevê profunda reforma do Judiciário, submetida pelo presidente López Obrador na reta final de seu mandato. A lei, já sancionada por Obrador, deverá ser aprovada por cerca de 27 Estados onde o partido Morena, de Obrador, tem ampla maioria. Nas eleições presidenciais de junho passado, o atual presidente conseguiu eleger Claudia Sheinbaum como sua sucessora e alcançou ampla maioria não só nas duas casas do Congresso, mas também em 17 dos 32 Legislativos estaduais.

As mudanças aprovadas no México são semelhantes à reforma que Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, quis aprovar em razão de desavenças com a Suprema Corte, mas não conseguiu por falta de apoio da sociedade israelense e de votos no Knesset. Segundo os críticos da reforma, caso aprovada, acabaria com a independência judicial em Israel.

Populista, a reforma do Judiciário no México, entre suas principais medidas, estabelece que mais de 6.500 juízes, incluindo os ministros da Suprema Corte de Justiça da nação (equivalente ao STF), terão seus mandatos encerrados e serão substituídos a partir de eleições por voto popular, com listas de candidatos elaboradas pelos Poderes Executivos, Legislativos e Judiciário, em 2025 e 2027. A reforma reduz de 11 para 9 os ministros da Suprema Corte, diminui a duração de seus mandatos de 15 para 12 anos e extingue a exigência mínima de 35 anos de idade para a indicação à Corte. São igualmente retirados alguns benefícios de funcionários do Judiciário e cria-se um órgão fiscalizador, composto por cinco integrantes.

A implementação dessa controvertida reforma deverá ser realizada pela nova presidente mexicana, que deverá conduzir, de forma direta, o pleito para a escolha dos juízes no próximo ano. Claudia Sheinbaum declarou que “o regime de corrupção e de privilégios está se tornando uma coisa do passado” e que “uma democracia verdadeira e o Estado de Direito começam a ser construídos”. A mudança deverá permitir ao partido governamental, o Morena, o controle dos Três Poderes, longe de uma verdadeira democracia.

A reforma constitucional do Judiciário gerou fortes manifestações contrárias à aprovação da lei e muitos analistas observam que a insegurança jurídica dela decorrente poderá afetar novos investimentos, inclusive aqueles em infraestrutura, tão necessários para atender o grande número de empresas que se está instalando no México para se beneficiar do mercado norte-americano. Há igualmente o temor de que, com a eleição para o preenchimento dos postos no Judiciário, as disputas serão politizadas e o Judiciário poderia ser também contaminado politicamente, perdendo sua autonomia.

Levando em conta a crescente participação do crime organizado na sociedade mexicana e sua infiltração nos aparelhos de Estado, o novo sistema judiciário poderá ficar mais acessível à infiltração de juízes de alguma forma ligados ao crime organizado. O México agora, na prática, se transformou num país de partido único. Em razão do novo sistema eleitoral para a escolha dos juízes, inclusive aqueles para a Suprema Corte, o país enfrentará um grande desafio para esse Judiciário eleito se manter independente, como é de praxe em qualquer democracia.

A sociedade mexicana está dividida sobre o tema. Muitos acham que a reforma é necessária para benefício de todos, e não de uns poucos, como ocorre com o sistema atual. Outros afirmam que acabou a separação de Poderes e a República, como estabelecida até agora, deixa de existir. Seria consagrada a afirmação de um governo autoritário.

A reforma do Judiciário provocou reação dos Estados Unidos e do Canadá. Washington falou de “um grande risco” e o governo canadense demonstrou preocupação com a insegurança jurídica de parte dos investidores.

Acompanhando de longe essa controvertida modificação constitucional, pode-se dizer que houve forte motivação ideológica para sua aprovação. López Obrador sempre foi um político da ala esquerda do espectro político mexicano e durante seu governo muitas foram as disputas entre o Executivo e o Judiciário. A proposta da reforma estava sendo discutida e era aguardada. O momento escolhido, porém, é simbólico. Obrador quis ser o autor da mudança um mês antes do fim de seu mandato, preferindo deixar que sua sucessora apenas implemente as reformas.

Não se pode ignorar o risco de politização na escolha dos juízes que irão concorrer aos postos vagos, inclusive na Suprema Corte. Difícil imaginar que o partido Morena – na prática o único partido com força no cenário político mexicano – não vai influir na escolha de candidatos para todos esses cargos. A insegurança jurídica, a influência do crime organizado e a politização das decisões poderão vir a ser evidenciadas nos próximos anos.

Qualquer semelhança com as discussões que estão em curso há algum tempo no Brasil sobre a insegurança jurídica derivada da falta de harmonia e de coordenação entre os Três Poderes, as consequências políticas, econômicas e sociais em decorrência da judicialização da política e da política de judicialização e sobre a infiltração do crime organizado em diferentes níveis das esferas municipais, estaduais e federais não será mera coincidência.

 

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE), É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS

 

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/reforma-do-judiciario-no-mexico/

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Os “progressos” da politica brasileira - Fabiano Lana (Estadão)

 https://www.estadao.com.br/politica/fabiano-lana/qual-e-o-o-brasil-que-emerge-de-pablo-marcal/

Originário da classe C, evangélico, do Centro-Oeste agro, forjado na linguagem das redes sociais, de “direita”, vendedor de livros de autoajuda, Pablo Marçal se tornou expressão de um Brasil que tanta gente gosta de desprezar, mas que cada vez mais dá as cartas. Além de um fenômeno inesperado, o candidato do PRTB hoje é um arquétipo de um contingente de brasileiros que não vê com bons olhos nem a tradicional elite cultural-administrativa, com seus intelectuais, artistas, jornalistas, professores de universidades públicas de “humanas”, e políticos, mas também não se entusiasma com as políticas de Estado para a população mais miserável do País – porque se considera esquecido.

O Brasil é tão pobre que hoje um trabalhador com carteira assinada com dois salários mínimos já está na metade superior da pirâmide social brasileira. Essa pessoa, porém, vê a vida como um desafio diário. Estudou em escolas públicas com péssima qualidade, vive em lugares com alto índice de violência e pode ficar horas diárias em um transporte público sucateado – ou arrisca a vida com sua moto de baixa cilindrada em um trânsito feroz. Se faz faculdade, é cara, e se endivida para pagar seus estudos.

Ou então pode ser um motorista de Uber, um entregador de Ifood, uma atendente de farmácia, uma recepcionista de hotel, uma caixa de supermercado. Que sempre que possível confere seu celular para checar as últimas atualizações do Instagram ou ouvir e responder algum áudio do WhatsApp. Que se sente mais cidadã na igreja evangélica, quando finalmente não está vestindo uniforme, conforme insight do antropólogo Juliano Spyer. Ah, é preciso lembrar-se sempre que o atual presidente Lula só venceu nas faixas de renda de quem ganha até dois salários mínimos. Bolsonaro dominou as demais faixas, para terror de tanta gente bem-pensante.

Este articulista já esteve como observador de uma pesquisa qualitativa para avaliar um programa social destinado à classe D e E de um Estado do Nordeste. Uma espécie de complementação ao Bolsa Família. A proposta de política social foi aprovada nas classes mais altas e, obviamente, pelo público beneficiado. Mas houve razoável resistência entre os avaliados da classe C, que se consideraram mais uma vez esquecidos pelas políticas de Estado. Isso ajuda explicar o sucesso do candidato à prefeitura da maior cidade do continente.

Filho de faxineira, ex-atendente de telemarketing, frequentador de igreja evangélica desde a infância, Pablo Marçal é um integrante desse grupo e se tornou imensamente rico, em tese, mantendo esses valores e modo de ser das classes intermediárias – o que gera identificação. É fruto de certa teologia da prosperidade já bem exemplificada com Max Weber, em “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, em que a riqueza é consequência de uma bênção divina. Porém, Pablo tenta transformar essa ideologia numa linguagem pop e cheia de termos “neuroliguísticos” e de autoajuda, além de certa postura de humorista de stand up, a dar lições em auditório.

É, exemplar, que o autodenominado ex-coach tenha colocado em suas páginas na rede os apoios ao candidato Boulos, do PSOL, de uma série de cantores como Caetano Veloso, Chico César, além de uma série de artistas globais – em que ele próprio é bastante criticado. Sabe muito bem que esses artistas não são admirados pelas pessoas que procura conquistar, muito pelo contrário – estão entre os adversários a derrotar. E podem saber que os cantores sertanejos, muitas vezes originários do Centro-Oeste, com seus milhões de ouvintes nas plataformas de streaming, com orgulho de suas origens ligadas ao agronegócio, estarão do lado do candidato do nanico PRTB nesta e em eventuais campanhas futuras.

Para os jornalistas e debatedores, Marçal é meio um pesadelo, gera um ambiente até mesmo “distópico” conforme definição da apresentadora do Roda Viva, Vera Magalhães. Ao invés de responder perguntas de quem o questiona, simplesmente transforma a falsa interação em cortes nas redes que recebem dezenas de milhares de curtidas. Nesse sentido, utiliza seus oponentes como escada. Até mesmo as graves acusações que recebe, de desviar eletronicamente dinheiro de correntistas, se transformam em vitimização cibernética em seus famigerados cortes, feitos também, em grande medida, por apoiadores anônimos.

Pablo Marçal está seguro na agressividade com que parte contra jornalistas, artistas ou políticos tradicionais. Enquanto arquétipo da mentalidade de uma classe, sabe que não está sozinho nessa batalha contra o “sistema”. É um representante da cultura do ressentimento potencializada pelas redes sociais. E também transforma esse rancor em piada, em vídeos rápidos para o Tik Tok, em material de campanha.

Se Pablo irá vencer as eleições ainda é um chute - bem ou mal embasado. Temos, de qualquer maneira, um fenômeno novo que ainda não sabemos como pode ser neutralizado do ponto de vista político ou da comunicação. A versão atualizada de Jair Bolsonaro, entretanto, pode ser apenas uma evolução natural da espécie. Se não for o Pablo haverá outro, porque tem base popular e representa valores e comportamento comuns a uma gigantesca parcela da população brasileira.

Opinião por Fabiano Lana


Fabiano Lana é formado em Comunicação Social pela UFMG e em Filosofia pela UnB, onde também tem mestrado na área. Foi repórter do Jornal do Brasil, entre outros veículos. Atua como consultor de comunicação. É autor do livro “Riobaldo agarra sua morte”, em que discute interseções entre jornalismo, política e ética.

A covardia do Brasil na Venezuela: a diplomacia petista em ação e inação - Opinião Estadão

 Opinião do Estadão, 3/09/2024

A covardia do Brasil na Venezuela

Mesmo ante ordem de prisão do líder da oposição venezuelana, Lula segue incapaz de condenar a ditadura do companheiro Maduro, ofendendo os que bravamente lutam pela democracia

A repressão na Venezuela recrudesce a níveis pavorosos mesmo para os padrões de truculência do chavismo. O regime está em vias de aprovar uma “Lei contra o Fascismo” que na prática lhe dará carta branca para prender quem bem entender. Desde as eleições presidenciais, cujos resultados foram escandalosamente fraudados para dar a vitória ao ditador Nicolás Maduro, quase 30 manifestantes foram mortos e cerca de 2 mil foram detidos, entre eles dezenas de menores de idade. As milícias informais conhecidas como “Coletivos”, a Gestapo chavista, intimidam famílias em suas casas e jornalistas nas redações. O advogado da oposição foi sequestrado.

Agora, o regime ordenou a prisão do candidato da oposição, Edmundo González. Como se sabe, o único “crime” da oposição foi divulgar, graças à insubordinação cívica de funcionários dos colégios eleitorais, fotogramas das atas eleitorais que confirmam, segundo a apuração de vários observadores independentes, sua vitória nas urnas com dois terços dos votos.

Chancelarias de diversos países latino-americanos emitiram notas veementes de repúdio. Já o governo brasileiro continua a fazer cara de paisagem. Em tom prazenteiro, o chanceler paralelo do presidente Lula da Silva, Celso Amorim, disse que “eu sou do tempo da bossa nova – a gente nunca sobe o tom”. Nunca, desde que se trate de tiranos companheiros.

Se o governo, sob a retórica malandra do “pragmatismo”, se desfaz de suas obrigações de denunciar a fraude contra a vontade do povo venezuelano e as violações de seus direitos fundamentais, não é por falta de saliva. Mesmo em questões em que tem pouca influência, como a guerra na Ucrânia ou em Gaza, Lula fala e fala muito, com frequência superlativamente, como quando equiparou as operações militares de Israel ao Holocausto. O Brasil, por sinal, segue sem um embaixador em Israel.

Em 2012, quando o Parlamento do Paraguai destituiu o presidente esquerdista Fernando Lugo, a então presidente Dilma Rousseff vociferou contra uma suposta “ruptura da ordem democrática”, engendrando com os governos esquerdistas da Argentina e do Uruguai o afastamento do Paraguai do Mercosul. Pouco importa que missões internacionais tenham constatado a higidez constitucional do impeachment de Lugo: como se tratava de um companheiro progressista, Dilma deixou de lado a diplomacia “bossa-nova” de Amorim. Para confirmar que a manobra era puramente ideológica, o consórcio esquerdista do Mercosul, sem o inconveniente voto contrário do Paraguai, aprovou a entrada no bloco da – ora vejam – Venezuela chavista.

Em outras palavras, em nome da “defesa da democracia”, o lulopetismo e seus sócios sul-americanos patrocinaram um atentado às instituições do Mercosul, alijando um país em condições de normalidade democrática para favorecer um regime cujo autoritarismo é a principal marca.

A oposição venezuelana tem dado ao mundo um exemplo de heroísmo. Em outras ocasiões ela se fracionou e oscilou entre modos diversos de resistência, de boicote às eleições a tentativas de rebelião armada. Agora, mesmo diante de uma ditadura militar que mantém na coleira o Legislativo, o Judiciário e a mídia, optou pelo enfrentamento nas urnas – e venceu. Mas o governo brasileiro continua a promover a farsa da “neutralidade”, cobrando as atas eleitorais que o chavismo trancou a sete chaves e a oposição mostrou ao mundo.

Já ficou claro que o Brasil tem pouca capacidade de influência num regime manietado por China, Rússia e Cuba. Mas longe de isentá-lo, essa seria mais uma razão para que o seu chefe de Estado denunciasse com todas as letras o atentado contra a democracia e os direitos humanos em curso. Não é só um dever moral, mas constitucional. A Carta Magna brasileira preconiza que as relações exteriores do Brasil se regem, entre outros princípios, pela prevalência dos direitos humanos e o repúdio ao terrorismo.

Ditaduras dependem de duas coisas para subsistir: o apoio das Forças Armadas e da população. Maduro, aparentemente, mantém o primeiro, mas o rechaço do povo venezuelano é inequívoco. Democracias genuínas deveriam celebrar e apoiar a resistência desse povo. O Brasil, em nome das amizades de seu presidente, prefere ofendê-lo.

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

A tragédia do carisma - Paulo Roberto de Almeida ( Estadão)

 Carisma: ou se tem ou não, mas não se transmite; pode-se perder e recuperar, ou gozar de simples prestigio. Não tinha espaço para desenvolver as ideias. PRA 

A tragédia do carisma

Biden, ao reconhecer que a idade avançada não lhe facultaria disputar a reeleição, desistiu da empreitada. Lula poderia mirar-se nesse exemplo?

Paulo Roberto de Almeida

O Estado de S. Paulo, 30/08/2024 | 03h00

link: https://www.estadao.com.br/opiniao/espaco-aberto/a-tragedia-do-carisma/

Certos líderes políticos possuem carisma, outros, não. Pode-se perder o carisma original e recuperá-lo. Mas existem características únicas no fenômeno, o que o torna intransmissível a outrem, ainda que discípulo do detentor original.

Winston Churchill adquiriu carisma como jornalista e voluntário nas forças britânicas que lutaram no Sudão e na África do Sul. Tornou-se lorde do Almirantado na Grande Guerra, mas perdeu o cargo no desastre de Dardanelos. Recuperou o prestígio ao se engajar nas forças britânicas que lutavam contra as tropas do império alemão na França. Foi ministro do Tesouro em 1925, mas a insistência em retomar o padrão-ouro na paridade de 1914 levou à crise de 1926, que provocou sua queda. Ficou no ostracismo, clamando contra os totalitarismos da época: só voltou ao poder no desastre de 1940 e na guerra contra o nazismo. A despeito do carisma perdeu as eleições de 1945 para o Labour.

Franklin Roosevelt conduziu os Estados Unidos na depressão dos anos 1930 e na guerra em duas frentes a partir de 1941, mas não transmitiu nenhum carisma a seu sucessor, Harry Truman. Dwight Eisenhower não tinha carisma, mas sim prestígio, como comandante das forças aliadas contra o domínio nazista na Europa. John Kennedy, em contrapartida, adquiriu um prestígio extraordinário por ser o mais jovem presidente da história americana, adquirindo carisma sobretudo ao confrontar os soviéticos no episódio dos mísseis soviéticos em Cuba.

O vice-presidente Lyndon Johnson, político tradicional do Texas, não tinha nenhum carisma; a guerra do Vietnã demoliu sua imagem, tanto que optou por não disputar novo mandato. O vencedor na disputa de 1968, Richard Nixon, adquiriu prestígio ao reinserir a China comunista no sistema mundial, mas perdeu ao se tornar um vulgar larápio no escândalo do Watergate. Ronald Reagan tinha prestígio vindo de Hollywood; ganhou carisma ao lograr, junto com Margaret Thatcher, implodir a União Soviética; seu vice, Bush pai, foi derrotado na tentativa de reeleição pelo carismático Bill Clinton, um grande animal político (a despeito das escapadas). Barack Obama tinha grande carisma, o que não impediu a vitória de um bizarro outsider, Donald Trump. Seu sucessor em 2020, Joe Biden, vice de Obama, desistiu da reeleição em 2024, pelo peso da idade.

No Brasil, Getúlio Vargas construiu seu carisma pelo controle da máquina de propaganda do Estado Novo. Juscelino Kubitschek ganhou o seu, ao fazer o Brasil crescer “50 anos em 5″, com democracia. O carisma de Jânio Quadros, um populista dos mais notáveis, sobreviveu à renúncia aos seis meses de governo e conseguiu preservar capital político para retornar como prefeito da maior cidade do País. Não se pode dizer que os presidentes militares tenham exibido qualquer carisma, o que tampouco foi o caso do presidente da redemocratização, José Sarney, embora o candidato eleito, Tancredo Neves, tivesse enorme prestígio político ao encerrar 21 anos de ditadura militar. Fernando Collor, o primeiro eleito por voto direto desde 1960, começou com grande sucesso ao dar início a importantes reformas econômicas, mas soçobrou ao serem revelados os negócios obscuros de um assessor.

Não se pode dizer que Itamar Franco, alçado presidente, tenha tido carisma, mas o sucesso do Plano Real levou seu ministro da Fazenda pouco carismático a vencer duas eleições no primeiro turno. Finalmente, chegamos a uma figura política de fato carismática, Lula da Silva, embora eleito apenas na quarta tentativa, depois de esconder seus instintos intervencionistas; reforçou seu lado populista na enorme expansão dos programas sociais criados por Fernando Henrique Cardoso. Saiu ungido por 80% de aprovação popular, o que lhe garantiu prestígio suficiente para retornar ao poder em 2023, a despeito de ter presidido o mais vasto esquema de corrupção da história do País.

No intervalo, uma administradora medíocre, Dilma Rousseff, sem qualquer carisma, conseguiu produzir a maior recessão da história econômica do Brasil. Jair Bolsonaro, por sua vez, era mais um fenômeno fabricado pela manipulação das redes sociais do que um movimento político organizado. A polarização contra o lulopetismo preservou-lhe inusitado prestígio, mesmo em presença de fraudes, malversações e até golpismo. Tal cenário pode suscitar novo embate entre petismo e antipetismo em 2026.

Lula continua com carisma, mais disseminado entre os beneficiários da assistência pública do que entre eleitores de regiões avançadas; os mapas eleitorais do PT confirmam que, dos anos 2000 à atualidade, ele se transformou no partido dos “grotões”. A tragédia do carisma de Lula, que é a de todos os carismas, é o fato de o fenômeno não ser transmissível a qualquer sucessor designado; mas o próprio Lula encarregou-se de sabotar eventuais discípulos dotados de voo próprio.

Biden, ao reconhecer que a idade avançada não lhe facultaria disputar a reeleição, desistiu da empreitada. Lula, que também enfrenta o peso da idade e um carisma declinante, poderia mirar-se nesse exemplo para optar por não enfrentar nova difícil disputa em 2026?

DIPLOMATA E PROFESSOR

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Versão original, mais ampla: 

A tragédia do carisma

 

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

 

Certos líderes políticos possuem, ou adquirem, carisma, outros não. Pode-se perder o carisma original e depois recuperá-lo. Mas existem características únicas no fenômeno, o que o torna intransmissível a outrem, ainda que discípulo do detentor original.

O jovem Winston Churchill adquiriu o seu carisma precocemente, como jornalista e voluntário nas forças coloniais britânicas que lutaram no Sudão e na África do Sul. Tornou-se Lorde do Almirantado (ministro da Marinha) na Grande Guerra, mas perdeu seu cargo no desastre de Dardanelos. Recuperou um pouco de prestígio ao se engajar, como simples oficial subalterno nas forças britânicas que lutavam contra as tropas do Império alemão no norte da França. Isso lhe permitiu ser designado Lord of the Exchequer (ministro do Tesouro) em 1925, mas sua insistência em retornar ao padrão ouro na paridade de 1914 – contra os alertas de Keynes – provocou a grande crise de 1926, o que arruinou a sua carreira durante muitos anos. Passou a maior parte dos anos 1930 no ostracismo, ainda que clamando insistentemente na House of Commons contra os totalitarismos expansionistas da época: só recuperou o poder, o prestígio e o carisma no desastre de 1940 e na longa guerra que se seguiu contra o hitlerismo. Ainda assim perdeu as eleições de 1945 para os trabalhistas.

Franklin D. Roosevelt adquiriu tremendo prestígio ao conduzir os Estados Unidos na depressão dos anos 1930 e na terrível guerra em duas frentes a partir de 1941. Ainda assim, não transmitiu nenhum carisma a seu sucessor, o vice-presidente Harry Truman. O presidente seguinte, Dwight Eisenhower quase não tinha carisma, mas sim um grande prestígio, como comandante supremo das forças aliadas contra o domínio nazista na Europa. Kennedy, em contrapartida, adquiriu, sim, um prestígio extraordinário, por ser o mais jovem presidente da história política americana, pela sua elegantíssima esposa francesa, adquirindo seu carisma no exercício do cargo, sobretudo ao confrontar os soviéticos no episódio dos mísseis soviéticos em Cuba: seu assassinato, um ano depois, acrescentou a tragédia ao carisma imorredouro.

O vice-presidente Lyndon Johnson, um político tradicional do Texas, não tinha nenhum carisma, e a guerra do Vietnã (engajada por Kennedy) terminou por destruir sua carreira, tanto que escolheu não concorrer a um segundo mandato. O vencedor na disputa de 1968, Richard Nixon, adquiriu certo prestígio ao reinserir a China comunista no sistema mundial, mas perdeu ao se tornar um vulgar larápio no escândalo do Watergate. Reagan tinha o seu prestígio de ator de Hollywood e ganhou certo carisma ao lograr, junto com Thatcher, implodir a União Soviética, o que aconteceu com seu sucessor, Bush pai, facilmente derrotado na tentativa de reeleição pelo carismático Bill Clinton, um grande animal político (a despeito de suas escapadas conhecidas). Obama tinha um grande carisma, o que já não ocorreu com seu vice, desistente da reeleição em 2024, depois do desastroso, mas incrivelmente e absurdamente carismático governo Trump. Não se pode dizer que Trump tivesse qualquer carisma atrativo no plano da política normal, pois sua mensagem aos eleitores era basicamente antipolítica, seduzindo a franja lunática dos antiglobalistas, os xenófobos e, mais notoriamente, os supremacistas e racistas em geral.

Na história política do Brasil, Vargas construiu um grande carisma em torno de si, mediante o controle do Estado e sua máquina de propaganda. JK também, mas por motivos inteiramente justos: presidiu ao mais notável desenvolvimento do Brasil com pleno regime democrático. O carisma de Jânio, um fenômeno populista dos mais notáveis, sobreviveu até mesmo à inexplicável renúncia aos seis meses de governo, e conseguiu preservar certo capital político, pelo menos para retornar como prefeito da maior cidade do país. Não se pode dizer que qualquer um dos presidentes militares tenha exibido algum carisma, o que tampouco foi o caso do presidente da redemocratização, Sarney, embora o candidato eleito, Tancredo Neves, tinha obviamente enorme prestígio político ao encerrar exitosamente 21 anos de ditadura militar. Collor, o primeiro presidente eleito por voto direto desde 1960, começou com grande sucesso, ao dar início a um processo de reformas importantes nas políticas econômicas, mas logo soçobrou ao se revelarem os negócios obscuros de um assessor super corrupto. 

Não se pode dizer que Itamar, vice-presidente acidental, tenha tido qualquer carisma, mas o sucesso do Plano Real fez do seu ministro da Fazenda pouco carismático um vencedor duas vezes do pleito presidencial no primeiro turno. Finalmente, chegamos a uma figura política verdadeiramente carismática, Lula, embora só tenha sido eleito na quarta tentativa, depois de esconder seus instintos intervencionistas na economia e de promover o seu lado populista pela expansão extraordinária dos programas sociais criados pelo seu antecessor acadêmico, Fernando Henrique Cardoso. Saiu ungido triunfalmente por 80% de aprovação popular, o que lhe garantiu prestígio suficiente para retornar uma terceira vez ao poder, a despeito de ter presidido ao mais vasto esquema de corrupção da história da República. 

O carisma de Lula assegurou a vitória de sua sucessora, uma administradora medíocre e que conseguiu produzir a maior recessão econômica da história do Brasil. Carisma nenhum, o que tampouco foi o caso de Temer, indignamente acusado de golpista pela máquina de propaganda do PT, relativamente eficiente até a chegada dos novos operadores políticos da extrema direita. Bolsonaro era antes um fenômeno fabricado por essa propaganda nas novas redes sociais, do que propriamente um movimento político organizado, mas a polarização política criada entre o lulopetismo e o bolsonarismo continuou mantendo seu prestígio inusitado, em face das muitas acusações de fraudes, malversações e até de golpismo. A nova realidade pode assegurar um embate político entre o petismo e o antipetismo em 2026.

Lula continua exibindo inegável carisma, embora bem mais disseminado entre os beneficiários da assistência pública do que entre os eleitores de regiões mais avançadas; basta conferir os mapas eleitorais do PT dos anos 2000 à atualidade para confirmar essa nova realidade: o PT se transformou no partido dos “grotões”. A tragédia do carisma de Lula, que é a de todos os demais carismas, é que ele não é transmissível a algum sucessor designado, além do próprio Lula, que sempre buscou eliminar qualquer herdeiro político dotado de voo próprio. 

Joe Biden, ainda que forçado, teve de reconhecer que idade avançada e falta de carisma não o habilitavam a disputar uma reeleição. Sua atitude corajosa servirá de lição, ou de exemplo, a Lula, que também enfrenta o peso da idade e o carisma declinante para lograr nova vitória em 2026? 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4709, 22 julho 2024, 3 p.

Nota sobre a intransmissibilidade do carisma.

 

 


terça-feira, 27 de agosto de 2024

O Brasil e a Rota da Seda - Rubens Barbosa (Estadão)

 Comentário PRA: acho que a desarticulação entre o Itamaraty e o nucleo central do atual governo (se existe) será incapaz de levar adiante um projeto dessa magnitude e com todas as implicações de uma grande estratégia como a proposta pelo embaixador Rubens Barbosa. De certa forma, o Itamaraty perdeu protagonismo no atual governo, em favor de uma diplomacia deformadamente personalista, a do próprio Lula.

Opinião

O Brasil e a Rota da Seda

A Rota da Seda sul-americana, levando em conta os interesses brasileiros, poderia representar um passo relevante para uma política de integração física que beneficie todos os países da região

Por Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 27/08/2024 | 03h00


Em agosto, Brasil e China celebraram 50 anos do restabelecimento de relações diplomáticas e, em novembro, o presidente chinês, Xi Jinping, virá ao Brasil para uma visita bilateral e também para participar da reunião do G-20.

Na década de 1990, durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso à frente do Itamaraty, a China propôs e foi aceita pelo Brasil uma parceria estratégica que deveria beneficiar ambos os países. Os últimos 25 anos mostraram resultados bastante favoráveis a ambos os lados em termos de segurança alimentar (37% das exportações brasileiras de produtos agrícolas são absorvidas pelo mercado chinês) e energia (com investimentos chineses no Brasil). Deve ser mencionado, contudo, que, do lado brasileiro, ainda falta uma visão estratégica mais pragmática, sobretudo na atração de investimentos produtivos.

Dentro de uma visão estratégica de longo prazo, em 2013, o governo da China lançou a iniciativa Rota da Seda (Belt and Road Initiative) com o prazo de até 2049 para estar completa. A iniciativa dispõe de uma organização institucional integrada por um fórum para cooperação internacional e um conselho de alto nível. Os objetivos de Pequim são ampliação da coordenação política entre os países participantes, ampliação das facilidades de conexão entre todos os países, comércio desimpedido, integração financeira e melhora da relação entre os povos. A iniciativa Rota da Seda prevê investimentos chineses em infraestrutura (ferrovias, rodovias, energia, digital) em projetos terrestres e marítimos para conectar a China com a Ásia, Europa, África e América Latina por terra e mar. Integrada hoje por mais de 150 países, (20 na América Latina, somente Brasil, Paraguai e Colômbia estão fora até aqui), a Rota da Seda é o mais importante projeto da diplomacia chinesa.

Desde a ida do presidente Lula da Silva a Pequim em 2023, a China tem insistido para o Brasil integrar a Rota da Seda. Certamente, esse será um dos itens da agenda bilateral em novembro e, segundo se sabe, o Brasil deverá ser mais um país a participar da iniciativa chinesa.

Os aspectos geopolíticos do projeto foram ressaltados quando, como uma reação ocidental, os países do G-7, em 2022, aprovaram um plano de expansão na infraestrutura, com a possibilidade de gastos de US$ 600 bilhões. O plano, no entanto, pouco avançou, ao contrário da iniciativa chinesa, que iniciou mais de mil projetos nos últimos dez anos, especialmente na Ásia e África, mas também na Europa e América Latina.

A entrada na Rota da Seda deveria ser precedida da definição do interesse brasileiro. Levando em conta considerações geopolíticas, a questão que se coloca, do ponto de vista da política externa e do interesse nacional, é como o Brasil vai se juntar à Rota da Seda sem perder a visão de equidistância entre o Ocidente e a China. O gesto poderá ser oficializado pela simples adesão ou, confirmando a posição de independência, poderá ficar no contexto dos dois países, com a inclusão dessa questão na Comissão Mista Brasil-China (Cosban), mecanismo de coordenação bilateral, em que seriam discutidos os projetos que viriam a ser incluídos na Rota da Seda: quais poderão ser considerados e como se dará o acesso ao financiamento para a execução deles. Aqueles de infraestrutura na América do Sul são os que mais se enquadram no contexto da Rota da Seda. Caso concretizados, favoreceriam a ampliação do comércio do Brasil com os vizinhos sul-americanos e poderiam abrir um corredor para a exportação de produtos brasileiros para a Ásia, especialmente para a China. A Rota da Seda sul-americana, levando em conta os interesses brasileiros, poderia representar um passo relevante para uma política de integração física na América do Sul, liderada pelo Brasil, que possa beneficiar todos os países da região.

Não está incluído no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) um projeto estratégico de longo prazo que ligasse, por via ferroviária, o Atlântico ao Pacífico, de 3.755 quilômetros (km) de extensão (1.900 km no Brasil), passando pela metade norte do território nacional e pela Bolívia, e que chegasse aos portos peruanos, que estão sendo ampliados com recursos chineses. Esse corredor ferroviário teria um sentido estratégico fundamental para o Brasil se pudesse ser executado. Alternativamente, poderiam ser mais bem aproveitadas as vias hidroviárias nacionais na interligação com países vizinhos, como o Peru.

O transporte de produtos de exportação do Brasil não acompanhou a grande mudança do eixo comercial para a Ásia, em especial a China. Para alcançar essa região, 50% das exportações brasileiras têm de passar pelo Canal do Panamá ou pelo sul da África, o que não é eficiente nem econômico. Torna-se cada vez mais urgente abrir corredores de exportação diretamente para os mercados asiáticos, via portos no Peru e no Chile no Pacífico, para diminuir o tempo de transporte e o frete e tornar os produtos brasileiros mais competitivos.

A ideia de colaboração na construção do ambicioso corredor ferroviário ou de uma integração hidroviária no caminho do Pacífico, para o Porto de Chancay, no Peru, poderia ser um dos pontos altos das comemorações dos 50 anos.

 

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE), É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/o-brasil-e-a-rota-da-seda/

 

domingo, 18 de agosto de 2024

Fracasso de pressão por democracia pode abrir precedente para invasão da Venezuela? - Sean Burges (Interesse Nacional, Estadão)

 Opinião

Fracasso de pressão por democracia pode abrir precedente para invasão da Venezuela?

O regime de Maduro não vai deixar o poder, o que deixa Lula e seus contemporâneos nas Américas com uma pergunta terrível

Por Sean Burges

Interesse Nacional, Estadão, 17/08/2024

 

Para surpresa de ninguém, o autocrata-chefe venezuelano Nicolás Maduro manipulou a eleição presidencial de 28 de julho para permanecer no cargo. A condenação da maior parte do mundo foi igualmente previsível, mas também tocante em suas esperanças ingênuas de que a pressão internacional trará mudanças.

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O regime de Maduro não vai a lugar nenhum, o que deixa Lula e seus contemporâneos nas Américas com uma pergunta terrível: é mais eficaz simplesmente conter o Estado falido na Venezuela ou deve-se estabelecer um precedente com uma invasão pró-democracia no país?

Um retorno muito rápido à teoria nos ajuda a explicar por que o mundo está tão impotente para precipitar mudanças positivas na Venezuela.

América Latina da década de 1980 foi uma espécie de laboratório para investigar transições do autoritarismo para a democracia. Os estudiosos analisaram as diferentes transições extensivamente, resultando em inúmeros estudos que continuam a oferecer lições inestimáveis para os dias de hoje, mesmo que os formuladores de políticas pareçam relutantes em aventurar-se nas prateleiras empoeiradas da biblioteca para recuperá-los.

Talvez o livro mais perceptivo (e também curto) seja o volume quatro da série Transitions from Authoritarian Rule publicado em 1986. Popularmente conhecido como o Livro Verde pela cor da sua capa e subtitulado Tentative Conclusions About Uncertain Democracies, o argumento escrito por Guillermo O’Donnell e Philippe C. Schmitter baseou-se nos três outros volumes da coleção para explicar quais condições precisam estar presentes para que uma transição democrática comece e tenha sucesso.

Como explicam os autores, existem dois grupos principais em qualquer regime autoritário. Os “dictaduros”, ou linha-dura, estão profundamente comprometidos em manter o poder e resistirão a qualquer tentativa de removê-los do cargo.

Por outro lado, os “dictablandos”, ou moderados, acreditam que permanecer no cargo não é do interesse pessoal deles, nem do interesse militar/país, e, portanto, apoiam uma transição controlada para o governo democrático. O autoritarismo persiste quando os “dictaduros” mantêm a vantagem; a democratização ocorre quando os “dictablandos” estão em ascensão e conseguem convencer seus colegas a ceder o poder.

 

O trabalho de O’Donnell e Schmitter enfatiza dois problemas imediatos para aspirantes a democratas na Venezuela, bem como uma mudança estrutural crítica na economia venezuelana para outros países que defendem a abertura política lá.

Primeiro, quase não há mais “dictablandos” no regime venezuelano. Um quarto de século de governo chavista praticamente expurgou os liberais da administração bolivariana. Pior, aqueles democratas que restam nas instituições e na sociedade venezuelanas estão atualmente sendo capturados e encarcerados pelas tropas de choque de Maduro.

Em segundo lugar, supondo que um pequeno grupo de “dictablandos” tenha conseguido sobreviver dentro das Forças Armadas – e são as Forças Armadas que, em última análise, determinarão se o regime permanece ou cai – as circunstâncias atuais sugerem que eles não terão sucesso em convencer os “dictaduros” a suavizar sua posição. Afastar-se do poder traria, no mínimo, uma perda de privilégio e riqueza pessoal, o que, dado o estado atual da economia venezuelana, não é algo que a maioria dos atores racionais consideraria. Mais francamente, ceder o poder atualmente não tem nenhuma vantagem para Maduro e seus “dictaduros”.

A comunidade internacional conseguiu pressionar as ditaduras latino-americanas porque as elites econômicas domésticas que as sustentavam precisavam de acesso aos mercados regionais e globais. (...) Nada dessa lógica econômica se aplica à Venezuela hoje.

Como foi o caso nas décadas de 1970 e 1980, a comunidade internacional está ciente desse dilema. A pressão política externa foi um componente crítico para tirar do poder ditadores tão diversos quanto Pinochet no Chile e Stroessner no Paraguai. A pressão sobre os atores econômicos domésticos pela comunidade internacional traduziu-se em apelos locais das elites por mudança de regime em setores dependentes de vínculos externos.

O desafio hoje é que a alavancagem usada no século passado não está disponível na Venezuela de hoje.

A comunidade internacional conseguiu pressionar as ditaduras latino-americanas porque as elites econômicas domésticas que as sustentavam precisavam de acesso aos mercados regionais e globais. Mesmo no caso do regime criminoso de Stroessner no Paraguai, o acesso ao mercado brasileiro permaneceu crucial, permitindo que os oficiais em Brasília obrigassem a adoção de uma democracia formulaica em 1989 e um governo representativo mais substantivo ao longo da década de 1990. Nada dessa lógica econômica se aplica à Venezuela hoje.

A ditadura de Maduro é sustentada por uma teia complexa de atores militares, gangues criminosas e facções de grupos paramilitares estrangeiros, como ELN e Farc da Colômbia. São esses atores que controlam a produção e o tráfico de cocaína, a mineração e os últimos vestígios de uma indústria petrolífera em rápida desintegração, além de uma série de outras empresas criminosas domésticas.

A pressão econômica do tipo visto na década de 1980 simplesmente não se aplica a essas empreitadas criminosas, isolando os poderosos na Venezuela da condenação internacional e das sanções econômicas. Onde a pressão internacional poderia importar, como nas exportações de petróleo e ouro, existem muitas alternativas com agentes baseados em países como Rússia, Irã, Turquia e Emirados Árabes Unidos.

Isso deixa as vozes do hemisfério ocidental que clamam por democracia – sejam elas as vozes quietas nos bastidores da equipe de Lula ou o mais confrontador diretamente Boric no Chile – gritando ao vento.

 

Governos como o de Lula no Brasil, portanto, enfrentam uma decisão desconfortável: é mais barato conter a crise ou invadir? Pior, dada a criminalização maciça do Estado e da economia venezuelanos, a remoção de Maduro poderia empurrar o país para o abismo de um verdadeiro estado falido?

Para o futuro previsível, parece que levar a democratização à Venezuela exigirá uma intervenção direta e aberta de algum tipo. Não apenas essa abordagem é contrária à tradição histórica nas Américas, mas impor a democracia externamente também é um negócio caro, demorado e incerto. A questão então é se os custos da instabilidade política, outra fuga em massa, colapso econômico, criminalidade crescente e degradação ambiental acelerada na Venezuela subirão a ponto de a comunidade interamericana ser forçada a passar da retórica à ação concreta.

Por enquanto, uma invasão democratizante da Venezuela é uma opção que deve ser deixada na gaveta. Os esforços devem ser dedicados à criação de “dictablandos”, fornecendo garantias àqueles em posição de conduzir a mudança de regime interno de que sua riqueza e privilégio sobreviverão à democratização, mesmo que isso signifique viver seus dias em uma cobertura no Rio de Janeiro ou em um condomínio em Miami.

Esperamos que essas sejam as promessas que Celso Amorim está sussurrando aos seus colegas em Caracas. O que parece quase completamente certo é que a democracia permanece uma miragem distante para o povo da Venezuela.


Opinião por Sean Burges

Sean Burges é colunista da Interesse Nacional e professor de estudos globais e internacionais na Carleton University. É autor dos livros ‘Brazil in the World’ e ‘Brazilian Foreign Policy After the Cold War’.