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sábado, 12 de abril de 2025

Livro: Revolução tributária: desafiando as correntes da desigualdade e do patrimonialismo no Brasil - Mariella Pittari (Blog da Boitempo)

Mais uma matéria importante enviada por Mauricio David:

... Segundo o DIEESE, o salário mínimo necessário para fazer frente às pressões inflacionárias do país corresponde a um valor superior aos R$ 7.000,00 (sete mil reais)...

Revolução tributária: desafiando as correntes da desigualdade e do patrimonialismo no Brasil
Mariella Pittari
Blog da Boitempo, 11/04/2025
https://blogdaboitempo.com.br/

O Brasil possui uma tradição tributária regressiva, alguns tributos que a Constituição aspirava implementar jamais tornaram-se realidade, enquanto outros incidem de maneira draconiana sobre os que mais necessitam. Alguns elementos são de imprescindível observância para avaliar a justiça do Direito Tributário Brasileiro, e dentre eles está à atenção a ser dedicada ao princípio da capacidade contributiva.
Um sistema tributário justo perpassa pela distinção entre justiça corretiva e distributiva de Aristóteles. Enquanto a justiça corretiva apenas recoloca os indivíduos em sua posição original, a distributiva faz escolhas acerca daqueles que são merecedores de uma política decisória de alocação das riquezas na sociedade. No Estado Democrático de Direito, para além de exercer violência sobre a coletividade, inclusive para tributar, o Estado possui a missão de satisfazer aspirações constitucionais de gerar uma sociedade livre, justa e solidária. Assim, a recente emenda constitucional que introduziu o princípio constitucional da simplicidade,1 age no sentido de proporcionar que os objetivos constitucionais do país sejam alcançados. Tal busca está sempre a exigir um confronto de forças nem sempre pacífico.
Enquanto o mundo se insurge após a imposição de tarifas de importações de produtos provindos de todo o globo para os Estados Unidos, o Brasil desde sempre impôs impostos proibitivos à entrada de produtos estrangeiros no país. No entanto, jamais se cogitou iniciar uma rebelião do chá2 para impedir que tal coisa ocorresse. Os tributos diretos e indiretos sobre o consumo afetam em maior proporção os mais pobres, que em termos absolutos gastam o mesmo valor que aquelas que possuem renda superior em múltiplos, não fazendo distinção baseada no poder aquisitivo. Os tributos que melhor observam a capacidade contributiva são aqueles que incidem sobre a riqueza, seja de renda ou de patrimônio.
Na mesma linha, o Brasil tributa os ganhos da pessoa jurídica com uma tarifa amena e, à exceção de outros dois países no mundo, não tributa os lucros e dividendos distribuído. Tal cenário irá ser afetado, ainda que maneira suave, pela instituição de um novo imposto voltado à tributação de altas rendas. O projeto de lei criando hipótese de incidência vem acompanhado de uma justificativa baseada sobretudo na quantidade modesta de indivíduos que detêm substancial parcela da riqueza nacional. Apesar de afetar poucos, o novo tributo desagrada um contingente vocal e influente da sociedade que, pouco dispostos em alterar o balanço de forças e ceder diante da necessidade em destinar-se a arrecadação gerada para corrigir as disparidades da tributação de renda de pessoas que não possuem capacidade contributiva, utilizam seu elevado efeito de reverberação e resistência para evitarem ser atingidos. Os mecanismos utilizados para escaparem à mudança serão os mais variados, de reorganização societária por planejamento tributário a opor-se diretamente à aprovação da lei, a mobilização das elites já teve início. Para sustentar a opulência e riqueza, no Brasil, vale tudo!
O ponto de inflexão de tais forças surge quando o Executivo, de modo ainda sobremaneira tímido, propõe alterar o exercício de forças trazendo um tributo inédito no país ao tempo em que amplia a isenção entre os estratos menos providos da sociedade. A isenção do imposto de renda para indivíduos que possuem renda mensal de até R$ 5.000,00 (cinco mil reais) vem acompanhada do imposto sobre a renda das pessoas físicas mínimo – IRPFM. A escolha de redistribuir com base em tal critério atende regras de ouro do Direito Tributário e Financeiro de destinar uma contrapartida da redução de receita, individualizando uma injustiça tributária sem precedentes a nível global, qual seja, a ausência de incidência tributária sobre dividendos. Já não era sem tempo que a fuga de capitais do país não fosse acompanhada da tributação sobre a parcelas dos mais ricos, a prescindir se pessoas físicas ou jurídicas.
Nesse cenário, o PL 1.087/20253 objetiva isentar contribuintes com uma faixa de renda de até R$ 5.000,00 mensais. Apesar de necessária ante os efeitos corrosivos da inflação, a medida mostra-se insuficiente para a justiça tributária que se espera dos que mais recebem no Brasil. No intuito de mitigar tal injustiça, o projeto vem acompanhado da nova hipótese de incidência tributária do imposto sobre a renda das pessoas físicas mínimo – IRPFM.4
O presente texto pretende trazer à discussão o cerne dos problemas de justiça distributiva no Brasil, uma vez que reformas pontuais mantêm o país em posição de desigualdade, tributando sobremaneira o consumo sem, contudo, atacar os grandes detentores de renda. A transmissão de bens e renda de geração em geração aumenta o vácuo entre os mais ricos e os desprovidos. Tal realidade se faz evidente ao constatar que o patrimônio gerado pelos mais ricos se multiplica enquanto entre os mais pobres se dissipa. O abismo que pervade as classes sociais no Brasil impedem a mobilidade e ascensão social, perpetuando a desigualdade social.
Apenas a título ilustrativo, vale trazer a voracidade com que os entes federativos tributam o consumo quando deveriam tributar a propriedade e a renda, tributos cuja competência constitucional foi alocada aos estados federados e municípios, respectivamente. Tal característica define um país desigual que impõe idêntico sacrifício aos mais ricos e o os mais humildes, uma vez que para ter acesso a um bem de consumo irão despender o mesmo valor a despeito da proporção que tal produto custe a cada indivíduo. Alguns desses problemas estão na esfera constitucional e exigirão um rearranjo total da sociedade e da federação, outros necessitam da vontade popular e representativa em alterar a vocação tributária do país.
A origem do atraso: de colônia geográfica à colônia geopolítica
A herança colonial do país é sintetizada em algumas expressões idiomáticas como “vá para o quinto dos infernos”, que refletem a ojeriza que o brasileiro possui à tributação. O quinto que a Coroa exigia como tributo da mineração foi desde sempre percebido como a usurpação do soberano de parcela que deveria ser inteiramente direcionada à elite nacional. Aqueles que detinham um capital criado por monopólio real julgavam-se ungidos por atributos que os distanciavam do resto da população.
O progresso advindo da independência e da república pouco alteraram o patrimonialismo que marcava a economia nacional. O instituto da escravidão, que extraía o que viria a se tornar, no sistema capitalista, de produção a mais-valor, apropriava-se de toda a produção de riqueza sem qualquer contrapartida, normalizando a ideia de retirar do trabalhador tudo que poderia ser espoliado sem que com isso sobreviesse o resultado morte. Passaram-se séculos, porém o estigma que acompanha a exploração do trabalho permanece inalterado.
Um país fundado na longa dicotomia de extração do trabalho escravo sem qualquer contrapartida à dignidade humana, convivendo com a tentativa de obter ganhos máximos pelas elites coloniais que se encontravam no território pátrio,5 trouxe como resultado o desprezo pela remuneração justa e, por parte do Estado, um apetite desmedido em arrecadar de quem não poderia nem sequer contribuir. A noção de tributação como denominador comum de distribuição de serviços e melhoria das condições de vida sempre foram vistas com suspeição e desconfiança.
Segundo o DIEESE, o salário mínimo necessário para fazer frente às pressões inflacionárias do país corresponde a um valor superior aos R$ 7.000,00 (sete mil reais). Portanto, a proposta de isenção de contribuintes que ganham menos de R$ 5.000,0 (cinco mil reais) mensais visa a atender uma capacidade contributiva inexistente. Se considerado nos cálculos os impostos sobre consumo e serviços, além de todos os tributos indiretos, resta indubitável que a isenção é o mínimo de política pública que tem por destinatário contribuintes indiretos que oneram uma substancial parte da renda pagando tributos. Acrescente-se a tal cenário a constante privatização de serviços, do público ao privado, e obtém-se como resultado um salário esmagado pela redução do poder de compra acompanhada pela corrosão do valor dos ganhos pela inflação.
O trabalhador brasileiro encontra-se refém dos juros que achatam o orçamento, ao mesmo tempo em que se endivida para fazer frente às necessidades básicas6 diante da pressão de viver uma vida a crédito.7 Através de uma política pública fomentada pelo próprio Estado, o sistema aprofunda as desigualdades e lança milhões à pobreza. Contra isso, a reforma tributária consiste em um passo decisivo à emancipação das parcelas mais vulneráveis da classe trabalhadora. Contudo, sem que seja abandonado o ajuste fiscal e orçamentário de maneira abrangente, não será possível alcançar os resultados almejados com as mudanças legislativas que se aproximam.
Um dos pilares dos instrumentos monetários à disposição da autoridade do Banco Central consiste na política dos juros. O discurso comumente adotado pelo clássico da economia ortodoxa está em reduzir a oferta de dinheiro que circula na economia para conter os efeitos da inflação. Como efeito colateral, tem-se um aumento da taxa de desocupação e uma perda de acesso ao crédito por parte do trabalhador. O problema se põe quando a inflação afeta a população, não obstante as políticas de juros restritivos e uma política de austeridade que age em detrimento da classe trabalhadora.8
Apesar de positiva, a presente política de tributação não altera algumas premissas de índole neoliberal adotadas pelo governo. A reforma tributária vem desacompanhada de uma expansão do crédito. O argumento utilizado para alterar apenas o aspecto tributário, porém não o de macroeconomia monetária, está em insistir que a expansão da arrecadação e o corte de gastos públicos sejam a única via para estabilizar a economia do país. O que, porém, se evidencia a cada dia com maior nitidez é que metas de inflação irreais, acompanhadas de políticas monetárias e fiscais austeras, geram como efeito final um sistema que, não obstante todo o sacrifício imposto à classe trabalhadora, encontra-se sempre refém do capital especulativo financeiro. Enquanto a submissão desmedida a tais interesses não for harmonizada com um reajuste de forças que priorize a classe trabalhadora, todo o desgaste político em aprovar uma reforma tributária não altera a carência que a ausência de Estado gera.
Caso o governo não abandone a política de austeridade a qualquer custo, nem mesmo uma iniciativa legislativa tão positiva quanto tributar dividendos e os mais abastados será capaz de modificar a dinâmica de encolhimento de uma ideia de Estado Social. Os preços públicos ou preços que o Estado pode controlar, porque atua diretamente na prestação do serviço ou exerce poder decisivo de como os serviços serão prestados, são o melhor termômetro para controlar preços e mitigar os efeitos nefastos produzidos pela corrosão do poder de compra causado por períodos inflacionários.
Conclusão e excertos sobre uma necessária redução da desigualdade
A desigualdade do país remonta à mesma razão de sua existência, a de conferir privilégios à nobreza lusitana. Os privilegiados mudam, porém, resta inalterada a ideia mesma de brasilidade, acompanhada da usurpação, do patrimonialismo e da extração da riqueza tornando bens comuns em privados.9 O compromisso instituído através da Constituição de 1988 encontra-se justamente em abandonar o sistema tributário que remonta à ditadura e estabelecer um parâmetro que atenda a uma aspiração de bem-estar coletivo. Encontrando-se o Código Tributário Nacional ainda em vigor, a questão que fica é se a aliança oligopolizada ali formada não foi mantida, não obstante a Constituição.
Uma melhor compreensão do fenômeno tributário e da intercambialidade de prestações sociais e tributárias nos conduz ao entendimento de que o Estado do Bem-estar Social perpassa a tributação e uma correlação de forças que busque não apenas corrigir desigualdades, mas efetivamente realizar uma redistribuição. As prestações sociais distribuídas através do benefício básico de prestação continuada (BPC), dos serviços públicos distribuídos à população e do acesso ao crédito constituem parte do mesmo processo de elevação das condições de vida da classe trabalhadora. A discussão acerca da ampliação da isenção do Imposto de Renda e da tributação dos dividendos eram medidas imprescindíveis para iniciar o debate acerca da desigualdade que permeia a sociedade brasileira. Contudo, o discurso inaugura, sem que se encerre o enfrentamento de questões prementes tais como o de conter o apetite das elites financeiras e do capital internacional sobre a pilhagem de porção significativa do orçamento ao pagamento de interesses da dívida. Ampliar a isenção tributária sem mexer na austeridade mostrar-se-á placebo no futuro, pois apenas o deslocamento de serviços na esfera estatal poderá funcionar como instrumento eficaz no controle de preços e da inflação, permitindo que a classe trabalhadora ostente poder de compra do salário não obstante as oscilações que o mercado constantemente impõe.

Notas:
Emenda Constitucional nº 132/23.
REBELO, Aldo; PAULINO, Luis Antonio. Reforma tributária: atravessar o rio pisando nas pedras. Princípios Revista Teórica, Política e de Informação, São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 2008, 94: 50-64.
O inteiro teor pode ser encontrado no Projeto de Lei nº 1.087/2025, apresentado pelo Executivo.
Art. 6º do PL 1.087/2025.
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. L&PM Editores, 2010.
Veja-se o celetista consignado que atua na linha acima proposta.
BAUMAN, Zygmunt. Vida a crédito: conversas com Citlali Rovirosa-Madrazo. Companhia das Letras, 2010. ↩︎
MATTEI, Clara. A ordem do capital: como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo. Boitempo, 2023. ↩︎
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Companhia das Letras, 2021. ↩︎

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