Mostrando postagens com marcador The New York Times. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador The New York Times. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 22 de maio de 2025

A fábrica de espiões russos no Brasil - Michael Schwirtz, Jane Bradley (The New York Times)

 A fábrica de espiões russos no Brasil

Por Michael Schwirtz e Jane Bradley

Michael Schwirtz e Jane Bradley cobrem as operações russas no Ocidente há uma década. Eles cobriram esta história de todo o Brasil, dos Estados Unidos e de vários países da Europa.

The New York Times, 21 de maio de 2025

https://www.nytimes.com/pt/2025/05/21/world/europe/a-fabrica-de-espioes.html
https://blogdopolibiobraga.blogspot.com/2025/05/a-fabrica-de-espioes-russos-no-brasil.html

Artem Shmyrev enganou a todos. O oficial de inteligência russo parecia ter construído a identidade perfeita. Ele administrava uma bem-sucedida empresa de impressão 3D e dividia um apartamento de luxo no Rio de Janeiro com sua namorada brasileira e um gato Maine Coon laranja e branco, de pelo fofo.

Mas o mais importante é que ele tinha uma certidão de nascimento e um passaporte autênticos que consolidavam seu pseudônimo como Gerhard Daniel Campos Wittich, um cidadão brasileiro de 34 anos.

Depois de seis anos escondido, ele estava impaciente para começar um verdadeiro trabalho de espionagem.

“Ninguém quer se sentir um perdedor”, escreveu ele em uma mensagem de texto de 2021 para sua esposa russa, que também era oficial de inteligência, usando um inglês imperfeito. “É por isso que continuo trabalhando e tendo esperança.”

Ele não estava sozinho. Durante anos, segundo uma investigação do New York Times, a Rússia usou o Brasil como plataforma de lançamento para seus agentes de inteligência de elite, conhecidos como ilegais. Em uma operação audaciosa e de longo alcance, os espiões deixaram de lado seus passados russos. Eles abriram negócios, fizeram amigos e tiveram casos amorosos — eventos que, ao longo de muitos anos, se tornaram os alicerces de identidades inteiramente novas.

Grandes operações de espionagem russas já foram descobertas no passado, inclusive nos Estados Unidos em 2010. Desta vez, foi diferente. O objetivo não era espionar o Brasil, mas sim se tornar brasileiro. Uma vez disfarçados de histórias de fundo confiáveis, eles partiriam para os Estados Unidos, Europa ou Oriente Médio e começariam a trabalhar a sério.

Os russos basicamente transformaram o Brasil em uma linha de montagem para agentes secretos como o Sr. Shmyrev.

Um deles abriu um negócio de joias. Outro era uma modelo loira de olhos azuis. Um terceiro foi admitido em uma universidade americana. Havia um pesquisador brasileiro que conseguiu emprego na Noruega e um casal que acabou indo para Portugal.

Então tudo desabou.

Nos últimos três anos, agentes de contrainteligência brasileiros têm caçado esses espiões de forma silenciosa e metódica. Através de um trabalho policial meticuloso, esses agentes descobriram um padrão que lhes permitiu identificar os espiões, um por um.

Agentes descobriram pelo menos nove policiais russos operando sob identidades brasileiras, de acordo com documentos e entrevistas. Seis nunca foram identificados publicamente até agora. A investigação já abrangeu pelo menos oito países, disseram autoridades, com informações vindas dos Estados Unidos, Israel, Holanda, Uruguai e outros serviços de segurança ocidentais.

Usando centenas de documentos investigativos e entrevistas com dezenas de policiais e agentes de inteligência em três continentes, o The Times reuniu detalhes da operação de espionagem russa no Brasil e do esforço secreto para eliminá-la.

Desmantelar a fábrica de espionagem do Kremlin foi mais do que uma simples ação rotineira de contraespionagem. Foi parte das consequências danosas de uma década de agressão russa. Espiões russos ajudaram a abater um avião de passageiros que vinha de Amsterdã em 2014. Interferiram em eleições nos Estados Unidos, na França e em outros lugares. Envenenaram supostos inimigos e planejaram golpes.

Mas foi a decisão do presidente Vladimir V. Putin de invadir a Ucrânia em fevereiro de 2022 que galvanizou uma resposta global aos espiões russos, mesmo em partes do mundo onde esses agentes desfrutavam de um certo grau de impunidade há muito tempo. Entre esses países estava o Brasil, que historicamente mantém relações amigáveis com a Rússia.

A investigação brasileira desferiu um golpe devastador no programa de imigração ilegal de Moscou. Eliminou um quadro de policiais altamente treinados que será difícil de substituir. Pelo menos dois foram presos. Outros recuaram às pressas para a Rússia. Com seus disfarces descobertos, provavelmente nunca mais trabalharão no exterior.

No centro dessa derrota extraordinária estava uma equipe de agentes de contrainteligência da Polícia Federal brasileira, a mesma unidade que investigou o ex-presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, por planejar um golpe.

De sua moderna sede de vidro na capital, Brasília, eles passaram anos vasculhando milhões de registros de identidade brasileiros, em busca de padrões.

Ficou conhecida como Operação Leste.

Fantasmas no Sistema

No início de abril de 2022, poucos meses após as tropas russas entrarem na Ucrânia, a CIA passou uma mensagem urgente e extraordinária à Polícia Federal do Brasil.

Os americanos relataram que um oficial disfarçado do serviço de inteligência militar da Rússia apareceu recentemente na Holanda para fazer um estágio no Tribunal Penal Internacional — justamente quando este começava a investigar crimes de guerra russos na Ucrânia.

O aspirante a estagiário viajava com passaporte brasileiro sob o nome de Victor Muller Ferreira. Ele havia se formado na Universidade Johns Hopkins com esse nome. Mas seu nome verdadeiro, segundo a CIA, era Sergey Cherkasov. Agentes da fronteira holandesa haviam negado sua entrada, e ele estava agora em um avião com destino a São Paulo.

Com provas limitadas e poucas horas para agir, os brasileiros não tinham autoridade para prender o Sr. Cherkasov no aeroporto. Assim, por vários dias de ansiedade, a polícia o manteve sob forte vigilância enquanto ele permanecia em liberdade em um hotel em São Paulo.

Por fim, os policiais conseguiram um mandado e o prenderam — não por espionagem, mas pela acusação mais modesta de uso de documentos fraudulentos.

Mesmo isso acabou se revelando um caso muito mais difícil de sustentar do que qualquer um esperava. Sob interrogatório, o Sr. Cherkasov se mostrou arrogante, insistindo que era brasileiro. E tinha os documentos para provar isso.

Seu passaporte brasileiro azul era autêntico. Ele possuía o título de eleitor brasileiro, conforme exigido por lei, e um certificado comprovando que havia cumprido o serviço militar obrigatório.

Todas eram genuínas.

Praia de Ipanema, no Rio de Janeiro. Durante anos, a Rússia usou o Brasil como plataforma de lançamento para seus agentes de inteligência de elite, conhecidos como ilegais.

“Não havia nenhuma ligação entre ele e a grande Mãe Rússia”, disse um investigador da Polícia Federal, que falou, assim como outros, sob condição de anonimato porque a investigação ainda está aberta.

Foi somente quando a polícia encontrou sua certidão de nascimento que a história do Sr. Cherkasov — e toda a operação russa no Brasil — começou a desmoronar.

No passado, espiões russos frequentemente obtinham documentos de identificação assumindo a identidade de pessoas mortas, geralmente bebês.

Não neste caso. Os agentes determinaram que Victor Muller Ferreira nunca existiu. No entanto, ele tinha uma certidão de nascimento verdadeira.

O documento indicava que Victor Muller Ferreira havia nascido no Rio de Janeiro em 1989, filho de mãe brasileira, pessoa real que faleceu quatro anos depois.

Mas quando a polícia localizou a família, os agentes descobriram que a mulher nunca teve filhos. As autoridades nunca encontraram ninguém com o mesmo nome do pai.

A descoberta levantou questões alarmantes. Como um espião russo havia obtido documentos genuínos sob um nome falso? Mais importante ainda, a polícia se perguntou: se um espião conseguiu, por que outros não?

Agentes federais começaram a procurar o que chamavam de “fantasmas”: pessoas com certidões de nascimento legítimas, que passaram a vida sem nenhum registro de realmente estarem no Brasil e que apareceram de repente como adultos coletando rapidamente documentos de identidade.

Para encontrar esses fantasmas, os agentes começaram a procurar padrões em milhões de registros de nascimento, passaportes, carteiras de motorista e números de previdência social.

Parte disso poderia ser automatizado, mas nem todos os bancos de dados brasileiros podem ser facilmente vinculados e pesquisados digitalmente. Grande parte teve que ser feita manualmente.

Essa análise permitiu que a Operação Leste desvendasse toda a operação russa.

“Tudo começou com Sergey”, disse um alto funcionário brasileiro.

Pessoas Especiais de Putin

Todos os espiões, não importa para qual país trabalhem, enfrentam o mesmo desafio: criar uma identidade falsa que resista ao escrutínio.

Durante gerações, agentes secretos usaram passaportes falsos, nomes roubados e histórias de fachada bem ensaiadas. A era digital, em que quase todo mundo tem um histórico online, tornou as coisas muito mais complicadas.

Este é um problema particularmente grave para a Rússia. Isso porque, embora todos os serviços de espionagem empreguem agentes secretos, a maioria depende de redes de informantes locais para realizar o trabalho pesado de coleta de inteligência. A Rússia é única. Desde os primeiros anos da União Soviética, agentes secretos se comprometeram com uma vida inteira de serviço, vivendo e trabalhando como pessoas completamente diferentes.

O próprio Sr. Putin reconheceu ter supervisionado espiões secretos soviéticos enquanto estava destacado na Alemanha Oriental como um jovem oficial da KGB no final da Guerra Fria.

“São pessoas especiais, com qualidades especiais, convicções especiais e um caráter especial”, disse ele em uma entrevista televisiva em 2017. “Deixar para trás a vida passada, deixar para trás seus entes queridos e sua família, deixar seu país por muitos e muitos anos para dedicar sua vida a servir à pátria, não é algo que todos podem fazer. Somente os escolhidos podem fazê-lo, e digo isso sem exagero.”

Uma fotografia do final da década de 1980 fornecida pela Agência de Registros da Stasi mostra Vladimir V. Putin, o segundo da esquerda, quando ele foi destacado para Dresden, Alemanha Oriental, como agente da KGB de 1985 a 1990. Crédito...BStU

O Brasil parecia o lugar ideal para os espiões escolhidos por Putin construírem sua tradição. O passaporte brasileiro é um dos mais úteis do mundo, permitindo viagens sem visto para quase tantos países quanto o americano. Alguém com traços europeus e um leve sotaque dificilmente se destacaria no Brasil multiétnico.

E enquanto muitos países exigem verificação hospitalar ou médica antes de emitir certidões de nascimento, o Brasil permite uma exceção específica para aqueles nascidos em áreas rurais. As autoridades emitirão uma certidão de nascimento para qualquer pessoa que declare, na presença de duas testemunhas, que o bebê nasceu de pelo menos um dos pais brasileiros.

O sistema também é descentralizado e vulnerável à corrupção local.

Com a certidão de nascimento em mãos, é só solicitar o registro de eleitor, os documentos militares e, por fim, o passaporte.

Uma vez obtido isso, um espião pode ir a praticamente qualquer lugar do mundo.

Uma pausa no caso

Um dos primeiros nomes a surgir quando os investigadores iniciaram a busca foi o de Gerhard Daniel Campos Wittich. Ele parecia se encaixar no padrão. Sua certidão de nascimento indicava que ele nasceu no Rio em 1986, mas ele parece ter surgido do nada em 2015.

Quando os agentes começaram a investigar, o Sr. Shmyrev já havia construído uma identidade falsa tão convincente que nem mesmo sua namorada e colegas faziam ideia. Ele falava português perfeitamente, com um sotaque que, segundo ele, era fruto de uma infância passada na Áustria.

Ele parecia dedicar tudo o que tinha à sua gráfica, a 3D Rio, que construiu do zero e com a qual demonstrava genuinamente se importar, segundo antigos colegas. Ele passava longas horas trabalhando no 16º andar de um arranha-céu no centro do Rio, a um quarteirão do Consulado Americano. Às vezes, mandava os funcionários para casa para poder trabalhar sozinho.

"Ele era viciado em trabalho", disse Felipe Martinez, um ex-cliente que fez amizade com o russo que ele conhecia como Daniel. "Ele pensava grande, sabe?"

A empresa se tornou um sucesso, disse um ex-funcionário, conquistando clientes como a TV Globo, uma rede de televisão, e as Forças Armadas brasileiras. (O funcionário, que pediu para não ser identificado, disse que o Sr. Shmyrev nunca foi convidado para nenhuma base).

Mas havia algumas peculiaridades, segundo amigos e colegas. Ele nunca mantinha seu computador conectado à internet quando não o estava usando. E parecia ter mais dinheiro do que seu negócio podia gerar.

Ele fazia viagens repentinas para a Europa e a Ásia e brincava sobre realizar "espionagem industrial" contra concorrentes. Às vezes, se passava por cliente de outras gráficas e certa vez enviou um de seus funcionários para estagiar em uma empresa rival e prestar contas.

Ele também parecia ter medo de câmeras e não gostava tanto de ter sua fotografia tirada que um ex-funcionário se lembrou de brincar que ele poderia estar sendo "procurado pela Polícia Federal".

O Sr. Shmyrev entrou em pânico quando um jornal local publicou uma foto dele em frente ao prefeito do Rio na inauguração de um centro de tecnologia, lembrou o Sr. Martinez.

Mas só em retrospectiva é que tudo isso pareceu significativo, disseram amigos.

Em particular, o Sr. Shmyrev estava entediado e frustrado com a vida disfarçado.

"Nenhuma conquista real no trabalho", escreveu o Sr. Shmyrev em uma mensagem de texto para a esposa. "Já faz 2 anos que não estou onde preciso estar."

Sua esposa, Irina Shmyreva, outra espiã russa que enviava mensagens de texto do outro lado do mundo, na Grécia, não demonstrou compaixão. "Se você queria uma vida familiar normal, bem, você fez uma escolha fundamentalmente errada", respondeu ela.

Mas ela reconheceu que a vida que eles estavam levando não era o que esperavam.

"Sim, não é como foi prometido e é ruim", ela lhe enviou uma mensagem. "Eles basicamente enganam as pessoas e eu vejo isso como algo ruim. É desonesto e nada construtivo."

Os textos fazem parte de um conjunto de documentos compartilhados com serviços de inteligência estrangeiros e acessados pelo The New York Times. Eles foram enviados em agosto de 2021 e recuperados posteriormente do telefone do Sr. Shmyrev.

Seis meses depois, a Rússia invadiu a Ucrânia. De repente, serviços de inteligência do mundo todo estavam trabalhando juntos e priorizando a interrupção da espionagem do Kremlin. A vida dos espiões russos espalhados pelo mundo foi abalada.

Primeiro veio o Sr. Cherkasov, o estagiário que foi preso semanas após a invasão. Depois, Mikhail Mikushin, que estava sob investigação brasileira, apareceu na Noruega e foi preso. Dois agentes russos infiltrados foram presos na Eslovênia, onde viviam sob identidades argentinas.

No final de 2022, investigadores brasileiros estavam se aproximando do Sr. Shmyrev.

O bairro de Botafogo, no Rio, onde o Sr. Shmyrev morava. Quando os agentes começaram a investigar, o Sr. Shmyrev já havia construído uma identidade falsa tão convincente que nem mesmo sua namorada e colegas faziam ideia.

Agentes federais desvendaram a identidade de Gerhard Daniel Campos Wittich e descobriram que sua mãe havia falecido e nunca tivera um filho com esse nome. Seu pai não foi encontrado.

No final de dezembro, os agentes estavam quase certos de que haviam descoberto um espião russo disfarçado.

Se o Sr. Shmyrev estava assustado, não deu nenhuma demonstração. Numa tarde daquele dezembro, ele jantou com um colega no badalado bairro de Botafogo, no Rio. Parecia tranquilo e disse que estava partindo para uma viagem de um mês à Malásia, segundo o funcionário, que falou sob condição de anonimato.

Ele escapou do país poucos dias antes de a Polícia Federal descobrir sua identidade. Os agentes ficaram perplexos. Tanto trabalho, e eles não o tinham encontrado.

O Sr. Shmyrev tinha uma passagem de volta datada de 2 de fevereiro de 2023. Assim, os agentes obtiveram mandados de prisão e ordens de busca em seus endereços. Quando o Sr. Shmyrev desembarcasse em solo brasileiro, eles estariam prontos.

Mas ele nunca mais voltou.

'O que é pior do que ser preso?'

O Sr. Shmyrev não foi o único espião russo a escapar das mãos dos brasileiros.

Toda vez que os agentes descobriam um nome, parecia que já era tarde demais.

Um casal na faixa dos 30 anos, conhecido como Manuel Francisco Steinbruck Pereira e Adriana Carolina Costa Silva Pereira, fugiu para Portugal em 2018 e desapareceu.

Parecia haver um grupo deles no Uruguai. Uma mulher, supostamente chamada Maria Luisa Dominguez Cardozo, tinha uma certidão de nascimento brasileira e, mais tarde, obteve um passaporte uruguaio. E havia outro casal: Federico Luiz Gonzalez Rodriguez e sua esposa, Maria Isabel Moresco Garcia, uma espiã loira que se passava por modelo.

A maior esperança dos agentes brasileiros de prisão parecia, por um tempo, ser um joalheiro chamado Eric Lopes. A polícia descobriu que ele era, na verdade, um espião russo chamado Aleksandr Utekhin.

Seu negócio foi destaque em um programa de televisão brasileiro de 2021 chamado “Empreendedores de Sucesso”, que se referiu a ele como um “especialista em pedras preciosas”.

Mas a apresentadora disse em entrevista ao The Times que o Sr. Lopes havia pago por aquele comercial de televisão. O Sr. Lopes, disse ela, era estranho. Ele falava "português gringo", observou ela, e se recusou a aparecer diante das câmeras. Um funcionário que foi ao ar em seu nome sabia tão pouco sobre o negócio que ele continuou a alimentar suas falas.

“Eu pensei: 'Uau, está acontecendo alguma coisa?'”, acrescentou o apresentador.

Quando os agentes federais chegaram às lojas, não encontraram nenhum vestígio do Sr. Lopes, nem do ouro ou das pedras preciosas que ele havia anunciado no Instagram.

Sua loja em Brasília agora é ocupada por uma seguradora. O endereço em São Paulo, em frente a uma unidade da Polícia Militar, abriga uma imobiliária.

Investigadores acreditam que seus negócios existiam apenas como fachada para reforçar suas credenciais brasileiras. Uma autoridade de segurança ocidental com conhecimento do caso disse que, após deixar o Brasil, o Sr. Utekhin passou algum tempo no Oriente Médio. Sua localização exata é desconhecida, embora autoridades de inteligência afirmem acreditar que ele e outros estejam de volta à Rússia.

Não está claro se algum evento assustou os oficiais e os fez voltar para casa. Mas com tanto foco na Rússia após a invasão da Ucrânia, especialistas em inteligência disseram que talvez os chefes em Moscou concluíssem que o mundo havia se tornado perigoso demais para eles.

Os agentes brasileiros que comandavam a Operação Leste passaram incontáveis horas descobrindo os nomes e ainda não tinham nenhum caso, exceto a acusação de documento falso contra o Sr. Cherkasov.

Mas eles compartilharam o que descobriram com as agências de inteligência do mundo, cujos agentes cruzaram essas informações com registros de agentes de inteligência russos conhecidos. E encontraram correspondências, o que, em alguns casos, permitiu que os brasileiros associassem um nome real às identidades brasileiras falsas.

O casal que vivia em Portugal sob o nome Pereira, por exemplo, era na verdade Vladimir Aleksandrovich Danilov e Yekaterina Leonidovna Danilova, de acordo com dois oficiais de inteligência ocidentais.

O Brasil há muito tempo mantém a neutralidade em relação a divisões geopolíticas. Mesmo após a invasão da Ucrânia pela Rússia, o Brasil manteve uma relação amigável com Moscou. Portanto, o uso do território brasileiro pelo Kremlin para uma operação de espionagem em larga escala foi visto como uma traição. As autoridades queriam enviar uma mensagem.

“Nós simplesmente juntamos as cabeças e pensamos: 'O que é pior do que ser preso como espião?'”, disse o investigador brasileiro sênior. “É ser exposto como espião.”

Para isso, os investigadores tiveram uma ideia audaciosa: poderiam usar a Interpol, a maior organização policial do mundo, para queimar os espiões de Putin.

Foi uma vingança irônica. O Sr. Putin, durante anos, manipulou os bancos de dados da Interpol para perseguir dissidentes e oponentes políticos.

No outono passado, os brasileiros emitiram uma série de alertas azuis da Interpol — alertas buscando informações sobre uma pessoa. Os avisos circularam os nomes, fotografias e impressões digitais dos espiões russos, incluindo o Sr. Shmyrev e o Sr. Cherkasov, para todos os 196 países membros.

A Interpol, como órgão independente, não lida com questões politizadas como espionagem. Para contornar isso, as autoridades brasileiras disseram que os russos estavam sendo investigados por uso de documentos fraudulentos.

O Uruguai emitiu alertas semelhantes, aos quais o The Times teve acesso, para suspeitos de serem espiões russos que apareceram no país sob identidades brasileiras. Seus nomes verdadeiros, segundo autoridades de inteligência, eram Roman Olegovich Koval, Irina Alekseyevna Antonova e Olga Igorevna Tyutereva.

O Sr. Koval e a Sra. Antonova, o casal, deixaram o Brasil repentinamente em um voo para o Uruguai em 2023, disseram os investigadores. O último paradeiro conhecido da Sra. Tyutereva era a Namíbia, de acordo com a autoridade sênior.

Os avisos da Interpol não incluem os nomes reais, mas sim as fotografias e outras informações de identificação. Com suas identidades registradas em bancos de dados policiais e seus nomes verdadeiros sinalizados por serviços de espionagem, os agentes provavelmente nunca mais poderão trabalhar como espiões estrangeiros.

De todos os espiões, apenas o Sr. Cherkasov permanece preso. Ele foi condenado por falsificação de documentos e sentenciado a 15 anos de prisão, mas sua pena foi reduzida para cinco anos.

Em uma aparente manobra para fazê-lo voltar para casa mais cedo, o governo russo alegou que ele era um traficante de drogas procurado e entrou com documentos no tribunal pedindo sua extradição.

Mas os brasileiros reagiram rapidamente. Se o Sr. Cherkasov era traficante de drogas, argumentaram os promotores, era essencial que ele permanecesse preso por mais tempo para que a polícia pudesse investigar.

Caso contrário, ele já poderia ter sido solto. Mas continua preso em Brasília.

"Você vai ouvir coisas sobre mim"

Por um tempo, depois de deixar o Brasil, o Sr. Shmyrev entrou em contato regularmente com amigos e sua namorada brasileira. Mas, no início de janeiro de 2023, suas mensagens de texto pararam.

“Semanas se passaram e não sabíamos o que fazer”, disse o Sr. Martinez, seu amigo.

A namorada do Sr. Shmyrev postou em um grupo do Facebook chamado Brasileiros em Kuala Lumpur pedindo ajuda para encontrá-lo.

“Começamos como um trabalho de detetive”, disse o Sr. Martinez. “Fazíamos buscas online. Ligamos para as delegacias, embaixadas, hotéis em Kuala Lumpur, tentando encontrá-lo. E não conseguimos encontrá-lo.”

Como o Sr. Shmyrev não embarcou em seu voo de volta ao Brasil, a polícia interveio. Os agentes descobriram que ele havia deixado para trás vários dispositivos eletrônicos que continham dados pessoais cruciais, incluindo mensagens de texto com sua esposa espiã russa. Ele também deixou US$ 12.000 em dinheiro em seu cofre.

Essas são indicações de que ele planejava retornar. Assim como os outros, as questões sobre o que o levou a partir e o que o manteve afastado permanecem um mistério. Por volta dessa época, sua esposa russa deixou repentinamente seu posto de espionagem na Grécia. Ela foi posteriormente denunciada pelas autoridades gregas.

Apesar de tudo, amigos disseram que sentem falta dele.

"Às vezes penso que um dia vou para lá, para São Petersburgo", disse o Sr. Martinez. "Vou estar no balcão. Vou pedir uma vodca. E aí, tipo, ele vai estar do outro lado."

Em sua fantasia, o Sr. Martinez acena para o Sr. Shmyrev, e o Sr. Shmyrev acena de volta.

O último contato conhecido do Sr. Shmyrev com o Brasil foi um telefonema para a namorada depois que ele partiu. Conforme relatado ao Sr. Martinez, seu amigo estava triste, talvez chorando.

"Vocês vão ouvir coisas sobre mim, mas precisam saber que eu nunca fiz nada tão ruim. Tipo, eu nunca matei ninguém nem nada parecido", disse ele, nas lembranças do Sr. Martinez.

“Meu passado me alcançou”, disse ele.


Rodrigo Pedroso contribuiu com reportagem de São Paulo. Produção de Gabriel Gianordoli e Rumsey Taylor.

Michael Schwirtz é repórter investigativo da editoria internacional. No The Times desde 2006, ele cobriu os países da antiga União Soviética de Moscou e foi repórter principal de uma equipe que ganhou o Prêmio Pulitzer de 2020 por artigos sobre operações de inteligência russas.

Jane Bradley é repórter investigativa na área internacional. Ela trabalha em Londres, onde se concentra em abusos de poder, segurança nacional, criminalidade e injustiças sociais.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Xi’s Visit to Russia Complicates China’s Courtship of Europe - David Pierson, Paul Sonne (The New York Times)

 VISITA DE XI À RUSSIA COMPLICA O CORTEJO DA CHINA PELA EUROPA 

(Grato a Olympio Pinheiro)

Xi Jinping, líder chinês, está fortalecendo seus laços com o presidente russo, Vladimir V. Putin. 

Mas isso pode prejudicar os esforços de Pequim para restaurar os laços com a Europa.

[Ler artigo do New York Times  no original]: 

 

Xi’s Visit to Russia Complicates China’s Courtship of Europe.

Xi Jinping, China’s leader, is reinforcing his bond with President Vladimir V. Putin of Russia. But that could hurt Beijing’s efforts to repair ties with Europe.

David Pierson, Paul Sonne

The New York Times, May 7, 2025


As Donald J. Trump has injected chaos into the world by roiling America’s alliances and threatening economic turmoil with his wall of tariffs, China has tried to sell a consistent message: We will be a force of global stability during a turbulent time.

That pitch will be more difficult to square as Xi Jinping visits Moscow this week for talks with President Vladimir V. Putin of Russia, who will honor the Chinese leader as the “main guest” at a military parade on Friday marking the 80th anniversary of the Soviet Union’s victory over Nazi Germany in World War II.

For Mr. Xi and Mr. Putin, the visit is a chance to burnish their legitimacy as leaders of countries that defeated fascist Germany and imperial Japan. Mr. Xi wants to use the anniversary to draw parallels between fascism and what he has described as American bullying.

“We must learn from history, draw wisdom and strength from the profound lessons of the Second World War and the great victory of the anti-fascist war, resolutely oppose all forms of hegemony and power politics, and jointly create a better future for mankind,” Mr. Xi said in a signed article published in Russian media on Wednesday.

But his presence alongside Mr. Putin at Red Square will also inevitably remind the world of China’s support for Russia’s war in Ukraine, which has been grinding on for more than three years, killing hundreds of thousands and upending European security.

The optics of the visit could undermine China’s efforts to repair its relationship with Europe to try to offset the pain of its punishing trade war with the United States. American and Chinese officials will hold initial trade talks this weekend in Switzerland, but the likelihood of a prolonged fight remains high. China needs to maintain access to, or even expand, markets like Europe, for its exports that had previously been destined for American buyers.

“Xi’s presence in Moscow, alongside Putin, will serve as a stark reminder to Europe of just how close this relationship has become, and the threat that it could one day pose to NATO’s eastern flank,” said Noah Barkin, a senior adviser at Rhodium Group and a visiting senior fellow at the German Marshall Fund of the United States based in Berlin.

That closeness may have been overshadowed recently by Mr. Trump’s attempts to strike a peace deal in Ukraine that heavily favored Russia, Mr. Barkin added, but it will come back into focus now that China is trying to court Europe.

Beijing has long sought to peel the affluent nations of the European Union from Washington’s influence. Those efforts have been stymied by tensions over human rights; a yawning trade imbalance fueled by the flood of Chinese exports like electric vehicles; and most significantly, China’s continued diplomatic and economic support for Russia despite the war in Ukraine.

In recent days, Beijing has been trying to initiate a thaw with Brussels, sensing an opening from the fracturing of the trans-Atlantic alliance because of the Trump administration’s antagonism toward Europe. In a statement on Tuesday, Mr. Xi called for a “healthy and stable China-E.U. relationship.”

On Tuesday, the Chinese foreign ministry said China and the European Parliament had agreed to remove restrictions on exchanges between their officials, and confirmed that China had lifted sanctions on members of the European Parliament. China’s moves have been seen by analysts as an attempt to persuade the Europeans to restart talks on a stalled investment agreement, though there appears to be little enthusiasm in Brussels for doing so.

Mr. Xi is trying to strike a “risky diplomatic balance,” hoping that he can exploit divisions in Europe between those who view China as a threat, and those that view it as a vital business partner, said Alicja Bachulska, an expert on Chinese foreign policy at the European Council on Foreign Relations.

But in Beijing on Tuesday, the European Union’s ambassador to China, Jorge Toledo, used a speech at a reception celebrating ties between the European Union and China to pointedly highlight how Russia’s war on Ukraine weighed heavily on the 27-nation bloc.

“The E.U. will stand with Ukraine, whatever it takes and for how long it takes,” Mr. Toledo said at an event that was attended by one of China’s most senior diplomats, Hua Chunying.

To show off China’s friendship with Russia, the Chinese People’s Liberation Army’s honor guard will perform at Friday’s Victory Day parade in Moscow. Mr. Putin has long attached great importance to May 9, the day when Moscow celebrates its victory over the Nazis. The Soviet Union lost an estimated 27 million soldiers and civilians during the war, a staggering death toll, which many Russians view as the high cost Moscow had to bear to save the world from the fascist threat.

The Russian leader has drawn upon that emotional history to motivate his forces fighting against Ukraine, falsely casting the Ukrainian leader, President Volodymyr Zelensky, who is Jewish, as the head of a Nazi government that once again must be defeated, regardless of the cost.

Perhaps no foreign leader has been more helpful to Mr. Putin in that war than Mr. Xi. As Russia faced isolation from the West, China increased its engagement with Moscow, keeping the Russian economy afloat through purchases of oil and other natural resources and supplying Russia with critical dual-use technology and components to sustain the war effort. China also eased shocks to the Russian consumer economy, becoming a top seller of cars and other durable goods, as Western brands retreated from the Russian market.

As much as Mr. Xi may want to win over Europe, his relationship with Mr. Putin is paramount. He views Russia as a critical counterweight to the United States and a partner in forging an alternative world order suspicious of Western dominance.

“Standing next to Putin will signal that he has leverage, he has bet on the right horse, and the audience will be domestic and in the global south,” said Alexander Gabuev, the director of the Carnegie Russia Eurasia Center, referring to developing countries.

Mr. Putin said last month that Mr. Xi would be Russia’s “main guest” at the Victory Day celebrations. Moscow will also treat the Chinese leader’s trip, stretching from May 7 to 10, as a “separate visit” complete with bilateral talks and events, Mr. Putin said. The leaders are expected to sign agreements, and, in September, Mr. Putin will visit China when Beijing marks the anniversary of the end of World War II.

Mr. Putin and Mr. Xi, who have met dozens of times in the past decade, regularly speak of a stable, enduring and long-term relationship between their countries. Projecting solidarity with Russia is crucial for China at a time when President Trump has pursued an attempted rapprochement with Moscow while launching a trade war against Beijing.

“The priority was to signal to the U.S. that China and Russia share an unbreakable bond. There have been some moments of doubts and suspicion in the past few months, especially given the direct engagement between the United States and Russia,” said Yun Sun, the director of the China program at the Stimson Center in Washington. Now with American efforts to mediate a peace deal in Ukraine at a stalemate, “there are more incentives between China and Russia to present a solid image of their alignment.”


Zixu Wang contributed research from Hong Kong.

David Pierson covers Chinese foreign policy and China’s economic and cultural engagement with the world. He has been a journalist for more than two decades.

Paul Sonne is an international correspondent, focusing on Russia and the varied impacts of President Vladimir V. Putin’s domestic and foreign policies, with a focus on the war against Ukraine.


quarta-feira, 30 de abril de 2025

Acabo de enxergar o futuro, e adivinhem? Ele não envolve os Estados Unidos - Thomas Friedman (The New York Times/Estadão)

 Opinião

Acabo de enxergar o futuro, e adivinhem? Ele não envolve os Estados Unidos
O foco de Trump recai sobre quais modalidades atletas transgêneros americanos podem competir, enquanto a China está focada em transformar suas fábricas com IA para superar todas as manufaturas americanas

Por Thomas Friedman
The New York Times, 03/04/2025
https://www.estadao.com.br/internacional/acabo-de-vislumbrar-o-futuro-nao-nos-eua/?utm_source=estadao:whatsapp&utm_medium=link&app_absent=0

Deparei-me com uma escolha outro dia em Xangai: que Tomorrowland visitar? Eu deveria conhecer a falsa Tomorrowland, projetada por americanos na Disneylândia de Xangai, ou a Tomorrowland verdadeira — o enorme novo centro de pesquisas, aproximadamente do tamanho de 225 campos de futebol americano construído pela gigante chinesa da tecnologia Huawei? Fui à Huawei.

A visita foi fascinante e impressionante, mas, no fim das contas, profundamente perturbadora, uma confirmação vívida do que um empresário americano que trabalhou na China por várias décadas me disse em Pequim. “Houve um tempo em que as pessoas iam para os Estados Unidos ver o futuro”, disse ele. “Agora vêm para cá.”
Eu nunca tinha visto nada parecido com esse complexo da Huawei. Construído em pouco mais de três anos, o espaço conta com 104 edifícios projetados individualmente com gramados bem cuidados, conectados por um monotrilho semelhante ao da Disney, laboratórios para até 35 mil cientistas, engenheiros e outros trabalhadores e 100 cafés, além de estúdios de fitness e outras vantagens projetadas para atrair os melhores especialistas em tecnologia chineses e estrangeiros.
O complexo de pesquisa e desenvolvimento no Lago Lianqiu é basicamente a resposta da Huawei à tentativa dos EUA de sufocar a empresa até a morte a partir de 2019, restringindo-lhe a exportação de tecnologia americana, incluindo semicondutores, em meio a preocupações com a segurança nacional. A proibição infligiu prejuízos enormes à Huawei, mas com a ajuda do governo chinês a empresa buscou inovar seu rumo ao nosso redor. Conforme noticiou o jornal sul-coreano Maeil Business no ano passado, é exatamente isso que a empresa tem feito: “A Huawei surpreendeu o mundo ao apresentar a série ‘Mate 60’, um smartphone equipado com semicondutores avançados no ano passado, apesar das sanções dos EUA”. A Huawei foi adiante lançando o primeiro smartphone triplamente dobrável do mundo e revelou seu próprio sistema operacional móvel, o Hongmeng (Harmonia), para competir com os softwares da Apple e do Google.
A empresa também entrou no ramo de criar tecnologia de IA para todas as coisas, de veículos elétricos e autônomos até equipamentos de mineração autônomos capazes de substituir mineiros humanos. Diretores da Huawei afirmaram que somente em 2024 e empresa instalou 100 mil carregadores rápidos em toda a China para seus veículos elétricos; em contraste, em 2021 o Congresso dos EUA alocou US$ 7,5 bilhões para a construção de uma rede de estações de carregamento, mas em novembro havia apenas 214 carregadores dessa rede operando em 12 Estados.
É realmente assustador ver isso de perto. O foco do presidente Donald Trump recai sobre quais modalidades atletas transgêneros americanos podem competir, e a China está focada em transformar suas fábricas com IA para ser capaz de superar todas as nossas manufaturas. A estratégia de “Dia da Libertação” de Trump é dobrar o valor das tarifas ao mesmo tempo que destrói nossas instituições científicas nacionais e a força de trabalho que estimula a inovação nos EUA. A estratégia de libertação da China é abrir mais complexos de pesquisa e dobrar a aposta na inovação impulsionada pela IA para se libertar permanentemente das tarifas de Trump.
A mensagem de Pequim para Washington: nós não temos medo de vocês, vocês não são quem pensam que são — e nós não somos quem vocês pensam que somos.
O que quero dizer com isso? Evidência A: em 2024, o Wall Street Journal noticiou que o “lucro líquido da Huawei mais que dobrou no ano passado, marcando um retorno impressionante” estimulado por um novo hardware “que roda com seus chips nacionais”. Evidência B: o Wall Street Journal citou recentemente o senador republicano Josh Hawley afirmando o seguinte sobre a China: “Não acho que eles sejam capazes de muita inovação por conta própria, mas serão se continuarmos compartilhando toda essa tecnologia com eles”.
Alguns dos nossos senadores precisam sair mais de casa. Se você é um legislador americano e quer criticar a China, fique à vontade — posso até me juntar a você no rolê — mas pelo menos faça sua lição de casa. Há muito pouco disso em ambos os partidos atualmente e muito consenso sobre o espaço politicamente seguro ser atacar Pequim, cantar algumas vezes “USA, USA, USA”, pronunciar alguns clichês sobre democracias sempre superarem autocracias em inovação e encerrar o assunto.
Prefiro expressar meu patriotismo sendo brutalmente honesto a respeito de nossas fraquezas e pontos fortes e sobre as fraquezas e pontos fortes da China, por que acredito que o melhor futuro para ambos os países — às vésperas da revolução da IA — é uma estratégia chamada: Fabricado nos EUA, por trabalhadores americanos em parceria com capital e tecnologia chineses.
Permitam-me explicar.

O pensamento mágico de Trump
Eu concordei com Trump em relação às tarifas sobre a China em seu primeiro mandato. Os chineses estavam impedindo a entrada de certos produtos e serviços americanos, e nós precisávamos tratar as tarifas de Pequim de forma recíproca. Por exemplo, a China evitou por anos deixar que cartões de crédito americanos fossem usados no país, esperando que suas próprias plataformas de pagamento dominassem completamente o mercado e tornassem sua nação uma sociedade sem dinheiro, onde praticamente todos pagam por tudo com aplicativos em seus celulares. Ao usar meu cartão Visa numa loja de uma estação ferroviária de Pequim, na semana passada, fui informado de que ele tinha de ser vinculado a um desses aplicativos, como o Alipay ou o WeChat Pay chinês, que, combinados, têm uma participação de mais de 90% no mercado.
Eu até concordo com Trump no sentido de que tarifas adicionais — e direcionadas — nas portas dos fundos que a China usa para entrar nos EUA, como México e Vietnã, podem ser úteis, mas apenas como parte de uma estratégia maior.
Meu problema é com o pensamento mágico de Trump, segundo o qual basta simplesmente erguer muros de proteção em torno de uma indústria (ou de toda a nossa economia) e — abracadabra! — em pouco tempo a manufatura americana florescerá e fabricará esses produtos dentro dos EUA sob o mesmo custo e sem nenhum ônus para os consumidores locais.
Para começar, essa visão ignora completamente o fato de que praticamente todos os produtos complexos hoje em dia — como carros, iPhones e vacinas de mRNA — são fabricados por ambientes globais de manufatura, gigantescos e complexos. É por isso que esses produtos ficam cada vez melhores e mais baratos. Claro, se você está protegendo a indústria siderúrgica, que fabrica uma commodity, nossas tarifas podem ajudar rapidamente. Mas se você está protegendo a indústria automobilística e acha que simplesmente erguer um muro tarifário resolverá o problema, você não sabe nada sobre como os carros são fabricados. Levaria anos para as montadoras americanas substituírem as cadeias globais de fornecimento das quais dependem e fabricarem tudo nos EUA. Até a Tesla precisa importar algumas peças.
Mas também estaremos errados se pensarmos que a China simplesmente trapaceou para conseguir chegar ao domínio global da manufatura. Os chineses trapacearam sim, copiaram e forçaram transferências de tecnologia. Mas o que torna a força motriz da manufatura chinesa tão poderosa hoje não é a China simplesmente tornar as coisas mais baratas; a China torna as coisas mais baratas, mais rápidas, melhores, mais inteligentes e cada vez mais infundidas de IA.
De que maneira? O ex-presidente da Câmara de Comércio da UE na China Jörg Wuttke a qualifica como “academia de ginástica chinesa”, que funciona assim:
A China começa com ênfase em educação STEM (ciência, tecnologia, engenharia e matemática). A cada ano, o país produz cerca de 3,5 milhões de graduados em STEM, quase o mesmo número de formandos em programas de graduação, bacharelado, mestrado e doutorado em todas as disciplinas nos EUA.
Quando há tantos graduados em STEM, você é capaz de lançar mais talentos sobre qualquer problema. Conforme noticiou o chefe da redação do Times em Pequim, Keith Bradsher, no ano passado: “A China tem 39 universidades com programas para treinar engenheiros e pesquisadores para a indústria de terras raras. As universidades americanas e europeias oferecem principalmente cursos ocasionais”.
E embora muitos engenheiros chineses possam não se formar com habilidades de nível MIT, os melhores são sim de classe mundial, e há muitos deles. Há 1,4 bilhão de pessoas na China. Isso significa que, na China, quando você é um talento em 1 milhão, há outras 1,4 mil pessoas como você.
Tão importante quanto, as escolas vocacionais chinesas formam dezenas de milhares de eletricistas, soldadores, carpinteiros, mecânicos e encanadores todos os anos; portanto, quando alguém tem uma ideia para um novo produto e quer abrir uma empresa, a fábrica pode ser construída muito rapidamente. Você precisa de um botão com bolinhas cor de rosa capaz de reproduzir o hino nacional chinês de trás para frente? Alguém por aqui fabricará o produto para você até amanhã. Também será entregue rápido. Mais de 550 cidades chinesas são conectadas por trens de alta velocidade que fazem nosso Amtrak Acela parecer o Pony Express.
E quando tudo é digitalizado e conectado implacavelmente nós podemos entrar e sair do nosso quarto de hotel rapidamente usando apenas reconhecimento facial. Mendigos experientes em tecnologia que carregam códigos QR impressos podem receber esmolas rapidamente com a leitura dos celulares. Todo o sistema é configurado para a velocidade — inclusive a quem desafiar o governo do Partido Comunista, nesse caso o indivíduo será preso rapidamente, dadas as câmeras de segurança em todos os lugares, e desaparecerá rapidamente.
Se não construirmos um sistema semelhante por trás de qualquer barreira tarifária, nós teremos apenas inflação e estagnação. É impossível alcançar a prosperidade simplesmente impondo tarifas, especialmente no alvorecer da IA.
Eu também estive na China quatro meses atrás. Entre aquela temporada e agora, inovadores em IA na China demonstraram sua capacidade de desenvolver uma ferramenta própria de IA de código aberto, o DeepSeek, com muito menos chips especializados fabricados pelos EUA. Eu pude sentir o encantamento na comunidade tecnológica. Foi palpável. No mês passado, o primeiro-ministro Li Qiang declarou na cerimônia de abertura do Congresso Nacional do Povo que o governo chinês está apoiando “a aplicação ampla de modelos de IA em grande escala”.

Inovadores em IA na China desenvolveram uma ferramenta própria de IA de código aberto, o DeepSeek, com muito menos chips especializados fabricados pelos EUA.

Um jovem engenheiro automotivo chinês que já trabalhou para a Tesla por aqui me disse: “Agora todos estão competindo sobre quanta IA é inserida. Agora você se gaba sobre quanta IA insere. Todos estão comprometidos. ‘Vou usar IA mesmo que eu não saiba bem como neste momento.’ Todos estão se preparando para isso, mesmo em linhas de produção simples para fabricar refrigeradores. ‘Tenho que usar IA porque meu chefe me disse para usar’“.
Atenção, clientes do Kmart: quando já existe um sistema de manufatura tão poderoso e conectado digitalmente quanto o da China e então você o infunde com IA em todos os níveis é como injetar um estimulante capaz de otimizar e acelerar todos os aspectos da manufatura, em design, testes e produção.
Não é um bom momento para legisladores americanos evitarem visitas à China por medo de serem chamados de abraçadores de pandas.
Como me disse Han Shen Lin, um americano que trabalha como diretor nacional para China no Asia Group, durante um café da manhã no Peace Hotel de Xangai, “o DeepSeek não deveria ter sido uma surpresa”. Mas, continuou ele, com todas as novas “restrições de investimento no exterior e desincentivos à colaboração nós agora ficamos cegos para os desenvolvimentos tecnológicos da China. A China está definindo os padrões tecnológicos do futuro sem a colaboração dos EUA. Isso nos colocará em uma séria desvantagem competitiva no futuro”.

Pequim não deseja uma guerra comercial
Apesar de todos os pontos fortes dos chineses, a China não deseja uma guerra comercial com os EUA. Muitos chineses de classe média estão infelizes neste momento. Por mais de uma década, muitos chineses investiram seu dinheiro na compra de apartamentos em vez de colocar suas economias em bancos que praticamente não pagavam juros. Isso criou uma enorme bolha imobiliária. Muita gente ascendeu e então decaiu economicamente quando o governo restringiu os empréstimos imobiliários, em 2020.
Então os chineses passaram a poupar seu dinheiro, porque seus ganhos no setor imobiliário acabaram, mas os pagamentos de pensão e assistência médica do governo são escassos. Todo mundo tem que economizar para um futuro nebuloso.
Conforme meu colega Keith Bradsher acaba de noticiar, a desaceleração econômica tem privado Pequim das receitas fiscais de que precisa para estimular a economia e subsidiar “as indústrias de exportação que impulsionam o crescimento econômico e podem ser prejudicadas por tarifas”.
Em suma, a ginástica chinesa é incrível, mas Pequim ainda precisa de um acordo comercial com Trump que proteja suas exportações.

Nós também. Trump, no entanto, se tornou um ator tão imprevisível, mudando políticas a todo instante, que as autoridades chinesas se perguntam seriamente se poderão fechar algum acordo com o presidente que ele respeite.
A especialista em negociação Michele Gelfand, da Universidade Stanford, afirmou: “Os defensores de Trump argumentam que sua imprevisibilidade desestabiliza os oponentes. Mas os grandes negociadores sabem que confiança, não caos, obtém resultados duradouros. A abordagem ‘ganha-perde’ de Trump para fazer acordos é um jogo perigoso”. Gelfand acrescentou: “Se ele continuar a tratar irresponsavelmente aliados como adversários e negociações como campos de batalha, os EUA arriscam não apenas ir mal nos negócios, mas também se deparar com um mundo no qual não teremos mais ninguém com quem negociar”.

Na minha opinião, o único acordo “ganha-ganha” é o que eu chamaria de: Fabricado nos EUA, por trabalhadores americanos em parceria com tecnologia, capital e especialistas chineses. Ou seja, simplesmente invertemos a estratégia que a China usou para enriquecer na década de 1990, que foi: Fabricado na China, por trabalhadores chineses, com tecnologia, capital e parceiros americanos, europeus, coreanos e japoneses.

Vejam como o consultor de negócios Jim McGregor, que viveu 30 anos na China, definiu-me a coisa: grandes multinacionais dos EUA costumavam ir para a China e fazer joint ventures com empresas chinesas para entrar no mercado chinês. Agora, empresas estrangeiras estão indo para a China e dizendo às multinacionais chinesas: se vocês querem entrar na Europa, façam joint ventures conosco e tragam sua tecnologia.
Nós deveríamos estar associando a qualquer tarifa sobre a China um tapete de boas-vindas para empresas chinesas entrarem no mercado dos EUA licenciando suas melhores inovações em manufatura para empresas americanas ou estabelecendo parcerias com os chineses e criando fábricas avançadas, em empreendimentos 50-50. No entanto, as joint ventures chinesas nos EUA teriam que elevar constantemente a parcela de peças que comprariam localmente, em vez de importá-las indefinidamente.
Isso, é claro, exigiria um grande esforço no sentido de reconstruir a confiança, que agora está quase totalmente ausente no relacionamento. Esta é a única maneira de chegarmos a um comércio razoavelmente ganha-ganha. Sem isso, estaremos caminhando para o perde-perde. Por exemplo, em 19 de março, o Senado do Texas aprovou preliminarmente um projeto de lei que pretende proibir residentes e organizações da China, do Irã, da Coreia do Norte e da Rússia de possuírem propriedades no Texas. Colocar a China nessa lista é simplesmente burrice: banir alguns dos maiores cérebros do mundo em vez de criar incentivos e condições para que eles invistam no Texas.
Quando nós ficamos tão assustados? E quando perdemos contato com o mundo em que vivemos a tal ponto? Vocês podem denunciar mazelas do globalismo o quanto quiserem, mas isso não mudará o fato de que as telecomunicações, o comércio, as migrações e as mudanças climáticas nos mesclaram e fundiram, assim como aos nossos destinos.
Gosto da maneira como Dov Seidman, autor do livro How: Why How We Do Anything Means Everything (Como: Por que a maneira que fazemos qualquer coisa significa tudo), descreve o fenômeno. Ele me disse que tratando-se de EUA e China — e do mundo em geral — “a interdependência não é mais nossa escolha. É nossa condição. Nossa única escolha é forjar interdependências saudáveis e ascender juntos, ou manter interdependências doentias e despencar juntos”.
Seja o que for, nós faremos juntos.
Líderes americanos e chineses sabiam disso. Eventualmente, vão reaprender. A única dúvida em minha mente é: quando o fizerem, o que restará da economia global unificada no passado que produziu tanta riqueza para ambas as nações?

TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Opinião por Thomas Friedman
é colunista de assuntos internacionais do The New York Times e ganhador de três prêmios Pulitzer. É autor de sete livros, entre eles 'De Beirute a Jerusalém', que venceu o Prêmio Nacional do Livro.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

A poluição por chumbo pode ter contribuído para a decadência do Império Romano - Katherine Kornei, The New York Times (Estadão)

Estadão

Ciência

A contaminação que pode ter baixado o QI de um dos principais impérios da história

Nova pesquisa detalha o que pode ter sido o primeiro caso de poluição industrial generalizada no mundo: a poluição na forma de chumbo entre os romanos

 

Por Katherine Kornei, The New York Times

O Estado de S. Paulo, 16/01/2025



Há aproximadamente dois mil anos, o Império Romano estava florescendo. Mas algo sinistro pairava no ar. Literalmente.

Uma poluição generalizada na forma de chumbo atmosférico estava afetando a saúde e a inteligência, relataram pesquisadores na semana passada na revista Proceedings of the National Academy of Sciences.

Durante cerca de dois séculos, a partir de 27 a.C., um período de relativa estabilidade e prosperidade conhecido como Pax Romana, o império se estendia por toda a EuropaOriente Médio e norte da África. Sua economia dependia da cunhagem de moedas de prata, o que exigia enormes operações de mineração.

No entanto, extrair prata da Terra produz muito chumbo, disse Joseph McConnell, cientista ambiental do Desert Research Institute, um grupo sem fins lucrativos baseado em Nevada (EUA), e o principal autor da nova pesquisa. “Se você produzir uma onça (unidade de medida que equivale a 28,35 gramas) de prata, teria produzido algo como 10 mil onças de chumbo.”

E o chumbo tem uma série de efeitos negativos no corpo humano. “Não existe um nível seguro de exposição ao chumbo”, disse Deborah Cory-Slechta, uma neurotoxicologista do Centro Médico da Universidade de Rochester que não esteve envolvida na pesquisa.

McConnell e seus colegas agora detectaram chumbo em camadas de gelo coletadas na Rússia e na Groenlândia que datam da época do Império Romano. O chumbo entrou na atmosfera a partir das operações de mineração romanas, pegou carona em correntes de ar e eventualmente caiu da atmosfera como neve no Ártico, supõe a equipe.

Os níveis de chumbo que McConnell e seus colaboradores mediram eram extremamente baixos, aproximadamente uma molécula contendo chumbo por trilhão de moléculas de água. Mas as amostras de gelo foram coletadas a milhares de quilômetros do sul da Europa, e as concentrações de chumbo teriam sido altamente dispersas após uma jornada tão longa.

Para estimar a quantidade de chumbo originalmente emitida pelas operações de mineração romanas, os pesquisadores trabalharam de forma reversa: usando poderosos modelos computadorizados da atmosfera do planeta e fazendo suposições sobre a localização dos locais de mineração, a equipe variou a quantidade de chumbo emitido para corresponder às concentrações que mediram no gelo.

Em um caso, eles assumiram que toda a produção de prata ocorria em um local de mineração historicamente importante no sudoeste da Espanha conhecido como Rio Tinto. Em outro caso, presumiram que a mineração de prata estava igualmente distribuída por dezenas de locais.

A equipe calculou que de 3.300 a 4.600 toneladas de chumbo eram emitidas na atmosfera a cada ano pelas operações de mineração de prata romanas. Os pesquisadores, então, estimaram como todo aquele chumbo seria espalhado pelo Império Romano.

“Executamos o modelo na direção correta para ver como essas emissões seriam distribuídas”, disse McConnell.

Com essas concentrações de chumbo na atmosfera em mãos, os pesquisadores usaram dados dos dias modernos para estimar quanto chumbo teria entrado na corrente sanguínea das pessoas na Roma antiga.

McConnell e seus colegas se concentraram em bebês e crianças. Os jovens são particularmente suscetíveis a absorver chumbo do ambiente por meio da ingestão e da inalação, disse o Dr. Bruce Lanphear, médico de saúde pública da Universidade Simon Fraser na Colúmbia Britânica que não esteve envolvido na pesquisa.

Nas últimas décadas, os níveis de chumbo no sangue das crianças foram correlacionados com uma série de métricas de saúde física e mental, incluindo QI, disse Cory-Slechta. “Temos dados reais sobre os escores de QI em crianças com diferentes concentrações de chumbo no sangue.”

Usando essas relações dos dias modernos, McConnell e sua equipe estimaram que as crianças em grande parte do Império Romano teriam cerca de 2 a 5 microgramas adicionais de chumbo por decilitro de sangue. Tais níveis correspondem a declínios de QI de aproximadamente 2 ou 3 pontos.

Para comparação, as crianças americanas nos anos 1970 tinham aprimoramentos médios nos níveis de chumbo no sangue de cerca de 15 microgramas de chumbo a mais por decilitro de sangue antes da eliminação gradual da gasolina com chumbo e das tintas com chumbo. Seu correspondente declínio médio de QI foi de cerca de 9 pontos.

Mas a exposição ao chumbo teria tido outros efeitos negativos nos romanos também. Níveis mais altos de chumbo no sangue também foram vinculados a maiores incidências de partos prematuros e funcionamento cognitivo reduzido na velhice. “Isso te segue ao longo da vida”, disse Lanphear.

Alguns estudiosos desenvolveram a hipótese de que o envenenamento por chumbo desempenhou papel importante no declínio do Império Romano. Mas essa ideia tem sido questionada, pelo menos no que diz respeito à água contaminada por tubulações de chumbo. Um estudo de 2014 mostrou que, embora as tubulações usadas para distribuir água em Roma aumentassem os níveis de chumbo, era improvável que a água fosse verdadeiramente prejudicial.

Esses novos achados fazem sentido, disse Hugo Delile, geoarqueólogo do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França, que não esteve envolvido na pesquisa. “Eles confirmam a extensão da poluição por chumbo resultante das atividades de mineração e metalurgia romanas.”

De acordo com McConnell, a pesquisa também confere uma honra duvidosa à mineração romana. “Até onde sei, é o exemplo mais antigo de poluição industrial generalizada.”

 

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Björn Höcke: O homem que prepara o terreno para uma Alemanha extremista - Erika Solomon (The New York Times, Estadão)

Quem disse que os alemães tinham se curado do nazismo? Se eles pareciam vacinados desde os anos 1960 até os 80, a unificação alemã, e os problemas que ela trouxe, levaram os alemães da antiga DDR, a República Democrática Alemã, onde eles eram oficialmente antinaziptas e antifascistas, a se voltarem para os seus antigos ídolos da época totalitária (cabe registrar que eles já viviam numa ditadura, teoricamente socialista e antifascista, mas não há nada mais parecido com um fascista do que um comunista da linha soviética). Pois é, eles votaram maciçamente pela extrema-direita, nas últimas eleições e prometem reincidir com mais força nas próximas, dando maioria aos fascistas, sim, aos fascistas-nazistas.

Acho que os alemães estão novamente divididos, entre democratas e autoritários, e cabe também registrar que o AfD é diretamente financiado por Putin, como o são outros partidos de direita da Europa.

Os companheiros, Lula em especial, têm certeza de que querem continuar apoiando Putin, só porque ele é teoricamente antiamericano? O seu antiamericanismo supera o seu antifascismo de extrema-direita? 

Se isso se registrar de fato, vou denunciar Lula e o PT como amigos e apoiadores da extrema-direita internacional. Prometido.

Paulo Roberto de Almeida


Estadão Internacional

O homem que prepara o terreno para uma Alemanha extremista

Björn Höcke tem feito mais que levar a extrema direita para o mainstream; ele está fazendo o mainstream pender para a extrema direita

Por Erika Solomon (The New York Times)

24/06/2024 | 22h00, Atualização: 25/06/2024 | 10h10

Em cima de um pequeno palco de um bar numa cidade de arquitetura enxaimel do leste alemão, o ideólogo de direita Björn Höcke contava para um grupo de seguidores, no ano passado, uma história sobre seu iminente julgamento. Ele tinha sido indiciado por dizer, “Tudo pela Alemanha” em um comício político — infringindo leis alemãs que proíbem a propagação de slogans nazistas.


Apesar da iminência daquele julgamento, ele olhou para os fãs e lhes abriu um sorriso maroto. “Tudo pela?”, perguntou ele.

“ALEMANHA!”, gritaram todos.

Depois de uma década colocando em teste os limites do discurso político na Alemanha, Höcke, um dos líderes do partido Alternativa para a Alemanha, ou AfD, não precisa mais passar dos limites sozinho. A multidão faz isso por ele.

Aquele momento amalgama o motivo pelo qual, segundo seus críticos, Höcke, além de representar um desafio para a ordem política, ameaça também a própria democracia alemã.

Por anos, Höcke tratou de desgastar proibições que a Alemanha impôs sobre si mesma para evitar ser tomada por extremistas novamente. A posição alemã a respeito da liberdade de expressão é mais dura que a de muitas democracias ocidentais, consequência das amargas lições dos anos 30, quando os nazistas se valeram de eleições democráticas para capturar os mecanismos do poder.

“Tudo pela Alemanha” era o slogan gravado nos punhais dos soldados nazistas. Ao ressuscitar frases como essa, afirmam os oponentes de Höcke, ele buscou tornar as ideias fascistas mais aceitáveis numa sociedade em que essas expressões não são apenas tabu, são ilegais.

Em maio, juízes consideraram Höcke culpado de usar um slogan nazista intencionalmente e lhe aplicaram uma multa equivalente a US$ 13 mil. Nesta segunda-feira, em razão desse discurso no bar, Höcke foi julgado pela mesma corte por usar o mesmo slogan — novamente.

Este é apenas um dos muitos processos na Justiça que Höcke enfrenta atualmente — e nenhum parece ter diminuído a ascensão de Höcke ou de seu partido. Nas eleições deste mês para o Parlamento Europeu, o AfD ficou em segundo lugar na Alemanha, superando os partidos que governam o país.

Não muito tempo atrás, Höcke se posicionava no extremo de um partido extremista. Ao longo do tempo, ele trouxe o partido cada vez mais para o seu lado, tornando-o ainda mais extremista — e, argumentam especialistas, influenciando todo o ambiente político de direita na Alemanha nesse processo.

Para os seus oponentes, Höcke personifica um esforço odioso da extrema direita de desestigmatizar o passado nazista da Alemanha.

Para seus apoiadores, Höcke é um defensor da liberdade linguística, um combatente que tenta reaver palavras difamadas injustamente e, de maneira mais ampla, preservar sua concepção de uma cultura alemã étnica.

No último dia de seu julgamento, em maio, Höcke, de 52 anos e cabelos grisalhos, vestiu um terno escuro para apresentar-se diante dos promotores de Justiça numa sala de tribunal lotada — e, apaixonadamente, declarou-se inocente.

Apesar de ser ex-professor de história, Höcke insistiu que não sabia que estava usando um slogan nazista. As palavras vieram à sua cabeça espontaneamente, afirmou o réu, ignorando o fato de que, desde que foi acusado, ele persuadiu em duas ocasiões multidões a pronunciarem a frase nazista em seu lugar.

“Nós queremos banir a língua alemã porque os nazistas falavam alemão?”, perguntou ele aos juízes. “Até onde isso deve chegar?”

Os julgamentos de Höcke, que recusou um pedido de entrevista para a elaboração desta reportagem, são parte de uma nova guerra de narrativas sobre a história recente da Alemanha e a respeito de quem pode exatamente se dizer alemão em um país cada vez mais diverso e ansioso em razão de novos desafios econômicos e estratégicos.

Se o objetivo seu é plantar as sementes de um etnonacionalismo, com seus ecos do fascismo, Höcke pode estar fazendo ganhos sutis.

Antes do julgamento, muitos alemães nunca tinham ouvido o slogan nazista “Tudo pela Alemanha”. Agora a frase tem sido repetida e debatida rotineiramente em programas de TV e reportagens em todo o país.

Jogando com a perseguição

A história desempenhou um papel determinante na vida de Höcke.

Höcke nasceu numa família conservadora de prussianos orientais, entre milhões de alemães que viviam na Europa Oriental e fugiram dos avanços do Exército Vermelho no fim da 2.ª Guerra e buscaram refúgio no que veio a se tornar a Alemanha Ocidental.

Essa história de deslocamento e perda na Alemanha foi, na visão de Höcke, ofuscada pelo acerto de contas nacional com os crimes de guerra dos nazista e o Holocausto.

Höcke tem se valido de uma amargura persistente entre os alemães — particularmente na região que pertenceu no passado à comunista Alemanha Oriental — que se sentem ludibriados pela história e consideram que lhes foi negado o direito ao orgulho nacional e à expressão.

Ele acusa os vitoriosos Aliados da 2.ª Guerra de furtar dos alemães suas raízes. “Deixou de haver vítimas alemãs”, afirmou ele num discurso, em 2017. “Havia apenas alemães perpetradores.”

Höcke se mudou para o Estado da Turíngia, no leste da Alemanha, em 2013. Por lá, ajudou a estabelecer um comitê do AfD. Desde então, ascendeu à proeminência em meio a uma série de controvérsias sobre terminologias.

Espelho em Berlim, em protesto contra a direita, mostra frase de Hocke: "O problema é que Hitler é retratado como mal absoluto." 

Espelho em Berlim, em protesto contra a direita, mostra frase de Hocke: "O problema é que Hitler é retratado como mal absoluto."  Foto: REUTERS/Christian Mang

Höcke qualificava as autoridades da ex-chanceler Angela Merkel como uma “Tat-Elite”, mesmo termo com que os oficiais da SS descreviam a si mesmos. Ele questionou repetidamente a razão da palavra “Lebensraum”, que define “espaço vital” e era empregada pelos nazistas no sentido de expansão territorial no Leste Europeu, ainda ser evitada pelos alemães. E chamou o memorial do Holocausto em Berlim de “monumento infame”.

As invocações às ideias da era nazista são tão numerosas que um tribunal decidiu que não é difamação críticos de Höcke descrevê-lo como fascista, mas um “julgamento de valor com base em fatos”.

Por anos, até seu próprio partido buscou escanteá-lo. Agora, seus aliados detêm dois terços das posições de liderança dentro da legenda.

A ascensão dos apoiadores de Höcke, afirmam analistas políticos, reflete a evolução do AfD, de um pequeno partido conservador cético em relação à União Europeia para uma legenda muito mais radical.

Seus líderes passaram a promover o argumento de que o estatuto alemão de nação tem base em linhagens sanguíneas e que somente duras políticas de deportação podem evitar que a Alemanha e outras sociedades ocidentais sejam sobrepujadas por imigrantes.

Hoje, o AfD considera a si mesmo antiglobalista. O partido desconfia das elites urbanas e do que percebe como esforços excessivos do governo nos combates à pandemia de covid e à mudança climática. Muitos de seus líderes propagam teorias conspiratórias que questionam a legitimidade do governo alemão no pós-2.ª Guerra.

A popularidade do AfD, afirmam especialistas, afetou discursos políticos em toda a Alemanha. No ano passado, políticos de todo espectro no mainstream adotaram a hostilidade à imigração promovida pelo AfD e até mesmo em relação a políticas ambientais.

Os líderes do AfD afirmam que os críticos entenderam errado.

“Não houve nenhuma reorientação para a direita”, afirmou o porta-voz do AfD na Turíngia, Torben Braga, que trabalhou para Höcke por anos e mantém uma foto do político sobre sua mesa no escritório. “Ocorreu que certas convicções — demandas políticas que sempre estiveram presentes na sociedade — encontraram uma voz depois de ser suprimidas por décadas.”

Os seguidores do AfD percebem os processos judiciais contra Höcke como uma caça às bruxas para impedir seu despertar.

Essa ideia de perseguição impregna a retórica de Höcke. Em um comício, no mês passado, ele comparou a si mesmo com Sócrates, Jesus Cristo e Julian Assange — colegas dissidentes “espancados pela clava da justiça”.

Coincidentemente ou não, a história também exerce um papel enorme sobre o Estado que Höcke representa.

Cem anos atrás, a Turíngia foi o primeiro lugar onde políticos de extrema direita alcançaram a maioria no Parlamento Estadual. Posteriormente, tornou-se o primeiro Estado em que os nazistas conquistaram o poder.

Em setembro, a previsão é que o AfD obtenha a maioria dos votos na eleição estadual da Turíngia.

“Um ano atrás, eu teria dito que seria impossível Höcke virar primeiro-ministro da Turíngia”, afirmou o historiador Jens-Christian Wagner, que trabalha no memorial do campo de concentração de Buchenwald, na Turíngia.

“Agora eu digo que é improvável”, afirmou ele. “Mas ‘improvável’ significa que é possível.”

Um alter ego?

Em 2012, o sociólogo alemão Andreas Kemper começou a estudar a ascensão da retórica anti-imigração na política alemã — o que despertou seu interesse no AfD e nos discursos do então relativamente desconhecido Björn Höcke.

Höcke usava o termo “economia orgânica de mercado”, que parecia ecoar a expressão “ordem orgânica”, usada pelos nazistas em sua reorganização da economia, em 1934.

Kemper afirmou que, buscando online por outros indivíduos que usavam a mesma terminologia que Höcke, obteve “apenas um resultado exato”: Landolf Ladig, o pseudônimo de um colaborador de uma revista neonazista.

Em um artigo, Ladig descreveu os nazistas como o “primeiro movimento antiglobalista” da história, que “teria se deparado com imitadores em todas as partes” caso tivesse sido bem-sucedido. Alguns, afirmou o autor, sustentam até hoje essas ideias: “As brasas ainda não se apagaram por aqui”.

Kemper encontrou outras similaridades entre as palavras dos homens. A mais estranha foi Ladig citando um livro mencionado por Höcke em um discurso — ambos cometeram exatamente o mesmo erro nas citações.

Kemper eventualmente publicou uma análise com uma acusação chocante: Landolf Ladig, afirmou ele, era na verdade Björn Höcke. “Havia coincidências demais.”

Em 2015, a liderança do AfD pediu que Höcke esclarecesse a controvérsia assinando uma declaração juramentada afirmando que nunca escreveu nem colaborou em artigos sob o pseudônimo de Landolf Ladig.

Höcke se recusou. “Não porque tenho algo a esconder”, disse ele a meios de imprensa alemães na época, mas porque se tratava de “uma tentativa de me difamar”. Ele insistiu que nunca escreveu sob nenhum pseudônimo.

O serviço doméstico de inteligência da Alemanha citou em 2021 o trabalho de Kemper quando classificou o ramo turíngio do AfD como uma organização extremista de direita.

Desde então, vários outros comitês do AfD, assim como a juventude do partido, foram classificados como extremistas. Os líderes do AfD contestam essas classificações, mas afirmam que elas não prejudicaram sua crescente popularidade. Braga, o porta-voz do partido na Turíngia, afirmou que elas podem até estar os ajudando.

“Minha resposta a essa asserção constantemente repetida seria: continuem escrevendo-a”, afirmou ele.

Antes de seu julgamento, Höcke participou de um debate televisionado, no qual insistiu que é difamado intencionalmente. Ele insistiu que deplora o nazismo. E, além disso, argumentou Höcke, muitos antes dele usaram equivocadamente a frase “Tudo pela Alemanha” — até mesmo anúncios da Deutsche Telekom.

Essa alegação chamou a atenção da empresa de telecomunicações — que negou a afirmação de Höcke e solicitou uma ordem de cessar e desistir contra ele.

A Deutsche Telekom compeliu Wagner, o historiador de Buchenwald, a voltar a pesquisar uma coleção de livros em seu escritório publicados pela editora de direita do escritor Götz Kubitschek, que é considerado o padrinho intelectual de Höcke e do AfD.

Um dos ensaios de Kubitschek, intitulado Autotrivialização, define uma estratégia para atrair apoiadores.

O primeiro passo é fazer “cabeças de ponte” verbais, usando palavras controvertidas. O segundo é “entrelaçar-se com o inimigo” — sublinhando exemplos de figuras do mainstream que usam essas mesmas palavras — para semear dúvidas sobre quão radical uma ideia é realmente.

O terceiro passo é “fazer-se inofensivo”, insistindo que essas regras estão dentro das normas do mainstream.

O ensaio termina com um alerta: o objetivo é parecer inofensivo — não se tornar.

Com tantos esforços fracassando em se contrapor ao AfD, Wagner considera os processos judiciais contra Höcke ainda mais importantes.

“Se os políticos não conseguirem definir o limite”, afirmou ele, “o Judiciário, pelo menos, definirá”.

Se houver um limite, contudo, Höcke o testará mesmo assim. No início de maio, ele pronunciou outro discurso na cidade de Hamm, no oeste da Alemanha, anteriormente às eleições europeias. Ele disse à multidão que os tempos estão mudando em sua pátria, acrescentando que “Os sinais apontam para uma tempestade”. Uma frase familiar para quem conhece a história alemã, usada por um jornal nazista em 1933, um dia antes de Hitler assumir o poder.

TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO


Postagem em destaque

Livro Marxismo e Socialismo finalmente disponível - Paulo Roberto de Almeida

Meu mais recente livro – que não tem nada a ver com o governo atual ou com sua diplomacia esquizofrênica, já vou logo avisando – ficou final...