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terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

A questão palestina - Rubens Barbosa (Estadão)

 A QUESTÃO PALESTINA

Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 13/02/2024

       

        Continua a crescer a pressão da opinião pública mundial por uma solução a médio e longo prazo para a dramática situação no Oriente Médio, a fim de evitar a escalada do conflito entre Israel e Hamas e de buscar um entendimento que permita a estabilização política, econômica e militar na região.

       Os altos custos do apoio militar para a Ucrânia e a aproximação da eleição presidencial nos EUA, com forte impacto negativo à candidatura de Biden, são agravados, no curto prazo, pela multiplicação dos incidentes militares, com o risco da situação sair do controle, e pela necessidade de garantir a segurança de Israel e a viabilização do Estado Palestino.

        Com esse pano de fundo, o governo de Washington lançou um balão de ensaio com o vazamento de um esboço de proposta por meio de comentários no New York Times e no The Economist, com grande repercussão.

        Segundo se noticia, estaria havendo conversas sigilosas no sentido de viabilizar um amplo plano de paz - hoje de difícil aceitação por todas as partes envolvidas -, mas que poderá, com concessões de todos, tornar possível vislumbrar uma luz no fim do túnel, caso a posição do governo norte-americano se mantenha firme e os entendimentos se intensifiquem.

        Assim, a política dos EUA em relação a região parece estar evoluindo. O presidente Biden anunciou inéditas sanções contra colonos israelenses que promovem violência contra palestinos na Cisjordânia. Thomas Friedman, no New York Times, prevê uma nova “Doutrina Biden” para o Oriente Médio. As linhas principais dessa nova política americana passariam por uma atitude firme em relação ao Irã, por uma forte pressão sobre Israel, para que aceite a criação de um Estado Palestino, e pelo fortalecimento da aliança com a Arábia Saudita, que reconheceria diplomaticamente Israel. The Economist acrescenta que, em meio a intensa ação diplomática, lideradas pelos EUA e Arábia Saudita, o plano estaria tomando forma, a partir das negociações para a liberação dos reféns em poder do Hamas, (Netanyahu recusou a  última proposta do Hamas), para modificar a política interna israelense e permitir a possibilidade de criação do Estado Palestino.

        O primeiro passo seria uma posição dura em relação ao Irã, incluindo uma retaliação militar robusta contra aliados e agentes do Irã na região (Houthis, ISIS e outros grupos) em resposta às mortes dos três soldados americanos em uma base na Jordânia, por um drone aparentemente lançado por uma milícia pró-Irã ativa no Iraque. O segundo eixo consistiria em uma iniciativa diplomática sem precedentes, para promover um Estado palestino, que envolveria alguma forma de reconhecimento pelos EUA de um Estado palestino desmilitarizado na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, que passaria a existir somente depois que os palestinos tivessem desenvolvido um arcabouço de instituições definidas e críveis, assim como capacidades de garantir que esse Estado seja viável e incapaz de ameaçar Israel. O governo norte-americano estaria mantendo consultas dentro e fora do governo americano a respeito das diferentes formas que esse reconhecimento do estatuto de Estado dos palestinos poderia assumir. O terceiro eixo seria uma aliança de segurança ampliada dos EUA com a Arábia Saudita que também envolveria a normalização das relações dos sauditas com Israel, com reconhecimento mútuo e com garantias de segurança respaldadas pelo governo norte-americano. Seria a retomada dos entendimentos entre a Arabia Saudita e Israel (acordo de Abraão) para o reconhecimento do Estado de Israel, se o governo israelense estiver preparado para aceitar um processo diplomático que leve a criação de um Estado palestino desmilitarizado, liderado por uma Autoridade Palestina fortalecida.

       A primeira fase está em curso com os ataques dos EUA aos grupos terroristas no Iraque, na Síria e no Yemen. Como nem os EUA, nem o Irã, nem os países do Golfo querem uma escalada da guerra na região, a fase inicial teria de ser concluída com o controle dos grupos terroristas financiados por Teerã. As conversas reservadas entre EUA, Arabia Saudita, Irã e Israel mostrarão se as duas etapas seguintes da estratégia serão viáveis a médio prazo.

         O ataque terrorista de 7 de outubro contra Israel e seus desdobramentos estão forçando uma reformulação fundamental na maneira como a questão do Oriente Médio deve ser tratada. Se vencer as resistências, a Doutrina Biden produzirá um equilíbrio geopolítico e políticas domésticas mais seguras. Essa estratégia poderia dissuadir o Irã, tanto militarmente, quanto politicamente, ao tirar a carta palestina de Teerã. Poderia promover o estatuto do Estado palestino em termos consistentes com a segurança israelense e, simultaneamente, criar condições para a normalização das relações entre Israel e Arábia Saudita, em termos que os palestinos possam aceitar. Mas para que a questão seja bem-sucedida é indispensável que esses três eixos estejam assegurados e interconectados. O plano promete uma nova arquitetura econômica e de segurança no Oriente Médio. Essa estratégia poderia se tornar o maior realinhamento estratégico na região desde o tratado de 1979 em Camp David.

 

Rubens Barbosa, ex-embaixador em Washington, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE) e membro da Academia Paulista de Letras

       

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Guerra Israel e Hamas tem bem mais de dois lados Thomas Friedman (OESP)

 Guerra Israel e Hamas tem bem mais de dois lados 

Thomas Friedman 

O Estado de S. Paulo, 24/11/2023

Relações de palestinos e israelenses é complexa e vai além de extremismos de ambos os lados; veja histórias de coexistência após o 7 de outubro 


 THE NEW YORK TIMES – Confesso que, enquanto observador de longa data do conflito árabe-israelense, eu evito agressivamente tanto os ativistas “Do rio até o mar” da esquerda pró-palestinos quanto os similarmente fanáticos partidários da extrema direita sionista que defendem a “Grande Israel” — e não apenas porque considero abomináveis suas visões exclusivistas para o futuro, mas também porque o repórter dentro de mim percebe sua cegueira para as complexidades do presente. Eles não pensam na mãe judia que me contou em Jerusalém de um único fôlego que havia acabado de conseguir uma licença para portar armas de fogo para proteger seus filhos do Hamas; e então como ela confiava no professor palestino-árabe de seus filhos, que levou as crianças para o abrigo antibombas da escola durante um ataque aéreo recente do Hamas.

 Eles não pensam em Alaa Amara, o comerciante árabe-israelense de Taibe que doou 50 bicicletas de sua loja para crianças judias que sobreviveram ao ataque do Hamas contra suas comunidades fronteiriças, em 7 de outubro, teve seu comércio incendiado dias depois aparentemente por jovens árabes-israelenses nacionalistas linha-dura e viu uma campanha de crowdfunding organizada em hebraico e inglês levantar mais de US$ 200 mil para ajudá-lo a reconstruir aquela mesma loja dias depois. Ao longo dos últimos 50 anos, eu vi palestinos e israelenses fazerem coisas terríveis uns aos outros. Mas este episódio que começou com o ataque selvagem do Hamas contra israelenses, incluindo mulheres, crianças pequenas e soldados, em comunidades na região vizinha à fronteira de Gaza e a retaliação israelense contra os combatentes do Hamas com base em Gaza que também matou, feriu e deslocou tantos milhares de civis palestinos — de recém-nascidos a idosos — é certamente o pior desde os tempos do Plano de Partilha da Palestina proposto pela ONU em 1947. Mas defensores de todos os lados que leem esta coluna sabem que eu não estou aqui para anotar o placar. Meu foco sempre foi encontrar uma saída para que esse show de horror olho por olho, dente por dente acabe antes que todos fiquem cegos e desdentados. 

 Com esse objetivo, eu gastei bastante tempo da minha viagem an Israel e Cisjordânia este mês observando e investigando as verdadeiras interações cotidianas entre árabes e judeus israelenses. Essas experiências são sempre complexas, certas vezes surpreendentes, ocasionalmente deprimentes e, com mais frequência do que alguém possa pensar, inspiradoras. Porque revelam sementes de coexistência espalhadas por todo lado e suficientes para que ainda possamos sonhar o sonho impossível: que algum dia possa haver uma solução de dois Estados para os israelenses e os palestinos que vivem entre o Mar Mediterrâneo e o Rio Jordão. 

 Portanto, nesta semana da Ação de Graças, eu lhes peço para reservar alguns instantes aqui comigo, para refletirmos sobre essas pessoas e alguns atos extraordinários de resgate que elas praticaram em 7 de outubro — que lhes darão mais fé na humanidade que as manchetes em torno desta história jamais sugeririam. Para colocar de outra maneira, um amigo certa vez descreveu minha visão de mundo como um cruzamento entre Thomas Hobbes e Walter Mondale. Por vários dias durante a minha viagem, eu permiti ao Mondale dentro de mim perseguir lampejos de esperança irradiando na escuridão. Esse processo começou assim que cheguei em Tel-Aviv, quando me sentei para conversar com Mansour Abbas, provavelmente o líder político israelense mais corajoso da atualidade. Abbas é um árabe-palestino e cidadão de Israel que calha de ser muçulmano e membro do Parlamento israelense, onde ele lidera o importante partido Lista Árabe Unida. 

A voz de Abbas é ainda mais vital neste momento porque ele não respondeu ao terrorismo do Hamas com silêncio. Abbas entende que, mesmo que seja correto ultrajar-se com a dor que Israel inflige nos civis de Gaza, reservar toda a nossa indignação para a dor de Gaza cria suspeições entre judeus de Israel e de todo o mundo, que notam quando nenhuma palavra é pronunciada a respeito das atrocidades do Hamas que desencadearam esta guerra. A primeira coisa que Abbas me disse a respeito do massacre do Hamas foi: “Ninguém pode aceitar o que aconteceu naquele dia. E nós não podemos condenar este ato e dizer ‘mas’ — esta palavra, ‘mas’, tornou-se imoral.” (Pesquisas recentes mostram uma condenação esmagadora da comunidade árabe-israelense ao ataque do Hamas.) 

 Abbas percebe as complexidades experimentadas por aquela mãe judia de Jerusalém que nunca perdeu a confiança no professor árabe-israelense de seus filhos e aquele dono de loja de bicicletas que imediatamente estendeu a mão para aliviar a dor de crianças judias que não conhecia. Ao mesmo tempo, contudo, Abbas falou a respeito da dor excruciante que árabes-palestinos e beduínos israelenses sentem ao ver parentes seus castigados e mortos em Gaza. “Uma das coisas mais difíceis hoje é ser árabe-israelense”, disse-me Abbas. “O árabe-israelense sente a dor duas vezes — uma como árabe, outra como israelense.” Há uma peculiaridade nessa vizinhança: se a gente olha somente para um ou outro grupo através de um microscópio, dá vontade de chorar — o massacre brutal de judeus, a maneira terrível que os colonos supremacistas judeus tratam os palestinos; a lista é infinita. Mas se olhamos para essas histórias através de um caleidoscópio, observando a complexidade de suas interações, é possível ver a esperança. 

Se você quiser noticiar de maneira correta a realidade de israelenses e palestinos, sempre leve um caleidoscópio no bolso. O que me traz às histórias dos árabes beduínos israelenses e o 7 de Outubro. Cerca de uma semana após o início da minha viagem, eu recebi um telefonema do meu amigo Avrum Burg, ex-presidente da Knesset israelense, cujo avô era rabino-chefe de Hebron em 1929. Ele me contou que seu amigo Talab el-Sana — um árabe beduíno israelense que serviu com ele na Knesset e deu o voto de Minerva que formou a maioria que permitiu a Yitzhak Rabin fazer o acordo de paz de Oslo — queria me levar para conhecer alguns “beduínos virtuosos”; cidadãos de Israel de língua árabe, muçulmanos, mas fluentes em hebraico, que tinham desempenhado papéis heróicos salvando judeus do ataque do Hamas. Se você quiser noticiar de maneira correta a realidade de israelenses e palestinos, sempre leve um caleidoscópio no bolso.

Os beduínos israelenses são uma comunidade nômade que reside principalmente no Deserto do Negev e formam parte da minoria árabe-israelense — 21% da população do país — que se espalham por cidades e vilarejos de Israel. Atualmente aproximadamente 320 mil beduínos vivem em Israel, cerca de 200 mil em comunidades reorganizadas pelo governo e outros 120 mil em favelas improvisadas e não reconhecidas. Muitos beduínos serviram ao Exército israelense, com frequência como rastreadores, em razão de seu profundo conhecimento da geografia decorrente de gerações vagueando pelo deserto. Bem, acontece que alguns beduínos israelenses que viviam próximo da fronteira ou trabalhavam em comunidades da região atacada pelo Hamas ajudaram a resgatar judeus; alguns beduínos foram sequestrados pelo Hamas junto com judeus e outros foram assassinados pelo Hamas porque o grupo terrorista optou por tratar todos que vivessem ou trabalhassem nos kibutzim israelenses e falassem hebraico como “judeus” — merecendo ser mortos.

 E depois de 7 de outubro, alguns desses beduínos que salvaram judeus israelenses passaram a notar olhares hostis e insultos em voz baixa de judeus israelenses assumindo automaticamente que eles seriam simpatizantes do Hamas. E todo esse tempo vítimas judias e beduínas do Hamas foram tratadas juntas em hospitais israelenses, onde quase a metade dos novos médicos é hoje árabe-israelense ou drusa, assim como 24% dos enfermeiros e aproximadamente 50% dos farmacêuticos. Sim, um árabe beduíno israelense pode salvar um judeu israelense na fronteira de Gaza de manhã, ser discriminado por judeus nas ruas de Beersheba de tarde e gabar-se por sua filha — médica formada numa faculdade israelense — ter passado a noite em claro cuidando de pacientes judeus e árabes no Hospital Hadassah. É complicado. 

 Conserto de abrigos El-Sana e Burg levaram-me a dois vilarejos beduínos para me apresentar rapazes que tinham salvado judeus. Acompanhou-nos o urbanista israelense Ran Wolf, especialista na construção de espaços compartilhados — centros de inovação, centros culturais e mercados — para uso de judeus e árabes palestinos israelenses. Nós paramos na residência de Wolf em Tel-Aviv, no caminho, para pegar umas garrafas de água, onde ele me contou a seguinte história: Após os foguetes do Hamas começarem a cair em Tel-Aviv em 7 de outubro, Wolf telefonou para o empreiteiro com que trabalha regularmente, Emad, um árabe-israelense de Jaffa, para lhe dizer que a porta do abrigo antibombas no porão de sua casa não fechava. 

“Esse problema estava acontecendo em muitos abrigos, e depois de 7 de outubro todos quiseram consertar”, afirmou Wolf. E quando perceberam que um pedreiro estava na vizinhança, seus vizinhos também lhe pediram para consertar suas portas. Emad é um bom amigo e se recusou a aceitar qualquer dinheiro por dois dias de trabalho”, afirmou Wolf. Tenha em mente, acrescentou ele, que Emad vive em Jaffa, ao sul de Tel-Aviv. Na guerra de 1948, o pai de Emad ficou em Jaffa e seu tio fugiu para Khan Younis, no sul da Faixa de Gaza. “Então ele foi criado em Israel, mas metade da sua família vive hoje em Gaza”, afirmou Wolf. “E viu um míssil do Hamas cair a 200 metros da sua casa em Jaffa outro dia”, acrescentou. 

 Usem o caleidoscópio: hoje, refugiados palestinos de Jaffa que vivem sob o governo do Hamas em Gaza disparam foguetes contra palestinos de Jaffa que são cidadãos israelenses; e um deles consertou os abrigos antifoguetes de seus amigos em Tel-Aviv — de graça. Quando nós chegamos a Rahat, a maior cidade beduína em Israel, no Deserto do Negev, El-Sana, sentado no banco de trás do carro, conseguiu contar uma história ainda mais marcante. El-Sana contou que algumas das primeiras vítimas israelenses dos ataques de foguete do Hamas em 7 de outubro foram beduínos, muitos deles moradores de povoados não reconhecidos no Negev que não aparecem em mapas digitais. (O governo israelense não acompanhou seu crescimento populacional da mesma forma que na maioria das cidades judaicas.) 

 Essas localidades não têm abrigos antibombas públicos nem sirenes de alerta para proteger seus moradores quando os foguetes do Hamas começam a cair, mas — e é impossível inventar isso — El-Sana explicou que, quando o Hamas lança um foguete, o sistema antimísseis israelense Domo de Ferro traça imediatamente sua trajetória para determinar se o projétil de Gaza aterrissará num espaço povoado em Israel e matará pessoas ou em um lugar vazio ou no mar. Se o foguete rumar para algum ponto despovoado ou para o mar, o Domo de Ferro não desperdiça seus foguetes caros para interceptar projéteis baratos do Hamas. Seis beduínos foram mortos por um foguete do Hamas que caiu no vilarejo de Al Bat — entre eles, dois irmãos, de 11 e 12 anos — porque o povoado beduíno não figura em nenhum mapa oficial de Israel presente na base de dados do Domo de Ferro, explicou El-Sana. 

 Enquanto isso, outros oito beduínos que trabalhavam em comunidades judaicas próximas a Gaza foram assassinados pelo Hamas e pelo menos sete beduínos, todos cidadãos israelenses, foram, acredita-se, sequestrados e levados para Gaza. E dias depois alguns desses mesmos beduínos não hesitaram em ajudar a resgatar judeus israelenses juntamente com seus primos. Resgate de judeus El-Sana tinha me marcado uma entrevista no vilarejo de Al Zayada, um assentamento beduíno não reconhecido no Deserto do Negev, no lar não reconhecido de Youssef Ziadna, de 47 anos, um motorista de ônibus beduíno reconhecido por resgatar judeus em 7 de outubro.

 Ziadna contou que na sexta-feira, 6 de outubro, foi contratado para levar um grupo de jovens judeus para o festival ao ar livre de música trance Supernova Sukkot Gathering, em celebração ao feriado de Sucot, adjacente ao Kibutz Re’im, que é adjacente à fronteira com Gaza. “Quando os deixei, nós combinamos que eu voltaria no sábado às 18h para pegá-los”, disse-me Ziadna. Mas no início da manhã do sábado, “eu recebi um telefonema de um deles, Amit”, que lhe pedia para ir buscá-los imediatamente, afirmou. “Eles estavam sendo atacados, ouvia-se tiros por todo lado.” Ziadna disse que rumou imediatamente para a cena e, conforme se aproximou, viu “uma barragem de foguetes e muitos carros na direção contrária — escapando — piscando os faróis para que eu fizesse a volta. Algumas pessoas que tinham parado e saído do carro disseram que havia terroristas em Be’eri, então ‘vá embora daqui’. Eu saí do meu carro e me escondi na beira da estrada. 

Toda vez que eu levantava a cabeça atiravam em mim. Mas eu tinha prometido buscar essas pessoas, e estava a um quilômetro de distância”. Ziadna afirmou que quando o ritmo dos disparos diminuiu um pouco, ele conseguiu voltar para seu miniônibus e usar o celular para se encontrar Amit e seus amigos — e qualquer outra pessoa que ele pudesse resgatar. Em vez de voltar pela estrada, onde “eu sabia que eles nos matariam”, afirmou Ziadna, “eu fui pelos campos”. Como beduíno, Ziadna conhece intimamente o terreno que acabou salvando a todos.

 Ele conseguiu encontrar um atalho em meio aos campos e evitou a estrada principal, onde os terroristas do Hamas emboscavam quem fugia do festival musical. Muitos outros carros em fuga também deixaram a estrada principal e seguiram o miniônibus de Ziadna pelos campos, afirmou ele. O motorista contou para o Times of Israel, que publicou seu perfil, que levou cerca de 30 pessoas em seu veículo, cuja lotação máxima é de 14 passageiros. Ziadna disse que, alguns dias depois, recebeu um telefonema de um número que não reconheceu, mas que acreditou ser de Gaza, e uma voz lhe disse em árabe: “Você é Youssef Ziadna? Você salvou vidas de judeus? Nós vamos matar você”. Ele relatou a ligação para a polícia israelense. 

Esta é apenas uma das razões, afirmou o motorista, para ele ainda precisar de telefonemas diários com um psicólogo para tentar superar o trauma de 7 de outubro. Outro familiar em nosso encontro, Daham Ziadna, de 35 anos, afirmou que teve quatro parentes sequestrados pelo Hamas; um certamente foi morto e outros três ainda estão desaparecidos. Dois foram vistos pela última vez deitados no chão, num vídeo publicado pelo Hamas no TikTok, com dois combatentes armados ao lado. Para o Hamas, disse Daham, “todos que vivem em Israel são judeus”. Daham disse-me que alguns dias antes tinha ido ao banco sacar dinheiro no caixa eletrônico e cruzou dois judeus israelenses na calçada. “Um tinha sotaque russo. 

Quando eles se aproximaram, o russo falou, ‘Eis aqui outro árabe’. Eu lhe disse: ‘Esses “árabes” de que você fala estavam na fronteira de Gaza em 7 de outubro lutando pelo o Estado israelense — defendendo judeus e árabes. E são pessoas como você que destroem o país, destilando veneno’.” Árabes-israelenses vivem um cotidiano difícil, acrescentou ele: “Muitos judeus olham para nós como se todos fôssemos do Hamas, e quem apoia o Hamas olha para nós como se fôssemos judeus”. A alguns quilômetros de lá, em Rahat, El-Sana me apresentou para a família Al-Qrinawi, cujos integrantes tinham sua própria história marcante para contar. O porta-voz da família, Ismail, relatou-me o drama sentado com seus primos diante de um prato gigante de arroz, frango e grão de bico. Na manhã de 7 de outubro, conforme a notícia do ataque do Hamas se espalhou, eles souberam pelo grupo de WhatsApp da família que três primos que trabalhavam no refeitório do Kibutz Be’eri tinham sido sequestrados. 

Por volta das 10h, um familiar recebeu uma ligação de um número desconhecido, do telefone de uma mulher israelense chamada Aya Medan. Ela tinha encontrado um de seus primos desaparecidos, Hisham, e ambos estavam se escondendo juntos dos terroristas do Hamas no mesmo campo desértico próximo a Be’eri. Hisham usou o celular dela para pedir ajudar ao seu clã beduíno. Os outros dois primos tinham fugido em outra direção. Seu tio, o patriarca do clã, ordenou que quatro sobrinhos fossem resgatar os parentes no Land Cruiser da família, já que normalmente leva 30 minutos para chegar à região onde eles estavam — mas não naquele dia. 

Eles pegaram duas pistolas e saíram a toda. Quando nos aproximamos, descobrimos que todas as estradas estavam fechadas”, disse-me Ismail. “Então nós fomos pelos campos e atravessamos um vale profundo para conseguir desviar. Nosso carro quase virou.” Primeiro, “encontramos pessoas fugindo da festa”, afirmou ele. “Nós emprestamos nossos telefones para elas ligarem para os pais e garantimos que entrassem em outros carros, conduzidos por israelenses. Nós conseguimos resgatar 30 ou 40 pessoas da festa. Mas eu fiquei o tempo todo conversando com Aya, tentando localizar onde ela se escondia com Hisham”. 

 Estava demorando demais. Depois de duas horas e meia desviando de tiros e foguetes do Hamas, afirmou Ismail, eles conseguiram encontrar Aya e Hisham escondidos atrás de arbustos, bem próximo do Kibutz Be’eri. Eles tinham mandado uma foto de celular da área em que estavam se escondendo para facilitar sua localização. Minutos depois, relatou Aya ao Times of Israel, Hisham a tocou e disse, “Aya, eles estão aqui, eles estão aqui sim”. Os primos abriram as portas do carro, Aya e Hisham entraram, e o clã beduíno valeu-se novamente de suas habilidades off-road para levá-los à segurança. Ou quase. 

 O momento mais assustador do dia, disse-me Ismail, ocorreu quando eles voltaram para a estrada principal. Eles foram parados em um posto de controle improvisado pelo Exército israelense, por soldados assustados, incapazes de distinguir à distância entre amigo e algoz. “Os soldados israelenses cercaram nosso carro, todos apontando armas contra nós. Eu gritei: ‘Nós somos cidadãos de Israel! Não atirem!’.” Aya disse ao Times of Israel que um soldado israelense lhe perguntou se ela estava sendo sequestrada. “Não, eu sou de Be’eri, e eles vieram de Rahat nos resgatar”, disse ela. 

 Beduínos salvando judeus israelenses do Hamas sendo salvos por uma mulher judia de serem baleados pelo Exército israelense depois de resgatá-la… caleidoscópico. Enquanto eu entrevistava o clã Al-Qrinawi, a família me apresentou Shir Nosatzki, uma das cofundadoras do grupo israelense Você Tem Olhado para o Horizonte Ultimamente?, que promove parcerias entre judeus e árabes. Imediatamente após saber de seu resgate, seu marido, Regev Contes, gravou um vídeo de 7 minutos em hebraico para contar a história da equipe beduína de resgate para os israelenses. Segundo o relado, o vídeo teve centenas de milhares de visualizações em Israel. Eu perguntei a Nosatzki por que eles gravaram o vídeo.

 “Para mostrar que o 7 de Outubro não foi uma guerra entre judeus e árabes, mas entre a luz e a escuridão”, afirmou ela. Antes de voltarmos para Tel-Aviv, El-Sana insistiu que fôssemos ao seu restaurante de kebab favorito em Rahat. Sentados à mesa: um beduíno israelense que tinha servido na Knesset, o neto do ex-rabino-chefe de Hebron e um colunista judeu do New York Times, de Minnesota, que trabalhou como correspondente em Beirute e Jerusalém nos anos 70 e 80 — compartilhando reflexões em uma mistura maluca de hebraico, árabe e inglês. Entre os espetinhos de cordeiro e os pratos de hummus, nós chegamos à mesma conclusão: mesmo neste momento sombrio, nós tínhamos acabado de testemunhar algo enormemente importante — “sementes de coexistência na morte e na vida”, conforme colocou Burg, sementes que o Hamas se dedica a destruir. Essas sementes, acrescentou El-Sana, “deveriam nos dar esperança de que conseguiremos construir um futuro em comum com base em valores comuns que atravessam as fronteiras da etnicidade entre judeus e árabes”. Eles estão certos. 

Essas sementes, por menores que possam ser, nunca foram mais importantes do que neste momento. Por quê? Porque esta guerra Israel-Hamas, acabe quando acabar, já foi tão traumática para todos que desencadeará o maior debate desde o plano de partilha da ONU, de 1947, a respeito da forma que as relações e as fronteiras entre israelenses e palestinos devem se constituir. Eu tenho certeza disso — porque menos que isso significará guerra permanente. Eu já posso lhes dizer que haverá muitas vozes destrutivas nessa discussão: apologistas do Hamas, palestinos e árabes, que têm negado ou minimizado as atrocidades do grupo; colonos judeus supremacistas, ávidos para expandir sua presença não apenas na Cisjordânia, mas também, loucamente, até Gaza, e que não mostram nenhuma preocupação com o sofrimento devastador dos civis palestinos mortos na retaliação israelense; Binyamin Netanyahu, que sacrificará o futuro de Israel para permanecer no cargo e ficar fora da cadeia; e os idiotas úteis do Hamas no Ocidente, principalmente nas universidades, onde estudantes denunciam Israel e todo seu território como um empreendimento colonial enquanto entoam, “Do rio até o mar, a Palestina será livre”.

 (Poupem-me da explicação segundo a qual esta frase seria um apelo à coexistência: eu estava em Beirute nos anos 70 quando ela se tornou popular e posso lhes assegurar que não se tratava de um chamado por dois Estados para dois povos. E se você tem um mantra que requer 15 minutos de explicação, você precisa de outro mantra.) Com todas essas equipes de demolição esperando para trabalhar, nós precisaremos mais que nunca elevar as vozes autênticas da coexistência — líderes com a integridade desses beduínos israelenses prontos para fazer e dizer o que é certo não apenas quando a coisa não está fácil, mas também diante do perigo. O que me traz de volta à Lista Árabe Unida, de Mansour Abbas. 

 Vozes de coexistência Seu partido, falando amplamente, vem do mesmo braço da Irmandade Muçulmana na política palestina que o Hamas — mas em vez da violência e exclusão pregadas pelo Hamas, Abbas defende não violência e inclusão. Abbas foi um intermediador de poder importante para ajudar o ex-primeiro-ministro Naftali Bennett e o ex-ministro das Relações Exteriores Yair Lapid a forjar o governo israelense de unidade nacional em 2021. Netanyahu, sempre desagregador, derrubou aquele governo em parte com retóricas antiárabes e anti-islâmicas direcionadas a Abbas. Abbas entende que coexistir significa dizer o que é certo — não apenas quando é difícil politicamente, mas também quando é perigoso. Depois de ver os vídeos do ataque do Hamas, na Knesset, ele declarou à emissora de rádio árabe Al-Nas: “Eu vi um pai com dois filhos entrar no abrigo antibombas ao lado de sua casa, e jogaram uma granada dentro. 

O pai saltou sobre a granada e foi morto, e as duas crianças se feriram, mas sobreviveram. O massacre contraria tudo que acreditamos, nossa religião, nosso Islã, nossa nacionalidade, nossa humanidade”. As ações do Hamas “não representam nossa sociedade árabe, nem nosso povo palestino, nem nossa nação palestina”. Durante nossa entrevista, Abbas disse-me que nós precisamos de “uma nova retórica política” e não podemos ser atraídos para as jogadas do passado. “Essa narrativa ‘do rio ao mar’ não ajuda”, afirmou ele. “Isso é um erro. Se querem ajudar os palestinos, discutam uma solução de dois Estados e paz e segurança para todas as pessoas.” É por este motivo, acrescentou Abbas, que “eu estou trabalhando em um plano que começa com o fim da guerra atual e termina com a criação de um Estado palestino contíguo an Israel”. Abbas conhece bem as dificuldades do caminho adiante. Eu também não tenho ilusões. 

E concluo minha recente jornada com duas lições. A primeira é que esta guerra em Gaza está longe de terminar. Israel acredita que não haverá paz em Gaza enquanto o Hamas estiver no poder por lá. Mas a segunda é que, da mesma forma que a Guerra do Yom Kippur produziu o alvorecer do tratado de Camp David e da mesma forma que a desumanidade da Primeira Intifada e da reação israelense levou aos Acordos de Oslo, dos horrores do 7 de Outubro algum dia surgirá outra tentativa de construir dois Estados para estes dois povos autóctones. De outra forma, esse canto do mundo se tornará inabitável para qualquer pessoa em sã consciência. Hoje há gente demais com armas poderosas demais. E quando esse dia chegar, será necessário um construtor de pontes como Mansour Abbas — que entende a verdadeira natureza caleidoscópica dessa terra e a conexão autêntica de ambas as comunidades a ela — para germinar as sementes da coexistência que ainda estão por lá, apesar de enterradas mais profundamente que jamais estiveram. Abbas, Youssef Ziadna, a família Al-Qrinawi, Aya Medan, meus amigos Avrum, Talab e Wolf serão os resgatistas. 

TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO 

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Thomas Friedman sobre a tragédia da guerra Hamas- Israel (NYT, Estadão)

 Transcrvo a partir de Carmen Lícia Palazzo:

Há mais de 20 anos acompanho as análises de THOMAS FRIEDMAN. 

Ele é, na minha modesta opinião, mas também na opinião de muitos que são bem mais competentes do que eu no tema, um grande especialista, respeitado tanto no dito Ocidente quanto em vários meios do Oriente Médio. Por isso compartilho seus artigos e recomendo sempre a leitura. 

Sim, o atentado terrorista do Hamas foi de uma barbárie assustadora, o que não impede que seja hora de refletir sobre todo o contexto e sobre o que virá no futuro, dependendo da ação de muitos atores. É assim que e faz análise e é por isso que os especialistas são MUITO, MUITÍSSIMO NECESSÁRIOS.

CLP

Da Guerra dos Seis Dias à Guerra das Seis Frentes em Israel

"Por Thomas Friedman

26/10/2023 | 20h00


Quem se importa com Israel deveria estar mais preocupado agora do que em qualquer outro momento desde 1967. Naquele ano, Israel derrotou os Exércitos de três Estados árabes — Egito, Síria e Jordânia — no conflito que ficou conhecido como Guerra dos Seis Dias. Hoje, quem olha com atenção percebe que Israel trava a Guerra das Seis Frentes.


Esta guerra é travada diretamente e por intermédio de atores não estatais, Estados-nação, redes sociais, movimentos ideológicos, comunidades da Cisjordânia e facções políticas israelenses — e é a guerra mais complexa que já cobri. Mas uma coisa está clara para mim: os israelenses não são capazes de vencer esta guerra em seis frentes sozinhos; eles só serão capazes de vencer se Israel — e os Estados Unidos — conseguirem reunir uma aliança global.


Desafortunadamente, Israel tem hoje um primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, e uma coalizão de governo que não pretendem nem são capazes de construir o fundamento necessário para sustentar essa aliança global. Esse fundamento é declarar o fim da expansão dos assentamentos coloniais de Israel na Cisjordânia e reformular as relações de Israel com a Autoridade Palestina, para que a entidade se torne uma parceira palestina legítima e crível, capaz de governar a Faixa de Gaza pós-Hamas e forjar uma solução maior de dois Estados incluindo a Cisjordânia.

Tanques israelenses e veículos blindados montados perto da Faixa de Gaza, no sul de Israel, no sábado, 21 de outubro de 2023.

Tanques israelenses e veículos blindados montados perto da Faixa de Gaza, no sul de Israel, no sábado, 21 de outubro de 2023.  Foto: Sergey Ponomarev / NYT


É estrategicamente e moralmente incoerente Israel pedir aos seus melhores aliados ajuda para buscar justiça em Gaza e ao mesmo tempo pedir-lhes que façam vista grossa enquanto o Estado judaico constrói um reino colonial na Cisjordânia com objetivo expresso de anexação.


Isso não vai funcionar. Israel não será capaz de produzir o tempo, a assistência financeira, a legitimidade, o parceiro palestino e os aliados globais que precisa para vencer esta guerra em seis frentes.


E todas as seis frentes estão neste momento à vista de todos.


Na primeira, Israel trava uma guerra em escala total contra o Hamas dentro e no entorno de Gaza, na qual, conforme podemos ver agora, o Hamas ainda detém tanta capacidade residual que conseguiu lançar um ataque anfíbio contra os israelenses na terça-feira e na quarta disparou foguetes de longo alcance contra as cidades portuárias de Eilat, no sul de Israel, e Haifa, no norte.


    Neste mundo do ‘nunca antes’, mais de tudo está acontecendo, e mais rápido. A geopolítica fragmentada e um ecossistema global abalado representam riscos existenciais para a humanidade 


É assustador ver quantos recursos o Hamas desviou para construir armas em vez de capital humano em Gaza — e quão eficazmente o grupo escondeu isso de Israel e do mundo. De fato é difícil não notar o contraste entre a evidente pobreza humana em Gaza e a riqueza em armamentos que o Hamas construiu e tem acionado.


O Hamas sonha há muito tempo com a unificação dos fronts em torno de Israel, regionalmente e globalmente. A estratégia de Israel sempre foi agir de maneiras que evitem isso — até que a atual coalizão de Netanyahu, de judeus ultraortodoxos e supremacistas, chegou ao poder em dezembro e começou a se comportar de maneiras que de fato ajudaram a fomentar a unificação de todos os inimigos de Israel.

De que maneiras? Os supremacistas judeus no gabinete de Netanyahu começaram imediatamente a desafiar o status quo do Monte do Templo, em Jerusalém, reverenciado por muçulmanos, que se referem ao local como Nobre Santuário, onde fica a Mesquita de Al-Aqsa.


O governo Netanyahu começou a movimentar-se para impor condições muito mais duras aos palestinos da Cisjordânia e de Gaza presos nas penitenciárias israelenses. E estabeleceu planos para uma enorme expansão nos assentamentos de Israel na Cisjordânia para impedir que um Estado palestino contíguo possa existir algum dia por lá. É a primeira vez que um governo israelense torna a anexação da Cisjordânia um objetivo declarado em seu pacto de coalizão.


Além disso tudo, os EUA pareciam próximos de forjar um acordo para a normalização das relações diplomáticas e comerciais entre Arábia Saudita e Israel — realização que coroaria o esforço de Netanyahu no sentido de provar que Israel pode ter relações normais com Estados árabes e muçulmanos sem ter de ceder nenhum centímetro aos palestinos.


O que nos leva à segunda frente: Israel contra o Irã e seus apoiadores — ou seja, o Hezbollah no Líbano e na Síria, milícias islamistas na Síria e no Iraque e a milícia houthi no Iêmen.


Todos os grupos lançaram, nos dias recentes, drones e foguetes contra Israel e forças dos EUA no Iraque e na Síria. Eu creio que o Irã — assim como o Hamas — considerou o esforço americano-israelense de normalização de relações entre Israel e Estados árabes-muçulmanos uma ameaça estratégica que teria isolado Teerã e seus aliados na região. Ao mesmo tempo, acredito que o Hezbollah passou a perceber que, se Israel aniquilar o Hamas, conforme declarou que fará, o grupo xiita libanês será o próximo. Portanto, o Hezbollah decidiu que, no mínimo, precisa abrir um segundo front de baixa intensidade contra Israel.

Uma foto tirada da cidade de Sderot, no sul de Israel, em 26 de outubro de 2023, mostra foguetes disparados da Faixa de Gaza em direção a Israel, em meio às contínuas batalhas entre Israel e o movimento palestino Hamas.

Uma foto tirada da cidade de Sderot, no sul de Israel, em 26 de outubro de 2023, mostra foguetes disparados da Faixa de Gaza em direção a Israel, em meio às contínuas batalhas entre Israel e o movimento palestino Hamas. Foto: JACK GUEZ / AFP


Como resultado, Israel foi forçado a retirar cerca de 130 mil civis das proximidades da fronteira norte, assim como dezenas de milhares de pessoas da região próxima à fronteira sudoeste, com Gaza. Esses deslocamentos colocam uma pressão enorme por moradia sobre o tesouro israelense.


A terceira frente é o universo das redes sociais e outras narrativas digitais sobre quem é bom ou mau. Quando o mundo torna-se interdependente, quando — graças a smartphones e redes sociais — nada permanece oculto e nós conseguimos ouvir uns aos outros sussurrar, a narrativa dominante adquire um valor estratégico verdadeiro.


Essa rede social ser manipulada com tanta facilidade pelo Hamas ao ponto do episódio de um míssil palestino que falhou e atingiu um hospital em Gaza ter tido a culpa atribuída a Israel é profundamente perturbador, porque essas narrativas moldam decisões de governos e políticos tanto quanto relações entre diretores-executivos e seus funcionários. Estejam avisados: se Israel invadir Gaza, corporações do mundo inteiro se verão diante de demandas em competição de seus empregados para denunciar Israel ou o Hamas.


    Por que Israel está agindo desta forma? Leia artigo de Thomas Friedman


    Essa guerra entre Israel e Hamas faz parte de uma escalada de loucura que vem ocorrendo nessa vizinhança, mas que se torna cada vez mais perigosa a cada ano 


A quarta frente é a luta intelectual-filosófica entre o movimento progressista internacional e Israel. Creio que alguns elementos desse movimento progressista, que, bem sei, é grande e diverso, perderam suas estribeiras morais sobre este tema. Por exemplo, eu vi numerosas manifestações em universidades americanas que essencialmente culpam Israel pela invasão horrenda do Hamas, argumentando que o grupo travou uma “luta anticolonial” legítima.


Esses manifestantes progressistas parecem acreditar que o Estado de Israel inteiro é uma empresa colonial — não apenas os assentamentos na Cisjordânia — e portanto o povo judeu não tem direito à autodeterminação nem à autodefesa em sua terra ancestral, seja dentro ou fora das fronteiras pré-1967.


E para uma comunidade intelectual aparentemente preocupada com nações que ocupam outras nações e lhes nega direito ao autogoverno, nós não vemos muitas manifestações progressistas contra a maior potência opressora no Oriente Médio hoje: o Irã.

O presidente iraniano, Ebrahim Raisi, ao centro, ouve o comandante da Guarda Revolucionária, general Hossein Salami, ao centro, à esquerda, enquanto analisa um desfile militar anual que marca o aniversário do início da guerra contra o Irã pelo ex-ditador iraquiano Saddam Hussein, em frente ao santuário do falecido fundador revolucionário Ayatollah Khomeini, nos arredores de Teerã, Irã, sexta-feira, 22 de setembro de 2023.

O presidente iraniano, Ebrahim Raisi, ao centro, ouve o comandante da Guarda Revolucionária, general Hossein Salami, ao centro, à esquerda, enquanto analisa um desfile militar anual que marca o aniversário do início da guerra contra o Irã pelo ex-ditador iraquiano Saddam Hussein, em frente ao santuário do falecido fundador revolucionário Ayatollah Khomeini, nos arredores de Teerã, Irã, sexta-feira, 22 de setembro de 2023.  Foto: Vahid Salemi / AP


Além de reprimir suas próprias mulheres em busca de mais liberdade de pensamento e vestimenta, Teerã controla efetivamente quatro Estados árabes — Líbano, Síria, Iêmen e Iraque — por meio de seus aliados. O Líbano, um país que conheço bem, há um ano não consegue eleger um novo presidente que não se curve constantemente aos desejos e interesses de Teerã. Infelizmente, libaneses independentes são incapazes de remover a influência do Irã de seu Parlamento e Executivo, que é exercida em grande medida através dos canos das armas do Hezbollah. O site Middle East Eye noticiou que, em 2014, o representante da cidade de Teerã no Parlamento iraniano Ali Reza Zakani gabou-se sobre a maneira que o Irã passou a controlar quatro capitais árabes: Bagdá, Damasco, Beirute e Sanaa, Iêmen.


Reduzir essa luta incrivelmente complexa de dois povos por uma mesma terra a uma guerra colonial é uma desonestidade intelectual. Ou, conforme afirmou o escritor israelense Yossi Klein Halevi no jornal Times of Israel na quarta-feira: “Colocar a culpa da ocupação e suas consequências totalmente em Israel é desprezar o histórico das ofertas de paz israelenses e da rejeição palestina. Rotular Israel como mais uma criação colonialista é distorcer a história singular do retorno de um povo arrancado de sua terra, em sua maioria refugiados de comunidades judaicas destruídas no Oriente Médio”.


Mas vejam o que mais é desonesto intelectualmente: comprar a narrativa da direita israelense favorável aos assentamentos, neste momento disseminada amplamente dentro de Israel, de que a violência de Hamas é tão selvagem que claramente não tem nada a ver com nada que os colonos tenham feito — portanto, não há problemas em erguer mais assentamentos.


Minha visão: trata-se de uma disputa territorial entre dois povos que reivindicam a mesma terra, que precisa ser dividida da maneira mais equitativa possível. Essa concessão mútua é o fundamento de qualquer sucesso contra o Hamas. Portanto, se você é favorável a uma solução de dois Estados, você é meu amigo e se você é contra uma solução de dois Estados, você não é meu amigo.


A quinta frente é dentro de Israel e dos territórios ocupados. Na Cisjordânia, colonos judeus de direita estão atacando palestinos e perturbando os esforços do Exército de Israel de manter o controle em colaboração com as forças de segurança da Autoridade Palestina (AP), liderada por Mahmoud Abbas. Nós temos de lembrar que a AP reconheceu o direito de Israel existir como parte dos Acordos de Oslo. Seria terrível que essa frente exploda em um confronto entre a AP e Israel, porque desse modo haveria pouca esperança para se obter ajuda da autoridade para governar Gaza.

A fumaça preta surge do leste da Cidade de Gaza, quinta-feira, 26 de outubro de 2023, após os ataques aéreos israelenses.

A fumaça preta surge do leste da Cidade de Gaza, quinta-feira, 26 de outubro de 2023, após os ataques aéreos israelenses.  Foto: Abed Khaled / AP


Mas também não haverá nenhuma esperança para isso se os palestinos na Cisjordânia e espalhados pelo mundo não insistirem na construção de uma Autoridade Palestina mais eficaz e sem corrupção. Faz tempo que isso é necessário — e não é apenas culpa de Israel isso não ter acontecido; os palestinos também colaboraram.


A sexta frente é dentro de Israel, principalmente entre seus cidadãos judeus. Essa frente está oculta momentaneamente, mas à espreita logo abaixo da superfície. É o confronto ocasionado pela estratégia permanente de Netanyahu na política doméstica: dividir para conquistar. Netanyahu construiu toda sua carreira política colocando grupos da sociedade israelense uns contra os outros, erodindo o tipo de coesão social que é essencial para vencer a guerra.


Seu governo levou essa estratégia ao extremo logo que assumiu, em dezembro, movimentando-se imediatamente para furtar da Suprema Corte israelense seu poder de revisar decisões do Executivo e do Legislativo. Nesse processo, Netanyahu levou dezenas de milhares de israelenses às ruas todos os sábados para proteger sua democracia e fez com que pilotos da Força Aérea e outros combatentes de elite suspendessem seus plantões de reservistas afirmando que não serviriam a um país que ruma para a ditadura. Seu governo dividiu e distraiu Israel e suas Forças Armadas exatamente na hora errada — se é que já houve uma hora boa.


    Os erros de cálculo dos líderes de Israel e de Gaza estão sendo revelados 


Como você vence uma guerra em seis frentes? Repito: somente com uma aliança de pessoas e nações que acreditam em valores democráticos e no direito de todos os povos à autodeterminação. Enquanto não produzir um governo capaz de gerar essa aliança, e a não ser que o faça, Israel não terá o tempo, os recursos, o parceiro palestino e a legitimidade que precisa para derrubar o Hamas em Gaza, estará lutando principalmente ao lado dos EUA como seu único aliado verdadeiro e sustentável.


E muito da força dessa aliança reside hoje em Joe Biden e no fato de que ele traz para esta crise um conjunto de princípios centrais e fundamentais a respeito do papel dos EUA no mundo: o certo contra o errado, a democracia contra a autocracia. Poderá demorar para termos novamente um presidente com esses instintos.


Em outras palavras, Biden criou capital de giro diplomático — que vem com um prazo limite — tanto para os israelenses quanto para a Autoridade Palestina. Ambos devem usá-lo sabiamente. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO"

quinta-feira, 29 de junho de 2023

Derrota de Putin na Ucrânia pode ter consequências inimagináveis - Thomas Friedman (NYT, OESP)

 Derrota de Putin na Ucrânia pode ter consequências inimagináveis 

Thomas Friedman, THE NEW YORK TIMES
O Estado de S. Paulo, 29/06/2023

Os acontecimentos recentes na Rússia se parecem com o trailer do próximo filme de James Bond: o ex-chefe, hacker e mercenário de Vladimir Putin, Ievgeni Prigozhin se rebela. Prigozhin, parecendo com um personagem saído diretamente de ‘Doctor No’, lidera um comboio de ex-detentos e mercenários em uma corrida excêntrica para tomar a capital russa, derrubando alguns helicópteros no caminho. Eles encontram tão pouca resistência que a internet está cheia de imagens de seus mercenários esperando pacientemente para comprar café pelo caminho, como se dissessem: ‘Ei, podem colocar uma tampa no café? Não quero sujar meu blindado.”

Ainda não está claro se o frio e calculista Putin dirigiu qualquer ameaça direta a seu velho amigo Prigozhin, mas o líder mercenário, sendo um velho laranja de Putin, claramente não estava assumindo riscos. E com razão. O sempre útil presidente de Belarus, Alexander Lukashenko, que abrigou Prigozhin, relatou que Putin compartilhou consigo o desejo de matar o mercenário e “esmagá-lo como um inseto.”

Como o sinistro Ernst Stavro Blofeld, o vilão dos filmes de James Bond que lidera o sindicato internacional do crime Spectre e sempre era visto acaraciando seu gatinho branco enquanto tramava algum ardil, Putin é quase sempre visto em sua longa mesa branca, com as visitas geralmente sentadas no lado oposto da peça, onde, é possível suspeitar, uma armadilha espera pronta para engolir qualquer um que saia da linha.

A minha reação inicial ao ver o drama se desenrolar na CNN foi questionar se tudo aquilo era real. Não sou fã de teorias da conspiração, mas 007 — Viva e Deixe Morrer não tem nada a ver com esse motim com um roteiro escrito em Moscou — um roteiro ainda em produção, enquanto um Putin analógico tenta alcançar com a TV estatal russa um Prighozin digital que o cerca com sua comunicação via Telegram.

Responder a pergunta que muitos me fazem — O que Putin fará agora — é impossível. Eu seria cauteloso, no entanto, em tirá-lo de cena tão rápido. Lembrem-se: Blofeld apareceu em seis filmes do James Bond até que o 007 finalmente o derrotasse.

Tudo que se pode fazer por enquanto, creio, é tentar calcular os diferentes equilíbrios de poder envolvidos nessa história e analisar quem, nos próximos meses, pode fazer o quê.

As fraquezas de Vladimir Putin
Permitam-me começar com o maior equilíbrio de poder em questão, que nunca pode ser deixado de lado. E o presidente Biden merece os aplausos por ele. Foi graças à ampla coalizão reunida pelo presidente dos Estados Unidos para enfrentar Putin na Ucrânia que expôs a face do vilarejo Potemkin do líder russo.

Gosto da argumentação de Alon Pinkas, ex-diplomata israelense sediado nos EUA, em um artigo publicado no Haaretz nesta semana. Segundo ele, Biden entendeu desde o começo que Putin é o epicentro de uma constelação antiamericana, antidemocrática e fascista que precisa ser derrotada. E com ela, não há negociação possível. O motim de Prigozhin fez na prática o que Biden tem feito desde a invasão da Ucrânia: expôs as fraquezas de Putin, ferundo sua já abalada aparência de invencibilidade e sua suposta condição de gênio estrategista.

Putin, há muito, governa com dois instrumentos: medo e dinheiro, cobertos com uma capa de nacionalismo. Ele comprou quem poderia comprar e prendeu ou matou quem não podia. Mas agora alguns observadores do que acontece na Rússia argumentam que o medo está se dissipando em Moscou. Com a aura de invencibilidade de Putin abalada, outros poderiam desafiá-lo. Veremos.

Se eu fosse Prigozhin ou um de seus aliados, ficaria longe de qualquer um que passasse na calçada em Belarus com um guarda-chuva em um dia de sol. Putin tem feito um trabalho bastante efetivo eliminando seus críticos e ninguém pode subestimar o temor profundo dos russos sobre qualquer retorno ao caos do período pós-soviético, no início dos anos 90. Muitos deles ainda são gratos a Putin pela ordem que ele restaurou no país.

Um plano que pode dar certo
Quando analisamos o equilíbrio de poder de Putin com o resto do mundo as coisas ficam complicadas. No Ocidente, temos de temer as fraquezas de Putin tanto quanto tememos suas forças.

Ainda não há um sinal de que o motim de Prigozhin ou a contraofensiva ucraniana tenham levado a qualquer colapso significativo das forças Rússias na Ucrânia. Apesar disso, ainda é cedo para qualquer conclusão.

Fontes do governo americano dizem que a estratégia de Putin é exaurir o Exército ucraniano até o ponto em que ele não tenha mais suas peças de artilharia howitzer de 155 milímetros nem seus sistemas antiaéreos cedidos por Washington. Essas peças são a principal arma das forças terrestres ucranianas. Sem elas, a Força Aérea Russa teria alguma supremacia até que os aliados ocidentais tenham seus recursos exauridos, ou até Donald Trump voltar à Casa Branca e Putin conseguir algum acordo sujo com ele que salve sua pele.

A estratégia não é maluca. A Ucrânia gasta tanto esse tipo de munição — cerca de 8 mil por dia — que o governo americano está tentando encontrar reposição para elas antes que novas entregas industriais dessas peças cheguem no ano que vem.

Além disso, a logística é importante numa guerra. Também é importante se você está no ataque ou na defesa. Atacar é mais difícil e os russos estão entrincheirados e com toda sua linha defensiva minada. É por isso que a contraofensiva ucraniana tem sido tão lenta.

Como me disse Ivan Krastev, especialista em Rússia e diretor do Centro de Estatégias Liberais na Bulgária: “No primeiro ano da guerra, quando a Rússia estava no ataque, todo dia sem uma vitória era uma derrota. No segundo ano, todo dia em que a Ucrânia não está vencendo é uma vitória para os russos.”

Nós não devemos subestimar a coragem dos ucranianos. Mas também não podemos superestimar a exaustão do país como uma sociedade.

E como a história ensina, o Exército da Rússia tem aprendido com seus erros. John Arquilla, professor da Escola Naval de Pós-Graduação na Califórnia e autor de Blitzkrieg: os novos desafios da guerra cibernética, “os russos sofrem, mas aprendem.”

Segundo o professor, o Exército de Putin ficou melhor em manter a hierarquia da tropa no front. Além disso, segundo Arquilla, eles aperfeiçoaram o uso de drones em combate. Ao mesmo tempo, os ucranianos mudaram sua estratégia inicial, de usar unidades móveis menores, armadas com armas inteligentes, para atacar um imóvel Exército russo, para um perfil mais pesado e maior, com tanques e blindados.

“Os ucranianos agora estão cada vez mais parecidos com o Exército russo que estavam derrotando no ano passado”, disse Arquilla. “O campo de batalha nos dirá se essa é a melhor estratégia.”

Os riscos de uma Rússia sem Putin
Isto posto, devemos nos preocupar tanto com a perspectiva de uma derrota de Putin quanto de qualquer vitória. E se ele for derrubado? Não estamos mais na época do fim da União Soviética. Não há ninguém bonzinho ou decente ali. Nenhum personagem inspirado em Yeltsin ou Gorbachev está à espreita para assumir o poder.

“A velha União Soviética tinha algumas instituições estatais que eram responsável por manter o funcionamento da burocracia, bem como alguma ordem de sucessão. Quando Putin entrou em cena, ele destruiu ou subverteu todas as estruturas sociais e políticas além do Kremlin”, me explicou Leon Aron, especialista em Rússia do American Enterprise Institute, cujo livro sobre a Rússia de Putin sai em outubro.

No entanto, a História da Rússia traz algumas reviravoltas surpreendentes, ele diz. “Apesar disso, numa perspectiva histórica, os sucessores de líderes reacionários no país costumam ser mais liberais: o czar Alexander II depois de Nicolas I, e na URSS, Kruschev depois de Stalin, e Gorbachev depois de Andropov. Então, se houver uma transição pós-Putin, há esperança.

Apesar disso, no curto prazo, Se Putin for derrubado, podemos acabar com alguém pior. Como você, leitor, se sentiria, se Prigozhin estivesse no Kremlin desde hoje cedo comandando o arsenal nuclear da Rússia?

Um outro cenário possível é a desordem ou uma guerra civil e a consequente implosão da Rússia nas mãos de diversos oligarcas e grupos armados. Por mais que eu deteste Putin, eu odeio o caos ainda mais, porque quando um Estado do tamanho da Rússia colapsa é muito difícil reconstruí-lo As armas nucleares e a criminalidade derivadas dessa catástrofe mudariam o mundo.

E isso não é uma defesa de Putin. É uma expressão de raiva pelo que ele fez a seu país, tornando-o uma bomba-relógio continental. Ele fez o mundo inteiro refém.

Se Putin vencer, o povo russo perderá. Mas se ele perder e for substituído pelo caos, o mundo inteiro sairá derrotado.


sexta-feira, 12 de maio de 2023

Vladimir Putin é o tolo mais perigoso do mundo - Thomas Friedman (O Estado de S. Paulo)

Vladimir Putin é o tolo mais perigoso do mundo

Por Thomas L. Friedman
O Estado de S. Paulo, 12/05/2023 | 03h00

Não tenho escrito muito a respeito da guerra na Ucrânia ultimamente porque pouco mudou estrategicamente desde os primeiros meses deste conflito, quando três fatos gerais orientavam praticamente tudo — e ainda orientam.

Fato n.º 1: conforme escrevi no primeiro momento, quando uma guerra desta magnitude começa, a pergunta-chave que você se faz enquanto colunista de assuntos internacionais é muito simples: onde eu deveria estar? Em Kiev? No Donbas, na Crimeia, em Moscou, Varsóvia, Berlim, Bruxelas ou Washington?

E desde o início desta guerra há um único lugar onde é possível compreender seu timing e sua direção — dentro da cabeça de Vladimir Putin. Infelizmente, Putin não concede vistos de entrada ao seu cérebro.

O que é um baita problema, porque esta guerra emergiu completamente de lá — sem, agora nós sabemos, nenhum aporte de seu gabinete nem de seus comandantes militares — e certamente sem nenhum anseio massivo do povo russo. Portanto, a Rússia será impedida na Ucrânia, vencendo ou perdendo, somente quando Putin decidir parar.

O que leva ao fato n.º 2: Putin nunca teve um Plano B. Agora é óbvio que ele pensou que iria entrar em Kiev como quem baila uma valsa, capturá-la em uma semana, instaurar um lacaio como presidente, meter a Ucrânia no bolso e pôr fim a qualquer outra expansão da União Europeia, da Otan ou da cultura Ocidental na direção da Rússia. E depois faria sua sombra pairar sobre toda a Europa.

O que leva ao fato n.º 3: Putin se colocou em uma situação em que não consegue vencer, não pode perder e não pode parar. Ele não conseguirá mais tomar controle de toda a Ucrânia de nenhuma maneira. Mas, ao mesmo tempo, não pode permitir ser derrotado depois de todas as vidas russas perdidas e todo o dinheiro que gastou. Portanto, ele não pode parar.

Plano A x Plano B
Para colocar de outra maneira, já que Putin nunca teve um Plano B, ele adotou por padrão uma guerra de atrito punitiva, bombardeando com frequência e indiscriminadamente cidades e infraestruturas civis ucranianas na esperança de ser capaz de drenar, de qualquer maneira, sangue suficiente dos ucranianos e exaurir o suficiente os aliados ocidentais de Kiev até que lhe deem uma fatia grande o suficiente do russófono leste ucraniano que ele seja capaz de vender para o povo russo como uma grande vitória.

O Plano B de Putin é disfarçar o fracasso de seu Plano A. Se esta operação militar tivesse um nome honesto, poderia ser chamada de Operação Salvem Minha Reputação.

O que torna esta guerra um dos conflitos mais doentios e sem sentido dos tempos modernos — um líder destruindo a infraestrutura civil de um outro país até obter um subterfúgio para esconder o fato que foi um completo imbecil.

Pôde-se perceber no discurso de Putin no Dia da Vitória, pronunciado na terça-feira, em Moscou, que agora ele busca se agarrar a qualquer lógica para justificar uma guerra que ele iniciou com base na própria fantasia de que a Ucrânia não é um país verdadeiro, e sim parte da Rússia. Ele alegou que sua invasão foi provocada por “globalistas e elites” ocidentais que “falam a respeito de sua exclusividade, antagonizam as pessoas e dividem a sociedade, provocam conflitos sangrentos e insurreições, semeiam ódio, russofobia, nacionalismo agressivo e destroem valores familiares tradicionais que tornam as pessoas seres humanos”.

Uau. Putin invadiu a Ucrânia para preservar os valores da família russa. Quem poderia imaginar? Eis um líder com dificuldades para explicar para seu povo por que ele começou uma guerra com um vizinho fraco que, afirma ele, não é um país de verdade.

O disfarce do ditador
Nós poderíamos perguntar por que um ditador como Putin precisa de disfarce. Ele não é capaz de fazer seu povo acreditar no que quiser?

Acho que não. Se analisarmos o comportamento de Putin, parece que ele está bastante assustado hoje com dois temas: aritmética e história russa.

Para entender por que esses temas o assustam, precisamos primeiro considerar o ambiente que o envolve — algo captado habilmente, à medida que transcorre, na letra da canção “Everybody Talks” (Todo mundo fala), de uma das minhas bandas de rock favoritas, Neon Trees. O refrão principal é:

Ei, amigo, você não vai olhar pra mim?

Eu posso ser seu próximo vício.

Ei, amigo, o que você tem para dizer?

Tudo o que você me traz é ficção.

Eu sou um tolo desprezível, e isso acontece o tempo todo.

Eu descubro que todo mundo fala.

Todo mundo fala, todo mundo fala.

Começa com um sussurro.

Uma das maiores lições que aprendi como repórter de assuntos internacionais trabalhando em países autocráticos é que não importa quão estritamente controlado seja o lugar nem quão brutal e autoritário seja seu ditador, TODO MUNDO FALA.

Todos sabem quem está roubando, quem está fraudando, quem está mentindo, quem está tendo algum caso extraconjugal e com quem. Começa com um sussurro e com frequência permanecem assim, mas todo mundo fala.

Putin claramente também sabe disso. Ele sabe que mesmo se tomar alguns quilômetros quadrados a mais no leste da Ucrânia e mantiver a Crimeia, assim que ele parar sua guerra todas as pessoas farão as contas cruéis sobre seu Plano B — começando por uma subtração.

Prejuízos da guerra
A Casa Branca declarou na semana passada que estimados 100 mil combatentes russos morreram ou se feriram na Ucrânia somente nos cinco meses recentes e que aproximadamente 200 mil morreram ou se feriram desde que Putin começou esta guerra, em fevereiro de 2022.

Trata-se de um número grande de baixas — mesmo em um país grande — e podemos perceber que Putin está preocupado com a possibilidade de seu povo falar disso porque, além de criminalizar qualquer forma de dissenso, em abril ele se apressou em aplicar uma nova lei que reprime recrutas fujões. Agora qualquer um que não se apresente ao serviço militar sofrerá restrições sobre operações bancárias, vendas de propriedades e até para obter carteira de motorista.

Putin não agiria dessa maneira se não temesse que, apesar de seus melhores esforços, todos estivessem sussurrando a respeito de como a guerra está indo mal e como evitar combater por lá.

Leia o ensaio recente no Washington Post de Leon Aron, historiador dedicado a estudar a Rússia de Putin e pesquisador do American Enterprise Institute, a respeito da visita de Putin, em março, à cidade ucraniana de Mariupol, atualmente ocupada pela Rússia.

“Dois dias depois do Tribunal Penal Internacional acusar Putin de crimes de guerra e emitir um mandado para sua prisão”, escreveu Aron, “o presidente russo passou algumas horas em Mariupol. Ele foi filmado parando no ‘microdistrito Nevski’, inspecionando um novo apartamento e ouvindo por alguns minutos moradores efusivamente agradecidos. Conforme ele deixava o local, uma voz quase inaudível surge no vídeo, um grito à distância: ‘Eto vsio nepravda!’ — ‘É tudo mentira!’”.

Aron disse-me que os meios de comunicação russos apagaram posteriormente ‘É tudo mentira’ do áudio, mas o fato de ter sido deixada no vídeo pode ter sido um ato subversivo, de alguém posicionado na hierarquia da mídia russa. Todo mundo fala.

Mudança de regime?
O que leva a outra coisa que Putin sabe: “os deuses da história russa são extremamente impiedosos em relação a derrotas militares”, afirmou Aron. Na era moderna, “quando um líder russo termina uma guerra em derrota clara — ou sem nenhuma vitória — normalmente ocorre mudança de regime. Nós vimos isso após a Guerra da Crimeia, após a Guerra Russo-Japonesa, após os reveses da Rússia na 1.ª Guerra, após Krushchev recuar em Cuba, em 1962, e após o Brejnev e companhia se encrencarem no Afeganistão, o que apressou a revolução da Perestroika e Glasnost de Gorbachev. O povo russo, apesar de toda sua afamada paciência, perdoa muita coisa — mas não a derrota militar”.

É por essas razões que Aron, que acaba de finalizar um livro a respeito da Rússia de Putin, argumenta que este conflito na Ucrânia está longe de acabar e ainda pode piorar muito antes disso.

“Há agora duas maneiras para Putin acabar com esta guerra que ele não consegue nem vencer nem abandonar”, afirmou Aron. “Uma é continuar a sangrar a Ucrânia até o fim e/ou até a fadiga acometer o Ocidente.”

E a outra, argumentou ele, “é, de alguma maneira, forçar um confronto direto com os Estados Unidos — trazer-nos à beira de um bombardeio nuclear estratégico mútuo total — e depois dar um passo atrás e propor para um Ocidente amedrontado algum acordo-geral, que incluiria uma Ucrânia neutra e desarmada e a continuidade da Crimeia e do Donbas com os russos”.

É impossível entrar na cabeça de Putin e prever seu próximo movimento, mas mesmo assim eu me preocupo. Porque nós sabemos, sim, a partir das ações de Putin, que ele sabe bem que seu Plano A fracassou. E agora ele fará de tudo para produzir um Plano B que justifique as baixas terríveis que ele ocasionou em nome de um país em que todos falam e no qual líderes derrotados não se aposentam tranquilamente. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

quinta-feira, 16 de março de 2023

Putin e Netanyahu provam por que coisas ruins acontecem para líderes ruins - Thomas Friedman (OESP)

Putin e Netanyahu provam por que coisas ruins acontecem para líderes ruins

Por Thomas Friedman
15/03/2023 | 20h00Atualização: 16/03/2023 | 07h34

É chocante para mim perceber o quanto Vladimir Putin e Binyamin Netanyahu têm em comum atualmente: ambos consideram a si mesmos grandes enxadristas estratégicos em um mundo que, pensam eles, todos os demais só sabem jogar damas. Mas ambos se equivocaram completamente em sua leitura do mundo em que operam.


Na realidade, eles erraram tão absolutamente que seu jogo dá a parecer que não é xadrez nem damas — é uma roleta russa; e de um só jogador. Roleta russa não deve ser jogada sozinho, mas é assim que ambos se encontram.


Putin pensou que era capaz de capturar Kiev em poucos dias e, portanto, sob um custo muito baixo, usar a expansão russa para a Ucrânia para impedir definitivamente a expansão da União Europeia e da Otan. Ele pode ter chegado perto disso, apesar do fato de seu isolamento e autoilusão terem resultado em seu equívoco em relação ao seu próprio Exército, ao Exército da Ucrânia, aos aliados da Otan, a Joe Biden, ao povo ucraniano, à Suécia, à Finlândia, à Polônia, à Alemanha e à União Europeia. Nesse processo, Putin transformou a Rússia em uma colônia chinesa de produção de energia que implora drones ao Irã.


Para alguém que está no comando do Kremlin desde 1999, é bastante erro.


Netanyahu e sua coalizão acharam que poderiam se sair bem com um rápido golpe no Judiciário disfarçado como uma “reforma” judicial, que os permitiria explorar uma eleição vencida por pouquíssima margem — cerca de 30 mil votos em um eleitorado de 4,7 milhões — para permitir a Netanyahu & Cia. governar sem ter de se preocupar com a única fonte de comedimento e contrapeso no sistema de Israel: seu Judiciário e Suprema Corte independentes.


De maneira interessante, na primeira reunião formal do gabinete de Netanyahu, em dezembro, o primeiro-ministro listou quatro prioridades de seu governo: bloquear o Irã, restaurar a segurança para todos os israelenses, enfrentar a crise no custo de vida e a escassez de moradia e ampliar o círculo de paz entre Israel e os países árabes de seu entorno. Netanyahu não falou nada a respeito de subverter o Judiciário, na esperança de empurrar sua manobra sem o público perceber.


Erro. A vasta maioria da população israelense entendeu tudo imediatamente e respondeu com a maior manifestação pública contra qualquer proposta de legislação já considerada na história do país.


A oposição agora se espalhou por toda a sociedade israelense e além: Netanyahu se equivocou com seu Exército, com o setor de startups de tecnologia de seu país, com Joe Biden e, mostram as pesquisas, com a maioria dos eleitores israelenses. Netanyahu também se equivocou com a base de seu partido: enquanto todas as semanas protestos massivos, de base ampla, têm sido organizados contra sua reforma judicial, nenhuma manifestação em grande escala de suas bases tem ocorrido em apoio à manobra.


Netanyahu equivocou-se até com alguns de seus mais ardentes apoiadores, os judeus americanos de direita. Miriam Adelson denunciou no Israel Hayom — jornal israelense de direita fundado por seu falecido marido bilionário, Sheldon — a maneira com que o primeiro-ministro tenta “avançar apressadamente” com uma mudança tão significativa. Isso levanta “dúvidas sobre objetivos fundamentais e preocupação de que esse movimento seja precipitado, insensato e irresponsável”, escreveu ela, acrescentando, “Motivações ruins nunca ocasionam bons desdobramentos”.


Para um indivíduo no sexto mandato de primeiro-ministro, é muito erro.


E então, o que vem depois? Você adivinhou: Netanyahu e Putin estão culpando agitadores e financiadores estrangeiros por seus problemas. É a cartilha do ditador. Enquanto Putin culpa regularmente os EUA e a Otan por suas derrotas na Ucrânia, o Times of Israel noticiou durante o fim de semana que Netanyahu e sua família começaram a sugerir que o Departamento de Estado é a mão invisível que financia os enormes protestos.


O jornal citou declarações de uma “autoridade graduada do governo” sobre uma viagem recente de Netanyahu a Roma — com uma atribuição de fonte jornalística usada costumeiramente pelo primeiro-ministro para ocultar sua identidade em reportagens — afirmando: “Há um centro organizado, a partir do qual todos os manifestantes se encadeiam de maneira ordenada. Quem financia o transporte, as bandeiras, os palanques? Para nós, isso é evidente.” O jornal acrescentou, “Outro membro do alto-escalão do premiê confirmou que a autoridade graduada se referiu aos EUA”.


Muito tempo no poder

Como dois líderes podem ter errado tanto apesar de estar no poder há tanto tempo? A pergunta responde a si mesma: eles estão no poder há muito tempo. Ambos têm inimigos fortalecidos e rastros de suspeitas de corrupção que lhes fazem sentir que não lhes resta alternativa a não ser governar ou morrer.


No caso de Netanyahu, isso significaria morrer figurativamente: ele está sendo julgado por várias acusações de corrupção e, se for condenado, poderá ser preso e testemunhar o fim de sua vida na política. No caso de Putin, significaria morrer literalmente, pelas mãos de seus inimigos.


Os temores “governar ou morrer” de Netanyahu o levaram a formar uma coalizão com dois condenados pela Justiça e uma galeria de violadores supremacistas judeus. Primeiros-ministros anteriores se esquivaram de muitos deles — incluindo o próprio Netanyahu. Mas em seu desespero, ele teve de buscar esses aliados porque tantos políticos decentes do Likud o abandonaram.


Putin, lamentavelmente, está muito além da construção de coalizão e do compartilhamento de poder. Esse era o Putin 1.0, no início dos anos 2000. O Putin 2.0, depois de 24 anos no comando, sabe bem que um líder como ele — que roubou tanto dinheiro quanto ele — não pode confiar em nenhum sucessor que o permita aposentar-se pacificamente em sua já descrita mansão de US$ 1 bilhão no Mar Negro. (O salário oficial dele é de US$ 140 mil ao ano.) Putin sabe que para continuar vivo ou pelo menos seguir vivendo livremente tem de continuar presidente a vida inteira. Portanto, as duas principais inovações de Putin não passaram das cuecas e guarda-chuvas envenenados para dar cabo de inimigos percebidos.


O mais interessante para mim é como tanto Netanyahu quanto Putin se equivocaram em relação aos seus próprios militares. Putin teve de apelar cada vez mais para presidiários e mercenários para levar adiante a parte mais pesada de seu esforço de guerra na Ucrânia, enquanto dezenas de milhares de russos fugiram para o exterior para escapar da conscrição.


Em Israel, pilotos da Aeronáutica, médicos do Exército e combatentes cibernéticos alertaram que as Forças de Defesa de Israel (IDF) simplesmente não baterão continência para um ditador israelense. Entre os críticos estão três oficiais aposentados liderados por Joab Rosenberg, ex-vice-diretor de análise da inteligência militar de Israel, que foi a Washington arregimentar apoio americano para impedir o golpe em câmera-lenta de Netanyahu.


Como disse recentemente Moshe Ya’alon, ex-ministro da Defesa de Netanyahu e ex-chefe do Estado-Maior israelense, em um comício em Tel-Aviv: “De acordo com minha experiência pessoal como soldado e comandante, se, Deus nos livre, Israel se tornar uma ditadura, nós não teremos soldados suficientes dispostos a sacrificar sua vida para defender o país, e isso provocará uma ameaça existencial ao Estado de Israel. Basta ver o pobre desempenho das Forças Armadas de Putin, sem espírito, nem confiança em seu ditador e seu caminho”, para perceber o que uma ditadura faz com um Exército.


Finalmente, Putin e Netanyahu subestimaram completamente a velocidade com que o rebanho de investidores globais fugiria de seus países diante de seu comportamento irresponsável. De acordo com o banco de dados fDi Markets, do Financial Times, no ano passado apenas 13 projetos de investimento estrangeiro direto foram detectados na Rússia, “o nível mais baixo desde que os registros começaram, em 2003″.


https://www.estadao.com.br/internacional/thomas-friedman-putin-e-netanyahu-provam-por-que-coisas-ruins-acontecem-para-lideres-ruins/