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sexta-feira, 25 de outubro de 2024

O Brics que interessa ao Brasil (OESP)

 O Brics que interessa ao Brasil

O Estado de S. Paulo | Notas & Informações
25 de outubro de 2024

NOTAS E INFORMAÇÕES
Cúpula mostra que há dois Brics: um dedicado a hostilizar o Ocidente e outro interessado em favorecer os emergentes onde quer que seja. Brasil, felizmente, parece ter escolhido o segundo.

 
Cúpula do Brics na Rússia expôs as duas facetas em tensão de um grupo em franca expansão. De um lado, sua faceta original de uma coalizão de economias emergentes buscando seu lugar ao sol; de outro, a nova faceta de um clube geopolítico de viés autocrático e antiocidental liderado por China e Rússia.


O tamanho impressiona. Ao quarteto Brasil, Rússia, China e Índia idealizado há 25 anos e logo acrescido pela África do Sul, juntaram-se em 2023 Irã, Egito, Etiópia e Emirados Árabes (a Arábia Saudita ainda não confirmou a adesão). Agora, uma dúzia de países adquiriu o status de associada e outros 30 estão na fila. Hoje o grupo representa 45% da população do mundo e 35% do PIB, superando os 30% do G-7. Mas a expansão não implica automaticamente potência e pode até, a depender de seus desdobramentos, implicar debilidade.


A ampliação pode, em tese, sinalizar a emergência de uma nova ordem multipolar impulsionada por um movimento de países emergentes não alinhados, ou o alinhamento desses países em um polo hostil ao Ocidente. Mas superestimar essas possibilidades no curto prazo seria subestimar as incoerências do próprio grupo. No próprio Ocidente, há quem tenda à complacência com um grupo que é mais simbólico que prático e há quem se alarme com a ameaça de uma ordem pós-ocidental. Em ambos os casos, as novas configurações do grupo já não permitiram chamá-lo de um "bloco" ("bric" significa literalmente "tijolo" em inglês), mas ele seria mais como uma sopa de letrinhas (BRICSIEAUEE
) ou uma massa de manobra sino-russa. São destinos possíveis, mas ao Brasil não interessa nenhum deles, sobretudo o último.


Como disse Asli Aydintasbas, pesquisadora do think tank americano Brookings Institution, o Brics "não é um bloco coeso, mas é uma mensagem coesa, sobre o desejo de apresentar uma alternativa à ordem global". Ao Brasil interessa preservar o anseio legítimo dessa mensagem por uma governança global reformada, mais inclusiva e com mais soberania política e financeira, e, na medida do possível, conferir-lhe efetividade buscando justamente a coesão que falta ao bloco. Não é um caminho fácil diante da pressão sino-russa. Mas o País não está sozinho. A Índia, em especial, também busca uma política de não alinhamento, e as realidades internas e externas ao bloco oferecem limites às ambições de Pequim e Moscou.


Egito, Emirados Árabes e Arábia Saudita, por exemplo, são parceiros de segurança dos EUA no Oriente Médio. A superação da unipolaridade do dólar até seria, idealmente, desejável, mas isso exigiria instituições confiáveis e alinhamentos multilaterais baseados num Judiciário independente, transparência e accountability. No caso da alternativa plausível, o yuan chinês, Pequim precisaria abandonar seus controles de capital e seu modelo de vigilância estatal, mas essas cartas não estão na mesa.


O Brasil assume a presidência do Brics e deveria aproveitar a oportunidade para afirmar sua posição de equidistância e independência. A retomada do processo de adesão à OCDE, o grupo de democracias ricas, traria ganhos nesse sentido. Mas nesse caso os rancores juvenis do presidente Lula falam mais alto. No entanto, seu infeliz acidente doméstico foi um golpe de sorte que poupou a ele e ao País muitos constrangimentos na Rússia de Vladimir Putin. Em um lampejo de racionalidade o governo vetou a adesão da Venezuela e mostrou interesse na integração da Turquia, que também favoreceria a ala dos não alinhados. O interesse da China na adesão do Brasil à Rota da Seda também pode dar alavancagem ao País para promover seus interesses no Brics. Concretamente, o Brasil, na presidência, poderia trabalhar para que o grupo ao menos estabeleça critérios de adesão coerentes e transparentes.


Lula já disse que o Brics é "contra ninguém". Seu histórico de ações exige que se tomem essas palavras com cautela. Mas a atuação do Brasil na última cúpula oferece alguma esperança de que as engrenagens profissionais do Itamaraty estão operando a favor de uma atuação racional em busca dos interesses do Brasil e pelo bem do próprio Brics.



terça-feira, 22 de outubro de 2024

O Brics e o movimento anti-Ocidente - Rubens Barbosa (OESP)

Opinião: 

O Brics e o movimento anti-Ocidente 

O Brasil deveria aproveitar a presidência do bloco em 2025 e enunciar sua posição de equidistância dos antagonismos em formação, na defesa de seus interesses 

 Rubens Barbosa 

O Estado de S. Paulo, 22/10/2024

A reunião do Brics, que se realiza as partir de hoje em Kazan, na Rússia, marca uma nova etapa na trajetória do grupo. Criado em 2006, por iniciativa da Rússia, o bloco foi constituído por Brasil, China, Índia e Rússia, e pouco depois incorporou a África do Sul. Em setembro de 2023, por influência da China, passaram a fazer parte também Emirados Árabes, Egito, Irã, Arábia Saudita, Etiópia. A participação do Brics na economia global é uma consequência de seu peso econômico (32,1% do PIB global contra os 29,9% do G-7, metade da população mundial e 25% do comércio internacional). 

A China tornou-se a segunda potência global, a Índia e o Brasil estão entre as dez maiores economias do mundo, a Rússia é uma potência nuclear e a África do Sul, a maior economia da África. A gradual ampliação dos países participantes no Brics era previsível a partir do momento em que a China convenceu o Brasil e a Índia a aceitar a inclusão de novos membros. Por iniciativa da China, em Kazan, será criada a categoria de parceiros do Brics para os novos membros, com a possível fixação de alguns critérios, como a representação geográfica, a oposição a sanções econômicas unilaterais, o apoio a reforma da ONU, especialmente a do Conselho de Segurança. Apesar das dificuldades criadas com a guerra da Rússia com a Ucrânia e da crescente tensão entre a China e os EUA, o interesse dos países em se juntar ao Brics, estimulado por Pequim, cresceu fortemente nos últimos meses, e 35 países (inclusive o Afeganistão, do Taleban) estão pleiteando a participação no grupo. 

Na reunião presidencial da Rússia, mais dez países deverão ser aceitos pelo Brics, entre eles são mencionados Cuba, Venezuela, Bolívia, Bielorrússia. A decisão de dobrar o número de participantes de todos os continentes, sob a liderança da China, com a inclusão de países autoritários e de viés anti-EUA, está tornando o Brics o embrião de um movimento antiocidental. Com o predomínio da China, o movimento tende a se ampliar com a grande maioria dos países com uma postura antiamericana e com viés pró-Rússia. A China e a Rússia veem o grupo como um ponto de confrontação com o Ocidente, como a inclusão do Irã evidencia. A contraposição ao Ocidente (conjunto de países sem delimitação geográfica, integrado pelos EUA, Europa, Japão, Austrália e outros países em todos os continentes) não é ideológica ou militar, mas de princípios, valores, na economia, nas finanças e nos avanços tecnológicos. A tendência de divisão do mundo entre Ocidente e o movimento antiocidental está aí para ficar. As implicações geopolíticas são evidentes e poderosas. 

A guerra da Rússia na Ucrânia representou um problema para o Brics, como originalmente concebido, pois um país-membro passou a ser visto como um inimigo ocidental, o que inevitavelmente contaminou a percepção política sobre o grupo. Embora sem uma agenda comum, os países-membros do Brics passaram a ampliar suas relações, tornaram-se mais conhecidos e passaram a coordenar suas ações nos organismos multilaterais, como a ONU, em temas de interesse comum. A criação do Novo Banco de Desenvolvimento foi o primeiro sinal de uma nova governança global, e a plataforma de desafio à hegemonia do dólar nas trocas comerciais, com a utilização do renminbi ou moedas locais, é outro indício da contestação em marcha, com previsível reação norte-americana, evidenciada pela ameaça de Donald Trump de taxar em 100% os produtos de países que aderirem. Apesar de existir o potencial para influir ao longo dos anos na governança global, as limitações internas e externas do grupo dificultam a ideia de se tornar uma efetiva alternativa à ordem ocidental. Quais os interesses do Brasil? 

Como o Brasil se situa no contexto do novo Brics? 

O Brics é para o Brasil um espaço privilegiado de articulação político-diplomática, bem como plataforma de cooperação em áreas que incluem virtualmente todos os principais temas da agenda internacional. O Brasil procura usar o Brics como alavanca para uma nova governança global, em que a multipolaridade prevaleceria sobre a unipolaridade, sem necessariamente confrontar o Ocidente. A reforma das instituições multilaterais permanece sendo objetivo central para o Brasil, ao lado do desenvolvimento de uma plataforma para a promoção do uso de moedas locais como meio de pagamentos e a expansão e o fortalecimento do Novo Banco de Desenvolvimento. 

Apesar de não concordar com a ideia de o Brics ser um vetor de disputa estratégica ou confrontação geopolítica e um agrupamento que pretende competir com o G-7 ou substituir as atuais organizações multilaterais, o Brasil, a exemplo da Índia, deveria permanecer no bloco, mesmo com o risco de ficar isolado no âmbito dos novos países-membros, com previsível perda de influência, até mesmo na definição da agenda do grupo. Em 2025, o Brasil assume a presidência do Brics ampliado, com a proposta de fortalecimento da cooperação do Sul Global para uma governança mais inclusiva e sustentável. O Brasil deveria aproveitar essa oportunidade e enunciar claramente sua posição de equidistância dos antagonismos em formação entre dois blocos na defesa de seus interesses econômicos, financeiros e comerciais. 

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE), É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS 

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/o-brics-e-o-movimento-anti-ocidente/

segunda-feira, 17 de junho de 2024

Sobre a diplomacia do governo Lula - Celso Lafer (OESP)

 Sobre a diplomacia do governo Lula

A condução da política externa requer um esforço de sintonia com a sociedade para amainar riscos de polarização interna 

Por Celso Lafer

O Estado de S. Paulo, 16/06/2024 


Lula da Silva assumiu o seu terceiro mandato com o objetivo de se contrapor ao que foi o peso de passivos diplomáticos oriundos do “negacionismo” circunscrito da visão de mundo do presidente Jair Bolsonaro.

A repercussão internacional da eleição de Lula foi altamente positiva. Foi substanciada pelas suas prévias realizações diplomáticas, a vis atractiva de sua personalidade, seu conhecido interesse pelas relações internacionais, e pela sinalização, inovadora em relação ao Lula I e II, da ênfase que pretende dar ao meio ambiente.

É indiscutível que do ponto de vista quantitativo o Brasil de Lula está de volta ao mundo. É o que atestam suas muitas viagens internacionais, importante presença em reuniões em instâncias multilaterais, plurilaterais e regionais e as não menos numerosas visitas de altas personalidades estrangeiras.

Se o Brasil com Lula está, em termos quantitativos, de volta ao mundo, qual é a dimensão qualitativa desta reinserção? Lula III se confronta com um mundo, uma região e um país distintos dos de suas anteriores Presidências.

O Brasil de hoje é muito mais polarizado do que o de Lula I e II. É muito menos organizado do que aquele que recebeu da qualificada Presidência de Fernando Henrique Cardoso. Carrega o peso do negativismo da Presidência de Bolsonaro e seus desdobramentos para a vida democrática. Por isso, a condução da política externa requer um esforço de sintonia com a sociedade para amainar riscos de polarização interna.

A latitude da política interna de Lula III para a sua ação diplomática é menor do que a de Lula I e II, nos quais pôde contar com o respaldo de sua popularidade e a preponderância política do PT. Não é o caso agora. Lula III foi eleito com uma margem apertada, e o seu sucesso foi e vai além do PT. A compreensão desta nova realidade não é forte na percepção e na conduta do presidente, que é mais autocentrado na sua experiência anterior. Também não é forte no PT, que tem o ouvido do presidente na articulação diplomática de sua visão do mundo, que não é compartilhada por um espectro grande dos atores políticos brasileiros. A consequência disso tudo é a internalização conflitiva da atual política externa que se soma com outros temas e problemas da pauta de governança de Lula III.

A América do Sul é hoje muito mais heterogênea e fragmentada do que era em Lula I e II. Daí a diminuição das oportunidades de esforços comuns de cooperação na região e o seu potencial de impacto no plano mundial.

Menor latitude interna e menos espaço para ambiciosas ações regionais se conjugam com menos espaço para a atuação do “soft power” brasileiro no plano mundial. O mundo de hoje é mais hobbesiano. É mais propenso ao conflito e menos a consensos internacionais sobre temas globais que sempre foram parte das ambições diplomáticas de Lula.

Estamos inseridos num mundo permeado por tensões regionais e internacionais de poder, que vem propiciando o retorno da geopolítica e da geografia das paixões. A mais relevante é a tensão de hegemonia China e EUA, que não existia em Lula I e II, quando a China não estava disputando primazia hegemônica com os EUA. É o que dificulta a calibração do Brasil na vida internacional.

A diplomacia de Lula III se confronta com dois conflitos de magnitude: em Gaza e na Ucrânia. O de Gaza vai além da terrível situação humanitária. Está relacionada ao equilíbrio das forças no contexto regional e ao espaço e papel de potências externas na dinâmica do Oriente Médio. Identifico na posição brasileira, em especial nas improvisadas e não medidas manifestações do presidente, uma emotiva exortação em prol da paz. Carrega a simpatia pela causa palestina presente no PT. Possui uma opacidade em relação ao desafio existencial de Israel. Lula III vem se associando ao coro da geografia das paixões que o conflito suscita. É um tema que se internalizou.

O conflito na Ucrânia está vinculado às tensões de hegemonia. Conduzida pela Rússia de Vladimir Putin, é uma guerra de agressão. É uma inequívoca expressão do uso da força contra a independência e a integridade territorial da Ucrânia, o que se contrapõe à Carta das Nações Unidas.

A continuidade da guerra e a sua violência alteram o prévio horizonte da segurança europeia. Colocam na pauta o uso das armas nucleares. São uma ameaça existencial aos vizinhos da Rússia. Neste contexto, não cabe benevolência em relação à Rússia de Putin, que se contrapõe à política jurídica externa do País, positivada na Constituição de 1988.

O recente endosso de Celso Amorim à proposta de uma conferência de paz articulada pela China, aliada da Rússia, para constituir um eixo de paz (a palavra eixo não traz boas lembranças para os estudiosos da paz) atrela o Brasil à China e aos seus interesses hegemônicos. Não contribui para a credibilidade da equidistância do “soft power” do nosso país e as ambições de Lula III de assegurar um apropriado lugar no mundo. Não fará do Brasil um terceiro em favor da paz, mas sim um terceiro aparente, aliado a uma visão compreensiva da Rússia, que se dissolve na dinâmica das polarizações.

*

PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992, 2001-2002)

Opinião por Celso Lafer

Professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992; 2001-2002)

 Professor emérito da USP, ex-ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002) e presidente da Fapesp, Celso Lafer escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

 

domingo, 16 de junho de 2024

Cem novos institutos federais ? - Simon Schwartzman (OESP)

Cem novos institutos federais?

Concentrar recursos em atividades estratégicas de relevância, qualidade e equidade parece fazer mais sentido do que insistir em, simplesmente, fazer mais do mesmo

Por Simon Schwartzman

O Estado de S. Paulo, 14/06/2024

Em março, o Ministério da Educação (MEC) anunciou a criação de cem novos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. Alguns jornais saudaram a iniciativa, dizendo que, finalmente, o governo estava dando atenção à educação técnica e profissional. Fiquei sem entender: como é que o governo federal, que mal consegue manter suas universidades e seus institutos que existem funcionando, vai criar mais cem? E será que, criando, vai fazer diferença?

Esses institutos foram criados em 2008, a partir de uma rede de Centros Federais de Educação Técnica (Cefets) de nível médio que existiam em vários Estados. Seus professores e funcionários foram equiparados aos das universidades federais, novos cargos foram criados, e, além de cursos técnicos de nível médio, eles passaram também a poder dar cursos superiores e de pós-graduação. Hoje, são 39 institutos e dois que continuam como Cefets. É difícil saber exatamente o que fazem, os dados são escassos e confusos, mas, pelas estatísticas do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), eles têm cerca de 230 mil alunos em cursos de graduação e 320 mil na educação média, matriculados em cerca de 600 locais diferentes, a grande maioria em cursos integrados com o ensino profissional. Além disso, têm cerca de 4 mil estudantes em cursos de pós-graduação, quase todos de mestrado. O projeto do MEC não é, na verdade, de criar cem institutos, mas cem novos locais para os cursos de ensino médio, o que poderia significar cerca de 50 mil matrículas adicionais.

Para entrar nesses cursos médios, é preciso passar por um processo seletivo, e as vantagens para os que conseguem são grandes. Eles estudam em tempo integral e os colegas são mais qualificados, criando um ambiente mais estimulante. Os professores também são mais qualificados, ganham mais do que os das redes estaduais, o número de alunos por professor é menor e as instalações são melhores. E, quando fazem o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), os formados entram nas cotas de estudantes das redes públicas, ficando nos primeiros lugares. Esses cursos têm sido propostos como o modelo ideal para o ensino técnico médio no Brasil, mas os alunos, por serem selecionados e estudarem em escolas de qualidade, tratam de ingressar em universidades em vez de se profissionalizarem como técnicos.

Para os cursos superiores, seria de esperar que os alunos estivessem sobretudo em cursos aplicados de curta duração (o que no Brasil se chama de “cursos tecnológicos”). Isso ocorre, mas bem menos do que seria de esperar: 26%, comparado com 30% em cursos de formação de professores (licenciaturas) e 44% em cursos tradicionais de bacharelado. Das áreas de estudo, um terço está em educação, 44% em cursos de engenharia e computação, e os demais dispersos em outras áreas. Esses institutos sofrem com uma praga conhecida que afeta o ensino profissional em muitas partes, a pressão para se tornarem o mais parecido possível com universidades, à custa das missões originais para as quais teriam sido criados.

O caso dos institutos é semelhante ao das universidades federais. Começa-se com um modelo idealizado, caro e em pequena escala, e depois não se consegue expandir, seja pelas limitações do modelo, que se desvirtua, seja pela falta de recursos. Os institutos federais são uma gota d’água: cerca de 2% a 3% das matrículas, tanto do ensino médio quanto do ensino superior e tecnológico. Daria para aumentar? Os institutos federais custaram, em 2022, cerca de R$ 18 bilhões, comparados com os R$ 56 bilhões das demais 80 instituições superiores federais. A quase totalidade desses custos vai para pessoal, sobrando quase nada para investimentos e custeio.

Nos cursos de graduação, partiu-se com a ideia de uma universidade pública, universal, gratuita e fundada na pesquisa. Hoje, quase 80% das matrículas do ensino superior estão no setor privado, e poucas universidades públicas conseguem manter atividades de pesquisa mais significativa. A educação superior tecnológica vem se expandindo, mas sobretudo no setor privado. Na pós-graduação, criou-se um sistema controlado e subsidiado para formar mestres e doutores, mas a maioria de seus estudantes não tem interesse em fazer carreira em pesquisa, as matrículas estão caindo e a pós-graduação lato sensu é muito maior, desregulada e não se sabe bem o que faz.

A questão central é qual o papel adequado para o governo federal e os Estados quando não tem mais como expandir os gastos públicos e as demandas e necessidades da sociedade vão muito além do que os governos podem proporcionar. A criação de dez novos campi universitários no modelo tradicional, anunciada nesta semana, assim como as restrições recentes aos cursos de educação a distância, mostra que o governo federal ainda não entendeu o problema. Melhorar o papel regulatório, estimular boas práticas, concentrar os recursos existentes em atividades estratégicas de relevância, qualidade e equidade e estimular Estados e municípios e o setor privado a canalizar melhor suas energias parece fazer mais sentido do que insistir em, simplesmente, fazer mais do mesmo.

*SOCIÓLOGO, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

 

terça-feira, 9 de abril de 2024

O Brasil tem problemas demais para ter pensamento estratégico- Rubens Barbosa (OESP)

AMBIÇÃO EXTERNA SEM PENSAMENTO ESTRATÉGICO

Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 9/04/2024


No Brasil, os problemas sociais, pobreza, concentração de renda, falta de recursos para o Estado, gastos desnecessários e duplicados, déficit público, déficit educacional e cientifico e tecnológico, sem falar nos privilégios, nos problemas da segurança pública, na violência e na corrupção, segurança jurídica para garantir investimentos, para citar os mais dramáticos, deixam pouco espaço para um pensamento de meio e longo prazo, verdadeiro esforço estratégico para um país do porte do Brasil, potência média, a nona economia do mundo, com interesses importantes a preservar na área do agronegócio e com grandes deficiências e vulnerabilidades na área industrial e, sobretudo, de Defesa, pelo baixo aproveitamento dos avanços da tecnologia.

 

O mundo mudou e hoje as preocupações com a Defesa são prioritárias. No meio de duas guerras, na Europa e no Oriente Médio, 58 conflitos localizados em 35 países e, na nossa vizinhança, a ameaça bélica da Venezuela contra a Guiana, o Brasil não pode se dar ao luxo de ignorar esse pensamento estratégico.

 

A falta de uma visão estratégica tornou-se trágica para o ambiente da Defesa Nacional e para um projeto nacional, exemplificado agora com o anúncio da venda da AVIBRAS, empresa líder de tecnologia de ponta no lançamento de foguetes. Com problemas de gestão que se arrastam a mais de ano, com dívidas acumuladas, o governo Lula ao assumir, tentou encontrar uma fórmula para preservar a empresa nacional, sem sucesso.

 

Caso se concretize a venda da AVIBRAS, será a terceira empresa de grande porte e significado na Defesa que o Brasil perde, depois da Engesa (carro de combate) e da Mectron SIATT (míssil naval). Em comunicado, a Avibras e a empresa australiana Defend Tex informaram que vem mantendo tratativas para viabilizar a recuperação econômica-financeira da empresa para manter suas unidades fabris no Brasil, retomar as operações e manter o fornecimento previsto nos contratos. Apesar do grave dano à soberania, com a desnacionalização da empresa, a operação conta com a boa vontade do governo e das autoridades do Ministério da Defesa (MD), inclusive dos comandantes das três Forças.

 

O Centro de Defesa e Segurança Nacional (CEDESEN), junto com a ABIMDE, apresentaram proposta ao MD que poderia ser uma saída para a Avibras. Sugeriu-se a criação da Empresa Crítica de Defesa (ECD), visto que uma análise de risco observando impacto com a descontinuidade de operações ou com a perda do controle nacional mostra que certas empresas são Críticas para o presente e futuro da país. A proposta é simples e direta: Criação, por lei, da classificação adicional de ECD, que se somaria às Empresas Estratégicas de Defesa (EEDs) e Empresas de Defesa (EDs). Para se tornar ECD a empresa deveria ser uma EED. Uma análise de risco deveria apontar que a sua descontinuidade possuiria impacto significativo imediato e de longo prazo em áreas estratégicas e de interesse da Segurança Nacional (e não somente Defesa Nacional). O Estado deveria se organizar para realizar aquisições mínimas periódicas das ECD de forma manter a capacidade de P&D e produtiva ao menos com carga mínima, evitando-se assim a sua desmobilização. Como contrapartida, as ECD deveriam estar sujeitas a intervenção técnico-econômica direta da União em caso de iminência de perda de controle nacional ou de severo desarranjo econômico. Os mecanismos precisariam ser discutidos, mas poderiam incluir a criação de Golden Share, inclusive sendo este uma forma de aporte financeiro.

 

Segundo a legislação vigente, a lei 12.598, determina que, em EED, o controle fique restrito a 40% dos votos, além de desenvolver tecnologia nacional. Aparentemente, não foi isso o que ocorreu. A legislação deveria ser aplicada, mas pode deixar de ser por não existir um responsável por desenvolver e sustentar uma Base Industrial de Defesa estratégica para o país

 

Algumas sugestões apareceram para tentar contornar a questão das dívidas crescentes da companhia que parou de fornecer equipamento ao exterior e enfrenta ameaça de paralização total. A última instância seria estatizar a empresa em troca da dívida tributária sem colocação de recursos públicos ou controle administrativo para empresas, mas não teve apoio de Lula.

 

Essa transação ocorre quando o MD discute a atualização da Política Nacional de Defesa e a Estratégia Nacional de Defesa, embora a questão da Avibras certamente não tenha sido colocada no contexto mais amplo da capacidade de Defesa do país. Os interesses divergentes no contexto do establishment militar brasileiro não permitem ainda o entendimento de que a capacidade militar tem dois componentes essenciais. Capacidade operacional de combate, providas pelas FFAA e capacidade logística de defesa, provida pelas sinergias entre um órgão do Estado que gere a demanda por produtos e tecnologia de defesa e uma BID estratégica, sem a qual as FFAA não podem operar e mesmo existir. As FFAA exigem uma reforma estrutural para se modernizar e apoiar a indústria nacional de Defesa.

 

O assunto transcende as competências do Poder executivo e deveria merecer a atenção do Congresso já que envolve questões de Defesa e Segurança Nacional.

 

Rubens Barbosa, presidente do Centro Estudos de Defesa e Segurança Nacional (CEDESEN)


segunda-feira, 11 de março de 2024

A farsa eleitoral da ditadura venezuelana e a cumplicidade de Lula - Lourival Sant’Anna (OESP)

Lamentável essa confirmação de que o Brasil de Lula está totalmente conivente com o assalto continuado do regime chavista contra os direitos democráticos do povo venezuelano. Lula está sendo cúmplice devum CRIME POLÍTICO!

Na Venezuela, ditadura de Maduro prepara uma farsa eleitoral

Regime tenta dar ar de legitimidade ao precário processo eleitoral do país

Lourival Sant'Anna, O Estado de São Paulo, 09/03/2024

O regime venezuelano prepara mais uma farsa eleitoral. E o governo Lula participa alegremente dela. Até aí, nenhuma novidade. Dessa vez, porém,  a manobra vem acompanhada da ameaça de invasão de outro vizinho do  Brasil, a Guiana. Um aliado comum de Nicolás Maduro e de Lula, o ditador russo Vladimir Putin,  tem interesse nessa guerra. Lula trocou o apoio incondicional à ditadura venezuelana pelo adiamento do conflito. É um arranjo precário.

Os  partidos de oposição venezuelanos se uniram no ano passado para eleger  candidato único contra Maduro. A chamada Plataforma Unitária Democrática  pediu para o Conselho Nacional Eleitoral supervisionar o pleito. Para  negar legitimidade ao processo, os conselheiros obedientes ao regime,  que eram a maioria, renunciaram. Um novo Conselho, exclusivamente  chavista, foi nomeado, e o órgão público se recusou a cumprir a função  constitucional de fiscalizar a votação.

Apesar  das ameaças de represália do regime, 2,4 milhões de corajosos  venezuelanos participaram, e 92% votaram na ex-deputada María Corina  Machado, incontestável líder da oposição. Em 2015, Machado foi tornada  inelegível pela Justiça venezuelana, controlada pelo regime, por  supostas irregularidades em sua prestação de contas como deputada. Isso,  num país em que centenas de milhões de dólares são desviados por  integrantes do regime.

O  Tribunal Supremo de Justiça, 100% composto por chavistas, confirmou em  janeiro a inelegibilidade de Machado, até 2036.Machado é a terceira  líder de oposição competitiva excluída de disputas eleitorais com  Maduro, no rastro de Henrique Capriles e Leopoldo López, presos por  crimes sem provas. Segundo organismos independentes de defesa dos  direitos humanos, 1.400 venezuelanos perderam direitos políticos desde  2002. Há atualmente 288 presos políticos.

A  manobra viola o Acordo de Barbados, firmado cinco dias antes das  primárias da oposição. O governo venezuelano se comprometeu a realizar  eleições livres e justas, sem a exclusão de oposicionistas. O acordo  levou os EUA a suspender as sanções contra a Venezuela, que pode ter  vendido em torno de US$ 1 bilhão em petróleo, antes de a Casa Branca  concluir que foi enganada.

O  acordo incluiu também a libertação do colombiano Alex Saab, preso na  Flórida sob acusação de desvio de US$ 350 milhões dos cofres  venezuelanos. Segundo o FBI, parte desse dinheiro é destinada a Maduro,  do qual Saab é considerado testa-de-ferro. A trama envolve lavagem de  dinheiro do narcotráfico.

A  exclusão da oposição leva há uma década a população a boicotar  maciçamente as eleições promovidas pelo regime. Para fazer frente a  esses boicotes, que retiram a aparência de legitimidade dos pleitos, o  regime toma uma série de providências. Ao chegar às seções eleitorais,  os venezuelanos passam seu “cartão da pátria” em máquinas  estrategicamente instaladas ao lado dos equipamentos de identificação  dos eleitores. O registro do comparecimento garante a entrega mensal da  cesta básica pelo governo, da qual muitos venezuelanos dependem para  sobreviver: 90% estão abaixo da linha de pobreza e 68%, na extrema  pobreza.

Funcionários  públicos são obrigados a votar. Militantes chavistas remunerados pelo  governo nos bairros pobres exercem pressão para os moradores  comparecerem. Nada disso é suficiente. Eu cobri as eleições para a  Assembleia Constituinte de 2017, boicotadas pela oposição. As seções  eleitorais permaneceram semidesertas o dia todo, enquanto dezenas de  milhares de corajosos venezuelanos se manifestavam contra o regime, sob  forte repressão. Mesmo assim, o CNE anunciou comparecimento de 41%.

A  propósito, enquanto Lula se reunia com Maduro, há uma semana, em San  Vicente e Granadina, durante a cúpula da Celac, o Tribunal Penal  Internacional rejeitava em Haia apelação do regime chavista e levava  adiante a investigação da morte de 125 manifestantes durante as eleições  da Assembleia Constituinte. Eu presenciei algumas dessas mortes a  tiros, disparados contra a multidão.

Lula  tem longa história de interferência nos assuntos venezuelanos, ao lado  do autoritarismo e da corrupção do regime chavista. Em novembro de 2006,  Lula aproveitou a inauguração de uma ponte sobre o Rio Orinoco  construída pela Odebrecht com dinheiro do BNDES para pedir votos para Hugo Chávez, três semanas antes de mais uma de suas múltiplas reeleições.

Em  abril de 2013, logo depois da morte de Chávez, Lula gravou um vídeo  para pedir voto para Maduro: “Sempre foi visível sua profunda afinidade  com nosso querido e saudoso amigo Hugo Chávez.  Os dois compartilhavam as mesmas ideias sobre o destino do nosso  continente e os grandes problemas mundiais. Mais do que isso, Chávez e  Maduro tinham as mesmas concepções em relação aos desafios que a  Venezuela tinha pela frente: em defesa dos mais pobres”.

Por  isso, a oposição e a maioria da população da Venezuela não confiam em  Lula e ele não tem credenciais para intermediar uma distensão no país.  Isso fica provado mais uma vez agora. Depois que Maduro marcou a eleição  para 28 de julho, aniversário de Chávez, o presidente brasileiro  afirmou que “não se pode colocar dúvidas antes de as eleições  acontecerem”, em nome da “presunção de inocência”.

Assessores  do presidente têm dito que não gostam de Machado, porque ela fala em  punir os crimes do regime, e aprovam os nomes do governador de Zulia,  Manuel Rosales, e de Gerardo Blyde, coordenador da Plataforma Unitária  Democrática. Lula disse em fevereiro que não tem informações sobre o que  acontece na Venezuela, quando indagado sobre a expulsão de funcionários  do escritório de Direitos Humanos da ONU no país.

Só  isso explicaria as maquinações de seus assessores. Além do óbvio  absurdo de um governo querer triar candidatos à presidência de outro  país, Rosales é popular em Zulia mas não tem projeção nacional, enquanto  Blyde é leal ao processo das primárias e não se candidataria no lugar  de Machado, analisa Omar Lugo, editor do site independente de notícias  El Estímulo, de Caracas.

Na  antevéspera do Dia Internacional da Mulher, Lula sugeriu que a líder da  oposição não deveria ficar “chorando” e sim escolher um substituto,  como ele fez quando estava condenado e preso por corrupção, em 2018. O  presidente parece não saber também o que está acontecendo no Brasil, um  Estado democrático de direito que não pode ser comparado à ditadura  venezuelana. Sem contar o conteúdo grosseiro, misógino e injusto do  ataque: se tem uma coisa que não falta a Machado é coragem, ao percorrer  o país em campanha, enfrentando um regime sanguinário.

Depois  de duas décadas de abusos contra os direitos humanos na Venezuela e de  arbitrariedades para manter os chavistas no poder, a única inocência dos  envolvidos é a do próprio Lula. Se é que ele acredita no que diz. O  mais provável é que Lula tenha penhorado seu apoio a Maduro em troca de o  ditador recuar de sua decisão de invadir a Guiana para tomar a região  de Essequibo, rica em petróleo e outros minérios.

A  aventura não faria grande sentido econômico: a Venezuela tem as maiores  reservas de petróleo do mundo. O que lhe falta é competência para  explorá-lo. Em razão do sucatamento da estatal PDVSA, antes uma  respeitada petroleira, a exploração despencou de 3 milhões de barris  diários em 2002 para 800 mil.

O  sentido da ameaça é político: o velho expediente, aliás usado por  Putin, de criar um inimigo comum para justificar a perpetuação no poder,  como único “protetor da nação”. E geopolítico: servir ao interesse  russo de criar uma distração para os Estados Unidos na América Latina. A  guerra de Gaza, provocada por outro aliado da Rússia, o Irã,  patrocinador do Hamas, divide as energias dos Estados Unidos e  enfraquece seu apoio à Ucrânia. Numa escala menor, o apoio americano à  Guiana teria o mesmo efeito.

Dois  dias antes de os russos invadirem a Ucrânia, em fevereiro de 2022,  Maduro declarou: “A Venezuela está com Putin, está com a Rússia, está  com as causas valentes e justas do mundo”. Cinco dias depois da invasão,  o ditador venezuelano ligou para o russo. “Nicolás Maduro expressou seu  forte apoio às ações-chave da Rússia, condenando a atividade  desestabilizadora dos Estados Unidos e da Otan e enfatizando a  importância de combater a campanha de mentiras e desinformação lançada  pelos países ocidentais”, relatou o Kremlin.

Lula também culpa os EUA e a Europa pelo fato de a Rússia ter invadido a Ucrânia.

Chávez  já havia apoiado a invasão da Geórgia pela Rússia em 2008. Assim, a  anexação do Essequibo pareceria algo legítimo dentro do repertório moral  do chavismo. Na época, a Venezuela ainda conseguia produzir petróleo em  grande quantidade, e usava o dinheiro para comprar armas russas, como  sofisticados caças Sukhoi-30, baterias antiaéreas S-300, tanques,  navios, artilharia e fuzis kalashnikov.

Essa  tensão interessa às ditaduras venezuelana e russa, e não ao Brasil, que  tem 2.199 km de fronteira com a Venezuela e 1.605 km com a Guiana, no  delicado território amazônico. Além disso, ao menos 262 mil imigrantes e  refugiados da Venezuela vivem no Brasil, por causa do flagelo no país  vizinho. Portanto, enquanto subsistir o regime chavista, o Brasil não estará seguro.


quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Comércio Exterior de 1 trihão de dólares - Rubens Barbosa (OESP)

                     COMÉRCIO EXTERIOR DE 1 TRILHÃO DE DÓLARES

Rubens Barbosa, 

O Estado de S. Paulo, 27/02/2024

 

O comércio exterior brasileiro ultrapassou meio trilhão de dólares em 2023. A notícia foi saudada com um grande sucesso do comércio brasileiro no mundo. A corrente de comércio subiu a mais de US$ 580 bilhões, com US$339,7 bilhões de exportação, com um aumento de 1,7% em relação a 2022, e US$ 240,8 bilhões de importação, com queda de 11,7, em relação a 2022. O superavit recorde chegou a US$ 98,8 bi. crescimento de 60% em relação a 2022 (mais da metade com um único país, China). O Brasil se consolidou como um dos maiores exportadores mundiais de alimentos e minério com mais de 18% e 26% das exportações totais do país respectivamente. Cresceu o número de empresas exportadoras, que hoje chegam a 28.500. Acentuou-se a importância do mercado asiático (mais de 50% das exportações totais), em especial o da China, Hong Kong e Macau, que representaram US$ 105,75 bi, mais de 30% das exportações totais brasileiras.

 

O comércio exterior se beneficiou de medidas tomadas pelo governo em 2022 para desburocratizar procedimentos e reduzir custos das transações. O BNDES voltou a apoiar as exportações aumentando a competitividade dos produtos nacionais. A promoção comercial e a cultura exportadora foram fortalecidas por ações da APEX e SEBRAE. Acordos de comércio, como o assinado com Singapura, e o de liberalização e simplificação com os EUA, inclusive com o fim da sobretaxa as exportações brasileiras de aço, foram positivas. A reforma tributária contribuirá para a melhoria da competitividade.

 

Como disse o Vice-Presidente e Ministro do MDICS, Geraldo Alkmin, “os resultados nos desafiam a fazer mais para abrir novos mercados e melhorar a competitividade e incluir produtos de maior valor agregado”.

 

Os desafios para o comércio exterior brasileiro vão além do que corretamente mencionou o ministro Alckmin. Os números realmente impressionantes geraram um sentimento ufanista (Brasil celeiro do mundo), mas escondem vulnerabilidades que um país do porte do Brasil (9ª. Economia global) não poderia aceitar, em função das incertezas geradas pelas transformações da economia e da geopolítica global.

 

A dependência do agronegócio para o sucesso econômico do país preocupa pelo fato de o setor agrícola se ter tornado o motor da economia. Os EUA e a Europa também são grandes produtores agrícolas, mas o setor industrial tem sua força própria, ao contrário do que ocorre no Brasil.

 

A concentração no comércio exterior brasileiro de poucos produtos (soja, petróleo e minério de ferro representam 37% das exportações, 5 produtos (incluindo açúcar e milho), 46% e 8 produtos, 2/3 do total exportado) e poucos mercados (Asia, Oriente Médio e Norte da África, representam 65% do total exportado) expõe o crescimento da economia, caso haja desaceleração do mercado externo (em especial o da China) e redução da produção agrícola nacional por fatores climáticos, como está ocorrendo este ano. A China concentra 75% das exportações da soja nacional.

 

As transformações da nova economia global criam outros tipos de vulnerabilidade, em consequência da ênfase em políticas industriais nos países desenvolvidos e crescentes restrições externas para garantir autonomia soberana em virtude das mudanças geopolíticas e para atender as novas prioridades de políticas ambientais, como as medidas tomadas na Europa para eliminar as importações de produtos agrícolas provenientes de áreas desmatadas e as taxas de carbono (CBAN).

 

A crescente perda de importância do setor industrial, em termos de PIB, (que chegou a ser 28% do PIB e que agora, na indústria de transformação, pouco passa de 10%) fez cair o nível de investimento interno e as importações se reduziram significativamente (11%). A participação de produtos manufaturados brasileiros no mercado internacional está pouco acima de 0,5%).

 

Vulnerabilidade adicional da área externa é a ausência de um instrumento de financiamento das exportações. Como todos os principais países, urge a criação de um Eximbank para apoiar uma politica de ampliação dos mercados na América Latina e na África, inclusive com a criação de cadeias regionais de produção de valor e com o necessário respaldo para os produtos da indústria de Defesa.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                  

 

O governo divulgou as linhas gerais de um programa de política industrial para fortalecer o setor e torná-lo mais competitivo no mercado externo. Com metas até 2033, o plano dá grande ênfase ao papel do governo, como estão fazendo os EUA e países europeus. Subsídios e conteúdo local aparecem ao lado de incentivos, linhas de crédito e compras governamentais em seis setores, entre os quais saúde, defesa, infraestrutura, saneamento, mobilidade. Transformação digital da indústria, bioeconomia, descarbonização e transição energética são prioridades para a modernização do setor.

 

Com maior valor agregado, o aumento das exportações dos produtos industriais reduziria a dependência da economia do setor das commodities, agrícolas, minerais e energéticas. Dado o potencial de crescimento do comércio exterior em função do dinamismo do agronegócio e da recuperação gradual da competitividade industrial, caso as vulnerabilidades sejam reduzidas, será possível colocar como meta de US$ 1 trilhão nos próximos 5 anos, com a coordenação entre governo e setor privado.

 

Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comercio Exterior (IRICE) e membro da Academia Paulista de Letras

 

 

 

domingo, 17 de dezembro de 2023

Alberto da Costa e Silva (1931-2023) - Celso Lafer (OESP)

Grande Alberto da Costa e Silva, homenageado por um outro grande.

 

Carmen Lícia

ESPAÇO ABERTO

Celso Lafer

Professor emérito da USP, ex-ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002) e presidente da Fapesp, Celso Lafer escreve mensalmente na seção Espaço Aberto


Alberto da Costa e Silva (1931-2023)

O diplomata alargou os horizontes da política externa brasileira ao elaborar na sua prática e na sua reflexão o papel de uma diplomacia de cultura e de conhecimento

Por Celso Lafer

17/12/2023 | 03h00

 

A perspectiva é um dos componentes organizadores da realidade, indicativa da circunstância do lugar em que estamos e nele nos localizamos para adquirir a mobilidade transformadora da razão e da sensibilidade.

Recordo essa lição de Ortega y Gasset porque ela tem grande pertinência para pensar a política externa como um ponto de vista sobre o funcionamento do mundo e a sua incidência num país. Um país operacionaliza seu ponto de vista no trato oficial com outros países por meio de seu corpo diplomático.

Alberto da Costa e Silva, na sua condição de diplomata na operacionalização deste ponto de vista, foi um paradigma de tato, inteligência e zelo, que o tornaram um dos grandes quadros do Itamaraty.

Alberto observou que “o diplomata, como o poeta, trabalha com as palavras”. No seu caso, verificou-se uma dialética de fecunda complementaridade entre as duas palavras, pois a sua experiência diplomática alentou, sem cisões, a criatividade da sua grande obra de intelectual. Por isso, integrou com alta envergadura a Academia Brasileira de Letras.

Alberto organizou o volume O Itamaraty na Cultura Brasileira, publicado em 2001 na minha gestão no Ministério das Relações Exteriores. Como ele diz na apresentação do volume, na prática do ofício o diplomata “é o que se representa”.

A representação não se circunscreve à articulação e à negociação de interesses. Tem um componente de exprimir o potencial da vis atractiva do que um país pode significar para os demais numa dada conjuntura histórica. Por isso, um diplomata deve conhecer bem o seu país para poder bem representá-lo. Cabe, também, a um diplomata promover relações amistosas com o país no qual está acreditado e, assim, na medida do possível, transformar fronteiras-separação em fronteiras-cooperação.

O tato e a inteligência com que Alberto exerceu o ofício a que se dedicou acabaram sendo poderoso estímulo para a criatividade de sua obra de grande intelectual. Adensou, para o benefício de todos, o seu entendimento do nosso país. Alargou os horizontes da política externa brasileira ao elaborar na sua prática e na sua reflexão o papel de uma diplomacia de cultura e de conhecimento.

A dedicação à África foi um tema recorrente do seu percurso de diplomata.

Da experiência de embaixador na Nigéria e no Benin, não só guardou, como dizia, “gratidão enternecida”. Foi um estímulo para aprofundar o seu interesse pela África e a sua percepção de que era necessário conhecer os africanos para melhor entender o Brasil, nas palavras da historiadora Marina de Mello e Souza.

Do que ele chamou “o vício da África” resultou uma excepcional obra de historiador que descortinou com rigor e paixão a história da África, a África no Brasil, o Brasil na África e a dinâmica do circuito da escravidão. Alberto, com o impacto de sua obra, trouxe a África como campo próprio de estudo em nosso país.

A obra de Alberto abre a nossa sensibilidade às memórias provenientes da África, que se somam, como ele diz, a outros enredos da vida brasileira – aos europeus que sempre estiveram nos currículos de nossas escolas e aos ameríndios que nelas deveriam estar.

Alberto dominava igualmente o papel do enredo europeu na vida brasileira.

“Temos a Europa dentro de nós.” É nossa herança, mas, como ele diz, “somos livres para escolher dela o que se ajusta à nossa geografia e o que responde à nossa intuição de destino”.

Serviu em Portugal, país que “de certa forma e ao seu jeito inventou para a Europa os oceanos”. A sua diplomacia de cultura intensificou e ampliou o diálogo Portugal-Brasil. Nesta empreitada, esclareceu com larga visada as características da herança e da presença de Portugal no Brasil e do significado dos fluxos migratórios lusitanos para a construção da múltipla identidade do nosso país. Soube destacar a relevância do idioma comum e do papel da Língua Portuguesa em Portugal e no Brasil, que nos singulariza e aproxima.

Alargou este horizonte para alcançar cinco países africanos que vivem as realidades das suas especificidades para descortinar o potencial de concertação diplomático-cultural que amplia, com um toque próprio, o espaço do Brasil e de Portugal no mundo.

As limitações de espaço não me permitem aflorar a amplitude dos caminhos intelectuais de Alberto. Não posso, no entanto, finalizar sem realçar que as suas memórias são um dos pontos mais altos da memorialística brasileira que de maneira discreta revela a sua estatura humana.

Espelho do Príncipe, cujo subtítulo é ficções da memória, não é propriamente uma autobiografia. Refaz liricamente as vivas lembranças do seu passado de criança. É, como o qualificou Da. Gilda de Mello e Souza, “um solilóquio da infância” que ela toma como um ritual de passagem, uma travessia da infância à idade adulta na qual Alberto, com pequenos toques, de maneira única, vai “impondo uma visão nova das coisas, da sensibilidade da relação com as pessoas, do escoar do tempo”.

Corresponde ao que disse na abertura de seu poema Hoje: gaiola sem paisagem: “Nada quis ser, senão menino. Por dentro e por fora, menino”.

*

PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992; 2001-2002)

 

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Guerra Israel e Hamas tem bem mais de dois lados Thomas Friedman (OESP)

 Guerra Israel e Hamas tem bem mais de dois lados 

Thomas Friedman 

O Estado de S. Paulo, 24/11/2023

Relações de palestinos e israelenses é complexa e vai além de extremismos de ambos os lados; veja histórias de coexistência após o 7 de outubro 


 THE NEW YORK TIMES – Confesso que, enquanto observador de longa data do conflito árabe-israelense, eu evito agressivamente tanto os ativistas “Do rio até o mar” da esquerda pró-palestinos quanto os similarmente fanáticos partidários da extrema direita sionista que defendem a “Grande Israel” — e não apenas porque considero abomináveis suas visões exclusivistas para o futuro, mas também porque o repórter dentro de mim percebe sua cegueira para as complexidades do presente. Eles não pensam na mãe judia que me contou em Jerusalém de um único fôlego que havia acabado de conseguir uma licença para portar armas de fogo para proteger seus filhos do Hamas; e então como ela confiava no professor palestino-árabe de seus filhos, que levou as crianças para o abrigo antibombas da escola durante um ataque aéreo recente do Hamas.

 Eles não pensam em Alaa Amara, o comerciante árabe-israelense de Taibe que doou 50 bicicletas de sua loja para crianças judias que sobreviveram ao ataque do Hamas contra suas comunidades fronteiriças, em 7 de outubro, teve seu comércio incendiado dias depois aparentemente por jovens árabes-israelenses nacionalistas linha-dura e viu uma campanha de crowdfunding organizada em hebraico e inglês levantar mais de US$ 200 mil para ajudá-lo a reconstruir aquela mesma loja dias depois. Ao longo dos últimos 50 anos, eu vi palestinos e israelenses fazerem coisas terríveis uns aos outros. Mas este episódio que começou com o ataque selvagem do Hamas contra israelenses, incluindo mulheres, crianças pequenas e soldados, em comunidades na região vizinha à fronteira de Gaza e a retaliação israelense contra os combatentes do Hamas com base em Gaza que também matou, feriu e deslocou tantos milhares de civis palestinos — de recém-nascidos a idosos — é certamente o pior desde os tempos do Plano de Partilha da Palestina proposto pela ONU em 1947. Mas defensores de todos os lados que leem esta coluna sabem que eu não estou aqui para anotar o placar. Meu foco sempre foi encontrar uma saída para que esse show de horror olho por olho, dente por dente acabe antes que todos fiquem cegos e desdentados. 

 Com esse objetivo, eu gastei bastante tempo da minha viagem an Israel e Cisjordânia este mês observando e investigando as verdadeiras interações cotidianas entre árabes e judeus israelenses. Essas experiências são sempre complexas, certas vezes surpreendentes, ocasionalmente deprimentes e, com mais frequência do que alguém possa pensar, inspiradoras. Porque revelam sementes de coexistência espalhadas por todo lado e suficientes para que ainda possamos sonhar o sonho impossível: que algum dia possa haver uma solução de dois Estados para os israelenses e os palestinos que vivem entre o Mar Mediterrâneo e o Rio Jordão. 

 Portanto, nesta semana da Ação de Graças, eu lhes peço para reservar alguns instantes aqui comigo, para refletirmos sobre essas pessoas e alguns atos extraordinários de resgate que elas praticaram em 7 de outubro — que lhes darão mais fé na humanidade que as manchetes em torno desta história jamais sugeririam. Para colocar de outra maneira, um amigo certa vez descreveu minha visão de mundo como um cruzamento entre Thomas Hobbes e Walter Mondale. Por vários dias durante a minha viagem, eu permiti ao Mondale dentro de mim perseguir lampejos de esperança irradiando na escuridão. Esse processo começou assim que cheguei em Tel-Aviv, quando me sentei para conversar com Mansour Abbas, provavelmente o líder político israelense mais corajoso da atualidade. Abbas é um árabe-palestino e cidadão de Israel que calha de ser muçulmano e membro do Parlamento israelense, onde ele lidera o importante partido Lista Árabe Unida. 

A voz de Abbas é ainda mais vital neste momento porque ele não respondeu ao terrorismo do Hamas com silêncio. Abbas entende que, mesmo que seja correto ultrajar-se com a dor que Israel inflige nos civis de Gaza, reservar toda a nossa indignação para a dor de Gaza cria suspeições entre judeus de Israel e de todo o mundo, que notam quando nenhuma palavra é pronunciada a respeito das atrocidades do Hamas que desencadearam esta guerra. A primeira coisa que Abbas me disse a respeito do massacre do Hamas foi: “Ninguém pode aceitar o que aconteceu naquele dia. E nós não podemos condenar este ato e dizer ‘mas’ — esta palavra, ‘mas’, tornou-se imoral.” (Pesquisas recentes mostram uma condenação esmagadora da comunidade árabe-israelense ao ataque do Hamas.) 

 Abbas percebe as complexidades experimentadas por aquela mãe judia de Jerusalém que nunca perdeu a confiança no professor árabe-israelense de seus filhos e aquele dono de loja de bicicletas que imediatamente estendeu a mão para aliviar a dor de crianças judias que não conhecia. Ao mesmo tempo, contudo, Abbas falou a respeito da dor excruciante que árabes-palestinos e beduínos israelenses sentem ao ver parentes seus castigados e mortos em Gaza. “Uma das coisas mais difíceis hoje é ser árabe-israelense”, disse-me Abbas. “O árabe-israelense sente a dor duas vezes — uma como árabe, outra como israelense.” Há uma peculiaridade nessa vizinhança: se a gente olha somente para um ou outro grupo através de um microscópio, dá vontade de chorar — o massacre brutal de judeus, a maneira terrível que os colonos supremacistas judeus tratam os palestinos; a lista é infinita. Mas se olhamos para essas histórias através de um caleidoscópio, observando a complexidade de suas interações, é possível ver a esperança. 

Se você quiser noticiar de maneira correta a realidade de israelenses e palestinos, sempre leve um caleidoscópio no bolso. O que me traz às histórias dos árabes beduínos israelenses e o 7 de Outubro. Cerca de uma semana após o início da minha viagem, eu recebi um telefonema do meu amigo Avrum Burg, ex-presidente da Knesset israelense, cujo avô era rabino-chefe de Hebron em 1929. Ele me contou que seu amigo Talab el-Sana — um árabe beduíno israelense que serviu com ele na Knesset e deu o voto de Minerva que formou a maioria que permitiu a Yitzhak Rabin fazer o acordo de paz de Oslo — queria me levar para conhecer alguns “beduínos virtuosos”; cidadãos de Israel de língua árabe, muçulmanos, mas fluentes em hebraico, que tinham desempenhado papéis heróicos salvando judeus do ataque do Hamas. Se você quiser noticiar de maneira correta a realidade de israelenses e palestinos, sempre leve um caleidoscópio no bolso.

Os beduínos israelenses são uma comunidade nômade que reside principalmente no Deserto do Negev e formam parte da minoria árabe-israelense — 21% da população do país — que se espalham por cidades e vilarejos de Israel. Atualmente aproximadamente 320 mil beduínos vivem em Israel, cerca de 200 mil em comunidades reorganizadas pelo governo e outros 120 mil em favelas improvisadas e não reconhecidas. Muitos beduínos serviram ao Exército israelense, com frequência como rastreadores, em razão de seu profundo conhecimento da geografia decorrente de gerações vagueando pelo deserto. Bem, acontece que alguns beduínos israelenses que viviam próximo da fronteira ou trabalhavam em comunidades da região atacada pelo Hamas ajudaram a resgatar judeus; alguns beduínos foram sequestrados pelo Hamas junto com judeus e outros foram assassinados pelo Hamas porque o grupo terrorista optou por tratar todos que vivessem ou trabalhassem nos kibutzim israelenses e falassem hebraico como “judeus” — merecendo ser mortos.

 E depois de 7 de outubro, alguns desses beduínos que salvaram judeus israelenses passaram a notar olhares hostis e insultos em voz baixa de judeus israelenses assumindo automaticamente que eles seriam simpatizantes do Hamas. E todo esse tempo vítimas judias e beduínas do Hamas foram tratadas juntas em hospitais israelenses, onde quase a metade dos novos médicos é hoje árabe-israelense ou drusa, assim como 24% dos enfermeiros e aproximadamente 50% dos farmacêuticos. Sim, um árabe beduíno israelense pode salvar um judeu israelense na fronteira de Gaza de manhã, ser discriminado por judeus nas ruas de Beersheba de tarde e gabar-se por sua filha — médica formada numa faculdade israelense — ter passado a noite em claro cuidando de pacientes judeus e árabes no Hospital Hadassah. É complicado. 

 Conserto de abrigos El-Sana e Burg levaram-me a dois vilarejos beduínos para me apresentar rapazes que tinham salvado judeus. Acompanhou-nos o urbanista israelense Ran Wolf, especialista na construção de espaços compartilhados — centros de inovação, centros culturais e mercados — para uso de judeus e árabes palestinos israelenses. Nós paramos na residência de Wolf em Tel-Aviv, no caminho, para pegar umas garrafas de água, onde ele me contou a seguinte história: Após os foguetes do Hamas começarem a cair em Tel-Aviv em 7 de outubro, Wolf telefonou para o empreiteiro com que trabalha regularmente, Emad, um árabe-israelense de Jaffa, para lhe dizer que a porta do abrigo antibombas no porão de sua casa não fechava. 

“Esse problema estava acontecendo em muitos abrigos, e depois de 7 de outubro todos quiseram consertar”, afirmou Wolf. E quando perceberam que um pedreiro estava na vizinhança, seus vizinhos também lhe pediram para consertar suas portas. Emad é um bom amigo e se recusou a aceitar qualquer dinheiro por dois dias de trabalho”, afirmou Wolf. Tenha em mente, acrescentou ele, que Emad vive em Jaffa, ao sul de Tel-Aviv. Na guerra de 1948, o pai de Emad ficou em Jaffa e seu tio fugiu para Khan Younis, no sul da Faixa de Gaza. “Então ele foi criado em Israel, mas metade da sua família vive hoje em Gaza”, afirmou Wolf. “E viu um míssil do Hamas cair a 200 metros da sua casa em Jaffa outro dia”, acrescentou. 

 Usem o caleidoscópio: hoje, refugiados palestinos de Jaffa que vivem sob o governo do Hamas em Gaza disparam foguetes contra palestinos de Jaffa que são cidadãos israelenses; e um deles consertou os abrigos antifoguetes de seus amigos em Tel-Aviv — de graça. Quando nós chegamos a Rahat, a maior cidade beduína em Israel, no Deserto do Negev, El-Sana, sentado no banco de trás do carro, conseguiu contar uma história ainda mais marcante. El-Sana contou que algumas das primeiras vítimas israelenses dos ataques de foguete do Hamas em 7 de outubro foram beduínos, muitos deles moradores de povoados não reconhecidos no Negev que não aparecem em mapas digitais. (O governo israelense não acompanhou seu crescimento populacional da mesma forma que na maioria das cidades judaicas.) 

 Essas localidades não têm abrigos antibombas públicos nem sirenes de alerta para proteger seus moradores quando os foguetes do Hamas começam a cair, mas — e é impossível inventar isso — El-Sana explicou que, quando o Hamas lança um foguete, o sistema antimísseis israelense Domo de Ferro traça imediatamente sua trajetória para determinar se o projétil de Gaza aterrissará num espaço povoado em Israel e matará pessoas ou em um lugar vazio ou no mar. Se o foguete rumar para algum ponto despovoado ou para o mar, o Domo de Ferro não desperdiça seus foguetes caros para interceptar projéteis baratos do Hamas. Seis beduínos foram mortos por um foguete do Hamas que caiu no vilarejo de Al Bat — entre eles, dois irmãos, de 11 e 12 anos — porque o povoado beduíno não figura em nenhum mapa oficial de Israel presente na base de dados do Domo de Ferro, explicou El-Sana. 

 Enquanto isso, outros oito beduínos que trabalhavam em comunidades judaicas próximas a Gaza foram assassinados pelo Hamas e pelo menos sete beduínos, todos cidadãos israelenses, foram, acredita-se, sequestrados e levados para Gaza. E dias depois alguns desses mesmos beduínos não hesitaram em ajudar a resgatar judeus israelenses juntamente com seus primos. Resgate de judeus El-Sana tinha me marcado uma entrevista no vilarejo de Al Zayada, um assentamento beduíno não reconhecido no Deserto do Negev, no lar não reconhecido de Youssef Ziadna, de 47 anos, um motorista de ônibus beduíno reconhecido por resgatar judeus em 7 de outubro.

 Ziadna contou que na sexta-feira, 6 de outubro, foi contratado para levar um grupo de jovens judeus para o festival ao ar livre de música trance Supernova Sukkot Gathering, em celebração ao feriado de Sucot, adjacente ao Kibutz Re’im, que é adjacente à fronteira com Gaza. “Quando os deixei, nós combinamos que eu voltaria no sábado às 18h para pegá-los”, disse-me Ziadna. Mas no início da manhã do sábado, “eu recebi um telefonema de um deles, Amit”, que lhe pedia para ir buscá-los imediatamente, afirmou. “Eles estavam sendo atacados, ouvia-se tiros por todo lado.” Ziadna disse que rumou imediatamente para a cena e, conforme se aproximou, viu “uma barragem de foguetes e muitos carros na direção contrária — escapando — piscando os faróis para que eu fizesse a volta. Algumas pessoas que tinham parado e saído do carro disseram que havia terroristas em Be’eri, então ‘vá embora daqui’. Eu saí do meu carro e me escondi na beira da estrada. 

Toda vez que eu levantava a cabeça atiravam em mim. Mas eu tinha prometido buscar essas pessoas, e estava a um quilômetro de distância”. Ziadna afirmou que quando o ritmo dos disparos diminuiu um pouco, ele conseguiu voltar para seu miniônibus e usar o celular para se encontrar Amit e seus amigos — e qualquer outra pessoa que ele pudesse resgatar. Em vez de voltar pela estrada, onde “eu sabia que eles nos matariam”, afirmou Ziadna, “eu fui pelos campos”. Como beduíno, Ziadna conhece intimamente o terreno que acabou salvando a todos.

 Ele conseguiu encontrar um atalho em meio aos campos e evitou a estrada principal, onde os terroristas do Hamas emboscavam quem fugia do festival musical. Muitos outros carros em fuga também deixaram a estrada principal e seguiram o miniônibus de Ziadna pelos campos, afirmou ele. O motorista contou para o Times of Israel, que publicou seu perfil, que levou cerca de 30 pessoas em seu veículo, cuja lotação máxima é de 14 passageiros. Ziadna disse que, alguns dias depois, recebeu um telefonema de um número que não reconheceu, mas que acreditou ser de Gaza, e uma voz lhe disse em árabe: “Você é Youssef Ziadna? Você salvou vidas de judeus? Nós vamos matar você”. Ele relatou a ligação para a polícia israelense. 

Esta é apenas uma das razões, afirmou o motorista, para ele ainda precisar de telefonemas diários com um psicólogo para tentar superar o trauma de 7 de outubro. Outro familiar em nosso encontro, Daham Ziadna, de 35 anos, afirmou que teve quatro parentes sequestrados pelo Hamas; um certamente foi morto e outros três ainda estão desaparecidos. Dois foram vistos pela última vez deitados no chão, num vídeo publicado pelo Hamas no TikTok, com dois combatentes armados ao lado. Para o Hamas, disse Daham, “todos que vivem em Israel são judeus”. Daham disse-me que alguns dias antes tinha ido ao banco sacar dinheiro no caixa eletrônico e cruzou dois judeus israelenses na calçada. “Um tinha sotaque russo. 

Quando eles se aproximaram, o russo falou, ‘Eis aqui outro árabe’. Eu lhe disse: ‘Esses “árabes” de que você fala estavam na fronteira de Gaza em 7 de outubro lutando pelo o Estado israelense — defendendo judeus e árabes. E são pessoas como você que destroem o país, destilando veneno’.” Árabes-israelenses vivem um cotidiano difícil, acrescentou ele: “Muitos judeus olham para nós como se todos fôssemos do Hamas, e quem apoia o Hamas olha para nós como se fôssemos judeus”. A alguns quilômetros de lá, em Rahat, El-Sana me apresentou para a família Al-Qrinawi, cujos integrantes tinham sua própria história marcante para contar. O porta-voz da família, Ismail, relatou-me o drama sentado com seus primos diante de um prato gigante de arroz, frango e grão de bico. Na manhã de 7 de outubro, conforme a notícia do ataque do Hamas se espalhou, eles souberam pelo grupo de WhatsApp da família que três primos que trabalhavam no refeitório do Kibutz Be’eri tinham sido sequestrados. 

Por volta das 10h, um familiar recebeu uma ligação de um número desconhecido, do telefone de uma mulher israelense chamada Aya Medan. Ela tinha encontrado um de seus primos desaparecidos, Hisham, e ambos estavam se escondendo juntos dos terroristas do Hamas no mesmo campo desértico próximo a Be’eri. Hisham usou o celular dela para pedir ajudar ao seu clã beduíno. Os outros dois primos tinham fugido em outra direção. Seu tio, o patriarca do clã, ordenou que quatro sobrinhos fossem resgatar os parentes no Land Cruiser da família, já que normalmente leva 30 minutos para chegar à região onde eles estavam — mas não naquele dia. 

Eles pegaram duas pistolas e saíram a toda. Quando nos aproximamos, descobrimos que todas as estradas estavam fechadas”, disse-me Ismail. “Então nós fomos pelos campos e atravessamos um vale profundo para conseguir desviar. Nosso carro quase virou.” Primeiro, “encontramos pessoas fugindo da festa”, afirmou ele. “Nós emprestamos nossos telefones para elas ligarem para os pais e garantimos que entrassem em outros carros, conduzidos por israelenses. Nós conseguimos resgatar 30 ou 40 pessoas da festa. Mas eu fiquei o tempo todo conversando com Aya, tentando localizar onde ela se escondia com Hisham”. 

 Estava demorando demais. Depois de duas horas e meia desviando de tiros e foguetes do Hamas, afirmou Ismail, eles conseguiram encontrar Aya e Hisham escondidos atrás de arbustos, bem próximo do Kibutz Be’eri. Eles tinham mandado uma foto de celular da área em que estavam se escondendo para facilitar sua localização. Minutos depois, relatou Aya ao Times of Israel, Hisham a tocou e disse, “Aya, eles estão aqui, eles estão aqui sim”. Os primos abriram as portas do carro, Aya e Hisham entraram, e o clã beduíno valeu-se novamente de suas habilidades off-road para levá-los à segurança. Ou quase. 

 O momento mais assustador do dia, disse-me Ismail, ocorreu quando eles voltaram para a estrada principal. Eles foram parados em um posto de controle improvisado pelo Exército israelense, por soldados assustados, incapazes de distinguir à distância entre amigo e algoz. “Os soldados israelenses cercaram nosso carro, todos apontando armas contra nós. Eu gritei: ‘Nós somos cidadãos de Israel! Não atirem!’.” Aya disse ao Times of Israel que um soldado israelense lhe perguntou se ela estava sendo sequestrada. “Não, eu sou de Be’eri, e eles vieram de Rahat nos resgatar”, disse ela. 

 Beduínos salvando judeus israelenses do Hamas sendo salvos por uma mulher judia de serem baleados pelo Exército israelense depois de resgatá-la… caleidoscópico. Enquanto eu entrevistava o clã Al-Qrinawi, a família me apresentou Shir Nosatzki, uma das cofundadoras do grupo israelense Você Tem Olhado para o Horizonte Ultimamente?, que promove parcerias entre judeus e árabes. Imediatamente após saber de seu resgate, seu marido, Regev Contes, gravou um vídeo de 7 minutos em hebraico para contar a história da equipe beduína de resgate para os israelenses. Segundo o relado, o vídeo teve centenas de milhares de visualizações em Israel. Eu perguntei a Nosatzki por que eles gravaram o vídeo.

 “Para mostrar que o 7 de Outubro não foi uma guerra entre judeus e árabes, mas entre a luz e a escuridão”, afirmou ela. Antes de voltarmos para Tel-Aviv, El-Sana insistiu que fôssemos ao seu restaurante de kebab favorito em Rahat. Sentados à mesa: um beduíno israelense que tinha servido na Knesset, o neto do ex-rabino-chefe de Hebron e um colunista judeu do New York Times, de Minnesota, que trabalhou como correspondente em Beirute e Jerusalém nos anos 70 e 80 — compartilhando reflexões em uma mistura maluca de hebraico, árabe e inglês. Entre os espetinhos de cordeiro e os pratos de hummus, nós chegamos à mesma conclusão: mesmo neste momento sombrio, nós tínhamos acabado de testemunhar algo enormemente importante — “sementes de coexistência na morte e na vida”, conforme colocou Burg, sementes que o Hamas se dedica a destruir. Essas sementes, acrescentou El-Sana, “deveriam nos dar esperança de que conseguiremos construir um futuro em comum com base em valores comuns que atravessam as fronteiras da etnicidade entre judeus e árabes”. Eles estão certos. 

Essas sementes, por menores que possam ser, nunca foram mais importantes do que neste momento. Por quê? Porque esta guerra Israel-Hamas, acabe quando acabar, já foi tão traumática para todos que desencadeará o maior debate desde o plano de partilha da ONU, de 1947, a respeito da forma que as relações e as fronteiras entre israelenses e palestinos devem se constituir. Eu tenho certeza disso — porque menos que isso significará guerra permanente. Eu já posso lhes dizer que haverá muitas vozes destrutivas nessa discussão: apologistas do Hamas, palestinos e árabes, que têm negado ou minimizado as atrocidades do grupo; colonos judeus supremacistas, ávidos para expandir sua presença não apenas na Cisjordânia, mas também, loucamente, até Gaza, e que não mostram nenhuma preocupação com o sofrimento devastador dos civis palestinos mortos na retaliação israelense; Binyamin Netanyahu, que sacrificará o futuro de Israel para permanecer no cargo e ficar fora da cadeia; e os idiotas úteis do Hamas no Ocidente, principalmente nas universidades, onde estudantes denunciam Israel e todo seu território como um empreendimento colonial enquanto entoam, “Do rio até o mar, a Palestina será livre”.

 (Poupem-me da explicação segundo a qual esta frase seria um apelo à coexistência: eu estava em Beirute nos anos 70 quando ela se tornou popular e posso lhes assegurar que não se tratava de um chamado por dois Estados para dois povos. E se você tem um mantra que requer 15 minutos de explicação, você precisa de outro mantra.) Com todas essas equipes de demolição esperando para trabalhar, nós precisaremos mais que nunca elevar as vozes autênticas da coexistência — líderes com a integridade desses beduínos israelenses prontos para fazer e dizer o que é certo não apenas quando a coisa não está fácil, mas também diante do perigo. O que me traz de volta à Lista Árabe Unida, de Mansour Abbas. 

 Vozes de coexistência Seu partido, falando amplamente, vem do mesmo braço da Irmandade Muçulmana na política palestina que o Hamas — mas em vez da violência e exclusão pregadas pelo Hamas, Abbas defende não violência e inclusão. Abbas foi um intermediador de poder importante para ajudar o ex-primeiro-ministro Naftali Bennett e o ex-ministro das Relações Exteriores Yair Lapid a forjar o governo israelense de unidade nacional em 2021. Netanyahu, sempre desagregador, derrubou aquele governo em parte com retóricas antiárabes e anti-islâmicas direcionadas a Abbas. Abbas entende que coexistir significa dizer o que é certo — não apenas quando é difícil politicamente, mas também quando é perigoso. Depois de ver os vídeos do ataque do Hamas, na Knesset, ele declarou à emissora de rádio árabe Al-Nas: “Eu vi um pai com dois filhos entrar no abrigo antibombas ao lado de sua casa, e jogaram uma granada dentro. 

O pai saltou sobre a granada e foi morto, e as duas crianças se feriram, mas sobreviveram. O massacre contraria tudo que acreditamos, nossa religião, nosso Islã, nossa nacionalidade, nossa humanidade”. As ações do Hamas “não representam nossa sociedade árabe, nem nosso povo palestino, nem nossa nação palestina”. Durante nossa entrevista, Abbas disse-me que nós precisamos de “uma nova retórica política” e não podemos ser atraídos para as jogadas do passado. “Essa narrativa ‘do rio ao mar’ não ajuda”, afirmou ele. “Isso é um erro. Se querem ajudar os palestinos, discutam uma solução de dois Estados e paz e segurança para todas as pessoas.” É por este motivo, acrescentou Abbas, que “eu estou trabalhando em um plano que começa com o fim da guerra atual e termina com a criação de um Estado palestino contíguo an Israel”. Abbas conhece bem as dificuldades do caminho adiante. Eu também não tenho ilusões. 

E concluo minha recente jornada com duas lições. A primeira é que esta guerra em Gaza está longe de terminar. Israel acredita que não haverá paz em Gaza enquanto o Hamas estiver no poder por lá. Mas a segunda é que, da mesma forma que a Guerra do Yom Kippur produziu o alvorecer do tratado de Camp David e da mesma forma que a desumanidade da Primeira Intifada e da reação israelense levou aos Acordos de Oslo, dos horrores do 7 de Outubro algum dia surgirá outra tentativa de construir dois Estados para estes dois povos autóctones. De outra forma, esse canto do mundo se tornará inabitável para qualquer pessoa em sã consciência. Hoje há gente demais com armas poderosas demais. E quando esse dia chegar, será necessário um construtor de pontes como Mansour Abbas — que entende a verdadeira natureza caleidoscópica dessa terra e a conexão autêntica de ambas as comunidades a ela — para germinar as sementes da coexistência que ainda estão por lá, apesar de enterradas mais profundamente que jamais estiveram. Abbas, Youssef Ziadna, a família Al-Qrinawi, Aya Medan, meus amigos Avrum, Talab e Wolf serão os resgatistas. 

TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO