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terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Lei da selva no comércio internacional - Rubens Barbosa (O Estado de S.Paulo)

 Opinião:

Lei da selva no comércio internacional

Governo brasileiro deveria promover estudos para definir legislação que defenda os interesses do agro e da indústria
Por Rubens Barbosa
O Estado de S.Paulo, 11/02/2025 | 03h00

O mundo se transformando rapidamente, tanto na economia como na ordem política. O livre comércio está sendo substituído pelo nacionalismo, pelo protecionismo e por medidas que enfraquecem a globalização. O comércio exterior já está sofrendo fortes impactos.
Considerações de poder, com base na segurança nacional, passaram a influir na aplicação de restrições comerciais como arma política, como as sanções e restrições. Medidas americanas (tarifas, chips, nuvem) e chinesas (área de mineração). O início do governo Trump nos EUA é uma clara indicação de que poderá haver uma escalada nessas medidas restritivas levando a uma guerra comercial envolvendo os EUA, a China e a Europa, com fortes consequências para os países em desenvolvimento, como o Brasil.
As medidas tomadas agora pelos EUA foram precedidas por restrições unilaterais adotadas pela União Europeia (UE), no contexto da política de meio ambiente (Green Deal), barrando a entrada de produtos agrícolas oriundos de áreas desmatadas e industriais que não possam compensar suas emissões de gás de efeito estufa.
A UE, antecipando-se a eventuais políticas restritivas contra os países-membros, se adiantou e produziu legislação, já em vigor, para defender os produtos da região, a chamada lei contra medidas restritivas comerciais e de investimento (lei anticoerção – Regulamento 2.675 do Parlamento Europeu e do Conselho, 22/11/2023).
A lei anticoerção europeia determina que a restrição econômica existe quando um país não europeu aplica ou ameaça aplicar medidas afetando o comércio ou o investimento a fim de evitar ou obter a cessação, modificação ou adoção de uma medida por parte da UE ou de algum Estado-membro, assim interferindo na decisão legítima e soberana da UE ou de um Estado- membro.
A comissão preliminarmente deverá explorar com o país que impõe a coerção as opções negociais baseadas na boa-fé para a suspensão das medidas ou obter reparação pelo dano.
As medidas poderão ser tomadas pela UE quando três condições estejam presentes: os esforços de negociação não produzam resultados depois de um período razoável de tempo (as medidas não foram suspensas nem houve compensação pelo dano); as medidas de reposta da UE são necessárias para proteger os interesses europeus e os direitos em algum caso particular; as medidas de resposta são de interesse na UE.
Se os entendimentos e negociações com a parte agressora não conseguirem eliminar a medida ou a ameaça de medida restritiva, será possível aplicar, na defesa do interesse europeu, determinadas medidas. Essas medidas, que terão de ser equivalentes na natureza e na quantidade, poderão incluir: imposição de tarifas novas ou aumentadas; restrições de exportação ou importação, incluindo controles de exportação; bens ou medidas internas aplicadas a bens; bens ou serviços de compras governamentais ou licitação de bens ou serviços; medidas afetando comércio de serviços; medidas afetando o acesso de investimento direto na UE; restrições sobre proteção de direitos de propriedade intelectual e sua exploração comercial; restrições no sistema bancário, seguro, acesso ao mercado de capital europeu e outras atividades do serviço financeiro.
No caso do Brasil, não há legislação que permita a tomada de medidas contrárias à imposição de sanções, medidas restritivas ou tarifas unilaterais, em desrespeito às regras negociadas internacionalmente. O Brasil sempre defendeu que os direitos afetados na área comercial deveriam ser defendidos multilateralmente na Organização Mundial de Comércio (OMC). Nos últimos anos, a OMC, como a instituição que julga diferenças comerciais entre países, foi esvaziada pela não aprovação pelos EUA de juízes para o órgão de apelação do mecanismo de solução de controvérsias, e com isso perdeu a força e a influência que beneficiava os países em desenvolvimento, sem outro recurso para contrapor às medidas unilaterais sem base legal. Para superar essa dificuldade, em 2022, a OMC aprovou decisão que autoriza os países que aderiram (inclusive o Brasil) a tomar medidas de retaliação após decisão de primeira instância.
A lei da selva no comércio internacional, nos últimos anos, ampliada com as novas políticas do governo Trump, ameaça todos os países com medidas restritivas e a imposição de tarifas unilaterais. Nesse contexto, o governo brasileiro deveria promover estudos para definir legislação que defenda os interesses do agro e da indústria, com a aprovação de contramedidas que respondam à imposição por outro país de restrições ao comércio exterior brasileiro, sem uma base legal.
A legislação brasileira de defesa comercial tem um caráter defensivo e existe há muitos anos. As novas circunstâncias do cenário internacional e a perspectiva de uma escalada na aplicação de medidas restritivas generalizadas demandam uma legislação adicional, atualizada, para evitar prejuízo aos interesses do governo e do setor privado. A legislação da UE poderia ser adaptada às circunstâncias e características do agro e da indústria nacionais.
Governo e Congresso têm de agir de forma coordenada para analisar e aprovar essa legislação o mais rapidamente possível.

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE), É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/lei-da-selva-no-comercio-internacional/

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

A COP 30 no Brasil - Rubens Barbosa (O Estado de S. Paulo)

 Opinião:  A COP 30 no Brasil

Nunca em seus 500 anos o País esteve no centro de discussões sobre temas globais. Neste momento, o Brasil é voz que terá de ser ouvida

Por Rubens Barbosa

Estadão, 28/01/2025 | 03h00


A conferência anual dos países-membros da Convenção da ONU sobre Mudança de Clima, a ser realizada em Belém, em novembro de 2025, começa a apresentar-se como a mais desafiadora de toda a História.

Na sua trigésima edição, a COP do Brasil, e não da floresta, enfrentará desafios importantes na logística do encontro, na geopolítica global e nas negociações em função dos limitados avanços registrados na reunião da COP-16, sobre biodiversidade, em Cali, na Colômbia, e da COP-29, realizada em Baku, no Azerbaijão, apesar do apoio político manifestado na declaração da cúpula do G-20, recentemente realizada. A COP-30 deverá continuar a tratar dos temas de sua agenda, como o cumprimento do Acordo de Paris, de 2015, e a proteção das florestas e das agendas que saíram dos encontros em Cali e Baku, como financiamento climático, mercado de carbono, transição energética e biodiversidade.

A COP-30 ocorrerá assim em um ambiente preocupante, em que a temperatura do planeta pode estar se aquecendo acima do limite de 1,5ºC previsto no Acordo de Paris e as emissões de gás carbono, crescendo na contramão dos compromissos assumidos. Em termos geopolíticos, as dificuldades para a aprovação de financiamento para os países mais vulneráveis aumentaram, e o negacionismo ambiental atingiu o seu máximo com as políticas ambientais de Donald Trump.

Difícil imaginar o que poderá avançar da agenda que incluiria (1) acelerar a descarbonização com compromissos mais ousados para a redução das emissões de gás de efeito estufa até 2030, com o objetivo de limitar o aquecimento global a 1,5ºC; (2) apoiar políticas de adaptação para mitigar os impactos das mudanças climáticas, especialmente em países mais vulneráveis; (3) garantir que o financiamento necessário para os países em desenvolvimento esteja disponível; (4) implementar o artigo 6 do Acordo de Paris com a regulamentação do mercado de carbono para incentivar o investimento em tecnologias verdes e soluções climáticas; e (5) proteger a Amazônia e os biomas tropicais.

Do ponto de vista do Brasil, as questões relacionadas com o financiamento climático, transição energética justa, regulamentação do mercado internacional de carbono, preservação da Amazônia e cooperação entre o Sul Global certamente estarão entre as prioridades. Será o momento de insistir na observância das circunstâncias locais em temas como agricultura tropical e combustíveis fósseis na matriz energética.

Muitas serão as reuniões e discussões preparatórias para a defesa dos interesses brasileiros no encontro de 2025. Em algumas áreas, em função de disputas internas, ainda não estão claras as posições nacionais. Depois de meses de discussão, o embaixador André Corrêa do Lago foi designado como presidente da COP no Brasil e terá a responsabilidade de coordenar as reuniões e iniciativas durante o evento. As incertezas sobre as posições brasileiras continuam. Para definir as prioridades que o Brasil levará para a conferência, será necessário concluir as discussões internas. Será necessário um detalhamento de como se alcançar as metas mais ambiciosas (banda de 59% a 65%) para a redução de emissão de gás de efeito estufa, de investimentos na transição energética, além do Plano do Clima, a Estratégia Nacional de Biodiversidade, o Pacto pela Transição Ecológica, a Estratégia Nacional de Adaptação e Mitigação. Na questão do desmatamento da Amazônia, a redução anunciada para 2024 é significativa, mas as queimadas foram um retrocesso. Os ilícitos na Amazônia (desflorestamento, queimadas e garimpo ilegal) continuam e estão se agravando, sem que o Estado em seus três níveis apresente um plano consistente para assegurar seu poder em toda a região contra o crime organizado. A questão da pesquisa e exploração na Margem Equatorial terá de ser decidida.

O grande desafio para os trabalhos preparatórios e as discussões durante a realização da reunião de Belém está na saída dos EUA do Acordo de Paris e na baixa prioridade de Trump para as questões ambientais e mudança do clima. Donald Trump dificilmente comparecerá ao encontro no Brasil. A participação dos EUA poderá ocorrer com a presença de alguns Estados e instituições ambientais. As posições do presidente Javier Milei, da Argentina, poderão também dificultar a formação de consensos regionais. O risco de esvaziamento político da COP-30 é real.

Nunca em seus 500 anos o Brasil esteve no centro de discussões sobre temas globais. Neste momento, o Brasil é voz que terá de ser ouvida em questões ambientais, de transição energética e de mudança de clima.

A partir dos trabalhos preparatórios da COP-30, com os EUA pouco interessados, abre-se uma grande oportunidade para o Brasil assumir efetivamente a liderança global nas questões ambientais e de mudança de clima. Para tanto, seria necessária uma imediata e bem realizada coordenação entre governo, iniciativa privada e sociedade civil, de forma que se possa concretizar esse objetivo. Essa coordenação será essencial para a definição dos interesses estratégicos do Brasil na conferência. Se o Brasil não ocupar esse vazio político, certamente a Europa, com seu “Green Deal” e as medidas restritivas já adotadas, tenderá a assumir essa liderança.

O Brasil não pode perder mais essa oportunidade.

 

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE), É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS

 

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/a-cop-30-no-brasil/

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

'Sucesso fiscal e político de Milei na Argentina coloca desafios importantes para o Brasil' - Rubens Barbosa (Estadão)

O Estado de S. Paulo, 7 de janeiro de 2025

https://click.jornal.estadao.com.br/?qs=6b7c71bc9e984005f634baf92e2ce99c9777853655fe5bded7a122c4e92accf694609c61280fe35144195830c82f3a13ede61781c098f1652717f0e3a598006d


 

Admirável mundo novo - Rubens Barbosa (O Estado de S. Paulo)

 Admirável mundo novo

Estão governo e empresas brasileiras conscientes das mudanças e preparados para defender os interesses nacionais neste novo cenário mundial?

 

Opinião:  Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 24/12/2024


No meio de grandes transformações na economia e na ordem internacional, estamos entrando numa nova etapa histórica pela interação de diversos fatores de grande intensidade.

Em primeiro lugar, a supremacia ocidental econômica, financeira e militar dos últimos 200 anos está sendo questionada e, na visão de muitos, está sendo reduzida. O mundo começa a se dividir em um grupo de nações ocidentais (sem definição geográfica) – EUA, Europa, Japão, Austrália e outras – e, de outro, um crescente grupo de nações, liderado pela China, tendo como base o Brics, formado por dez países, com 13 nações convidadas como associadas e mais de uma dezena pedindo para integrá-lo. A influência dos EUA, como a nação mais poderosa do mundo, parece estar em declínio, como se vê na tentativa de conter o conflito no Oriente Médio.

Em segundo lugar, o rápido avanço das tecnologias em várias áreas – inteligência artificial, computação, biotecnologia –, o mais profundo da história da humanidade (maior, talvez, que a invenção da roda, que a revolução industrial e mesmo que a arma nuclear), sobretudo pela possibilidade de a inteligência artificial tomar decisões independentemente da ação humana, com profundas consequências políticas e econômicas globais.

Em terceiro lugar, as mudanças climáticas produzidas pela ação humana estão na raiz de uma crescente crise ecológica, com desastres em todos os continentes (furacões e inundações, queimadas, chuvas e secas) causando destruição e morte, além do crescimento do nível dos oceanos em razão do aquecimento global, ameaçando aumentar o número de refugiados.

Em quarto lugar, as instituições multilaterais criadas depois do fim da guerra, em 1945, para a preservação da paz e da segurança mundiais, não são mais capazes de responder a todos esses desafios por não mais serem representativas da nova geopolítica e da nova geoeconomia global. A Cúpula do Futuro, reunião convocada pelo secretário-geral da ONU, em setembro passado em Nova York, para examinar como poderia ser a governança num mundo multipolar em tempos de grandes mudanças e desafios para a humanidade, terminou esvaziada, sem qualquer perspectiva para indicar caminhos de uma nova governança global. As guerras na Ucrânia e no Oriente Médio em crescente tensão, pela invasão do Líbano e da Síria pelo exército israelense, com a possibilidade de escalada, continuarão a ter impacto na economia e na política global. Caso o conflito se estenda com um eventual ataque de Israel contra o Irã, com o apoio dos EUA, a situação poderá sair do controle, com a possível interferência de potências antiocidentais ao lado do Irã.

Um quinto fator poderia ser acrescentado. Um livro recente – A guerra por Outros Meios (War by Other Means, Harvard Press) – capta as mudanças na formulação e na execução das políticas internas e externas dos países. Um dos aspectos novos examinados é o uso de instrumentos econômicos e comerciais como um meio de alcançar objetivos geopolíticos. A relação entre poder econômico e geopolítica passa a ser fundamental no mundo atual. Nesse sentido, tornam-se elementos básicos a performance macroeconômica do país, a evolução da política econômica internacional e os instrumentos utilizados na busca dos objetivos geopolíticos.

A geoeconomia passou a ser um elemento crítico quando se analisa o papel de cada país neste novo mundo. A geoeconomia focaliza o uso da força por meio de instrumentos econômicos e comerciais para promover e defender os interesses nacionais, para produzir resultados geopolíticos favoráveis e efeitos positivos sobre os objetivos geopolíticos. As restrições à venda de chips para a China, a proibição de compra de roteadores chineses pelos EUA, as medidas protecionistas comerciais da União Europeia, com a desculpa de evitar o desmatamento de florestas, as políticas restritivas minerais da China e o congelamento unilateral de reservas de terceiros países são alguns exemplos da utilização de medidas econômicas como armas, criando verdadeiras guerras por outros meios.

No contexto da geoeconomia, a defesa da segurança nacional passa a ser frequentemente utilizada na ação política nos EUA, na China e em outros países. Utilizado de forma crescente como justificativa de medidas econômicas e comerciais, “o papel da segurança nacional na política e estratégia de comércio e investimento está aumentando em toda parte. Há mudanças na maneira como as pessoas estão abordando a questão da política comercial, a política econômica internacional e isso é verdade nas economias de mercado do mundo todo”, como reconheceu alto funcionário norte-americano. As prioridades econômicas e as novas preocupações com a segurança nacional (que pode incluir tudo) se fundem e tornam superados os conceitos de liberalismo e livre mercado.

Essas são as novas realidades globais. Os países terão de se ajustar para conseguir defender com êxito seus próprios interesses, mas, em primeiro lugar, terão de definir seus objetivos estratégicos, fortalecer os fundamentos de sua economia e ter uma clara visão de seus interesses de médio e longo prazos.

Estão governo e empresas brasileiras conscientes dessas mudanças e preparados para defender os interesses nacionais neste novo cenário?

 

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE), É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS

 

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/admiravel-mundo-novo/

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Admirável mundo novo - Rubens Barbosa (Estadão)

 Opinião:  

Admirável mundo novo

Estão governo e empresas brasileiras conscientes das mudanças e preparados para defender os interesses nacionais neste novo cenário mundial?

 

Por Rubens Barbosa

24/12/2024 | 03h00

No meio de grandes transformações na economia e na ordem internacional, estamos entrando numa nova etapa histórica pela interação de diversos fatores de grande intensidade.

Em primeiro lugar, a supremacia ocidental econômica, financeira e militar dos últimos 200 anos está sendo questionada e, na visão de muitos, está sendo reduzida. O mundo começa a se dividir em um grupo de nações ocidentais (sem definição geográfica) – EUA, Europa, Japão, Austrália e outras – e, de outro, um crescente grupo de nações, liderado pela China, tendo como base o Brics, formado por dez países, com 13 nações convidadas como associadas e mais de uma dezena pedindo para integrá-lo. A influência dos EUA, como a nação mais poderosa do mundo, parece estar em declínio, como se vê na tentativa de conter o conflito no Oriente Médio.

Em segundo lugar, o rápido avanço das tecnologias em várias áreas – inteligência artificial, computação, biotecnologia –, o mais profundo da história da humanidade (maior, talvez, que a invenção da roda, que a revolução industrial e mesmo que a arma nuclear), sobretudo pela possibilidade de a inteligência artificial tomar decisões independentemente da ação humana, com profundas consequências políticas e econômicas globais.

Em terceiro lugar, as mudanças climáticas produzidas pela ação humana estão na raiz de uma crescente crise ecológica, com desastres em todos os continentes (furacões e inundações, queimadas, chuvas e secas) causando destruição e morte, além do crescimento do nível dos oceanos em razão do aquecimento global, ameaçando aumentar o número de refugiados.

Em quarto lugar, as instituições multilaterais criadas depois do fim da guerra, em 1945, para a preservação da paz e da segurança mundiais, não são mais capazes de responder a todos esses desafios por não mais serem representativas da nova geopolítica e da nova geoeconomia global. A Cúpula do Futuro, reunião convocada pelo secretário-geral da ONU, em setembro passado em Nova York, para examinar como poderia ser a governança num mundo multipolar em tempos de grandes mudanças e desafios para a humanidade, terminou esvaziada, sem qualquer perspectiva para indicar caminhos de uma nova governança global. As guerras na Ucrânia e no Oriente Médio em crescente tensão, pela invasão do Líbano e da Síria pelo exército israelense, com a possibilidade de escalada, continuarão a ter impacto na economia e na política global. Caso o conflito se estenda com um eventual ataque de Israel contra o Irã, com o apoio dos EUA, a situação poderá sair do controle, com a possível interferência de potências antiocidentais ao lado do Irã.

Um quinto fator poderia ser acrescentado. Um livro recente – A guerra por Outros Meios (War by Other Means, Harvard Press) – capta as mudanças na formulação e na execução das políticas internas e externas dos países. Um dos aspectos novos examinados é o uso de instrumentos econômicos e comerciais como um meio de alcançar objetivos geopolíticos. A relação entre poder econômico e geopolítica passa a ser fundamental no mundo atual. Nesse sentido, tornam-se elementos básicos a performance macroeconômica do país, a evolução da política econômica internacional e os instrumentos utilizados na busca dos objetivos geopolíticos.

A geoeconomia passou a ser um elemento crítico quando se analisa o papel de cada país neste novo mundo. A geoeconomia focaliza o uso da força por meio de instrumentos econômicos e comerciais para promover e defender os interesses nacionais, para produzir resultados geopolíticos favoráveis e efeitos positivos sobre os objetivos geopolíticos. As restrições à venda de chips para a China, a proibição de compra de roteadores chineses pelos EUA, as medidas protecionistas comerciais da União Europeia, com a desculpa de evitar o desmatamento de florestas, as políticas restritivas minerais da China e o congelamento unilateral de reservas de terceiros países são alguns exemplos da utilização de medidas econômicas como armas, criando verdadeiras guerras por outros meios.

No contexto da geoeconomia, a defesa da segurança nacional passa a ser frequentemente utilizada na ação política nos EUA, na China e em outros países. Utilizado de forma crescente como justificativa de medidas econômicas e comerciais, “o papel da segurança nacional na política e estratégia de comércio e investimento está aumentando em toda parte. Há mudanças na maneira como as pessoas estão abordando a questão da política comercial, a política econômica internacional e isso é verdade nas economias de mercado do mundo todo”, como reconheceu alto funcionário norte-americano. As prioridades econômicas e as novas preocupações com a segurança nacional (que pode incluir tudo) se fundem e tornam superados os conceitos de liberalismo e livre mercado.

Essas são as novas realidades globais. Os países terão de se ajustar para conseguir defender com êxito seus próprios interesses, mas, em primeiro lugar, terão de definir seus objetivos estratégicos, fortalecer os fundamentos de sua economia e ter uma clara visão de seus interesses de médio e longo prazos.

Estão governo e empresas brasileiras conscientes dessas mudanças e preparados para defender os interesses nacionais neste novo cenário?

 

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE), É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS

 

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/admiravel-mundo-novo/

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Mercosul revigorado - Rubens Barbosa O Estado de S. Paulo,

 Opinião: Mercosul revigorado

Com a futura assinatura do acordo com a UE, o bloco sul-americano pode iniciar um círculo virtuoso de inserção internacional

Por Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 10/12/2024 


A reunião presidencial do Mercosul, em Montevidéu, na semana passada, foi uma das mais importantes desde sua criação em 1991, em função da decisão dos países do Mercosul e da União Europeia (UE) de dar por concluída definitivamente a negociação do acordo de parceria em discussão há 30 anos.

Com a futura assinatura do acordo com a UE, o Mercosul sai do isolamento e pode iniciar um círculo virtuoso de inserção internacional. Foi assinado acordo comercial com o Panamá e iniciadas conversações com os Emirados Árabes Unidos.

Na fase mais recente, em 2019, Mercosul e UE acordaram os principais trade-offs da negociação, como as diversas cotas em bens agrícolas acertadas entre o Mercosul e a UE. Em 2023/2024, foram propostos reajustes para preservar a capacidade do Estado para alavancar políticas de interesse público, como em compras governamentais (foram excluídas todas as compras do SUS do capítulo de compras, pela importância que possuem para o acesso a medicamentos, assim como para reforçar o sistema produtivo de medicamentos). Para equilibrar algumas partes do acordo, foram recusados os termos do documento adicional (side letter) sobre comércio e desenvolvimento sustentável apresentado no início de 2023 pela UE. De forma inédita, foi agora estabelecido um mecanismo para evitar que medidas unilaterais das partes prejudiquem o equilíbrio estabelecido no acordo, pois tais medidas têm o potencial de comprometer concessões comerciais negociadas e desequilibrar o resultado acordado. Após o “acordo político” de 2019, a UE adotou legislações que, a depender da forma como sejam implementadas, poderão romper o equilíbrio do entendimento de 2019 em temas que não foram renegociados na etapa iniciada em 2023. É o caso, por exemplo, das cotas oferecidas pela UE para a exportação de carnes do Mercosul, que não foram reabertas na etapa de 2023. Estabeleceu-se que uma arbitragem definirá se houve esvaziamento dos compromissos assumidos e em que montante, independentemente de ter havido violação ou não do acordo. Se for o caso, a parte que restringiu o comércio deve oferecer compensações comerciais (abertura de mercado) ao outro lado. Se não houver acordo quanto à compensação, há direito à “retaliação” (suspensão de benefícios previstos no acordo), no montante definido em arbitragem, com vistas a restabelecer o equilíbrio do que foi negociado.

Em mais de 30 anos de existência, o Mercosul negociou acordos comerciais de pouca relevância para a economia nacional (Egito, Israel, Cingapura e, em breve, entrará em vigor o com a Palestina). O acordo com a UE, o segundo mercado (16%) para o Brasil, de mais de 800 milhões de pessoas e 27 países, é de longe o mais importante até aqui e manda uma mensagem poderosa à comunidade internacional quanto à colaboração ampliada entre duas regiões que defendem os mesmos valores e interesses, além de sinalizar o fim do isolamento do Mercosul. Cerca de 90% dos produtos dos dois países terão tarifa zero no primeiro ano do acordo.

Para o Brasil, a assinatura do acordo reforça a projeção externa do País e fortalece a política de independência e equidistância em uma das questões geopolíticas que dividem hoje o mundo: as tensões entre os EUA e a China. No caso da UE, amplia as áreas de contato com uma região líder em segurança alimentar, energia limpa e que passou a priorizar o meio ambiente. É importante lembrar que não se trata apenas de um acordo comercial, mas também de um ambicioso acordo de associação estratégica com a União Europeia, que inclui três vertentes: a política, a de cooperação e a do livre comércio. Em seguida, deverá ser assinado o acordo com a Efta, a Associação Europeia de Livre Comércio, integrada por Suíça, Noruega, Islândia e Liechtenstein.

As transformações na economia e na ordem global tornam o acordo entre o Mercosul e a UE ainda mais estratégico tanto para o Mercosul quanto para a União Europeia. Os dois lados perceberam que esse acordo, no contexto atual, representa mais do que interesses comerciais e passa a ser importante também pelas implicações geopolíticas globais.

Resta agora a assinatura e aprovação dos acordos de diálogo político, de cooperação e de livre comércio. O comercial, pelo Conselho da União Europeia e pelos Congressos dos países do Mercosul, e os demais pelos Parlamentos dos países-membros da UE. A oposição da França, da Itália e da Polônia ao comercial terá de ser superada pela maioria liderada pela Alemanha, Portugal e Espanha.

Outra matéria importante incluída na pauta do Mercosul foi o pedido da Argentina para que seja revista, para dar maior flexibilidade, a regra da Resolução 32 pela qual as negociações de acordos comerciais devem ser feitas conjuntamente pelos países-membros. Com isso, o governo argentino espera poder negociar acordo de livre comércio isoladamente com os EUA, embora pareça pouco provável que os EUA mudem sua política e abram negociações comerciais com a Argentina. A proposta argentina não tem chance de ser aceita pelos países do Mercosul (e agora a UE também vai demover Javier Milei), mas adquire um caráter sensível porque a Argentina coordenará os trabalhos do Mercosul no primeiro semestre de 2025.

 

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE), FOI COORDENADOR NACIONAL DO MERCOSUL

 

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/mercosul-revigorado/


terça-feira, 26 de novembro de 2024

A reunião do G-20 no Brasil - Rubens Barbosa (Estadão)

A reunião do G-20 no Brasil

O atual contexto de polarização e desconfiança e a perspectiva do novo governo Trump tornam difícil um avanço real nos temas tratados

 Opinião  Por Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 26/11/2024 | 03h00


O G-20, que inclui as principais economias globais, foi criado como uma resposta à crise financeira que abalou a economia mundial em 2008. Desenvolvimento sustentável, segurança e resiliência econômica e transformação digital são os principais focos de atenção dos países-membros.

A reunião, que se realizou na semana passada no Rio, ocorreu em um momento de crescente tensão internacional, com a escalada nas guerras na Ucrânia e em Gaza, e de incerteza, com as possíveis repercussões globais da eleição de Donald Trump e de suas políticas econômicas, comerciais e externas. Esses desafios têm como pano de fundo as transformações na economia global, pela polarização política, a desinformação em massa e a persistência da pobreza, em um contexto de grandes avanços tecnológicos e produtivos.

O Brasil colocou como lema do encontro “construir um mundo justo e um planeta sustentável” e definiu como prioridades (1) a inclusão social e o combate à fome e à pobreza; (2) as transições energéticas e o desenvolvimento sustentável em suas dimensões econômicas, sociais e ambientais; e (3) a reforma das instituições de governança global.

A negociação da Declaração dos Líderes do G-20 foi um processo longo que conseguiu superar as dificuldades de última hora sobre a linguagem a ser adotada em diversas passagens, mas em especial no tocante às guerras da Ucrânia e Gaza, que impediram o consenso nas últimas reuniões do grupo. A diplomacia conseguiu minimizar a oposição de alguns líderes nessas e em outras áreas e incluir boa parte da agenda proposta pelo Brasil.

Os diferentes capítulos da declaração versaram sobre a situação econômica e política internacional, a inclusão social e o combate à fome e à pobreza, o desenvolvimento sustentável, a transição energética, a ação climática e a reforma das instituições da governança global.

O documento evitou críticas diretas à Rússia e a Israel, ressaltou a crise humanitária das guerras, sublinhou a necessidade de se chegar ao fim dos conflitos, do aumento da ajuda humanitária, e reafirmou a solução dos dois Estados, com a criação do Estado palestino. No capítulo sobre a fome e a pobreza ressaltou a criação da proposta brasileira de uma Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, para tentar mitigar a situação de cerca de 730 milhões de pessoas que atualmente enfrentam a fome e dos 2,4 bilhões que enfrentam a insegurança alimentar moderada ou severa. Foi também incluída referência à questão de taxação dos mais ricos, numa linguagem indireta, “patrimônio líquido ultra-alto”. Foi dada grande ênfase para o desenvolvimento sustentável, com ênfase no aumento do financiamento aos países em desenvolvimento, em apoio a medidas de preservação ambiental, mudança de clima e transição energética justa, nas dimensões econômicas, sociais e ambientais, respeitadas as circunstâncias locais. Foi reafirmada a importância de serem mantidas e ampliadas as metas de redução de emissões de gás de efeito estufa e de desmatamento previstas no Acordo de Paris, de 2015, e o aumento do financiamento público e privado para o meio ambiente e mudança de clima para os países em desenvolvimento. Foi lançada a Iniciativa de Bioeconomia. O revigoramento das instituições teve apoio dos líderes das principais economias no tocante à governança política, das instituições financeiras e comerciais. Sugeriu-se maior poder à Assembleia Geral da ONU e a ampliação dos membros permanentes e rotativos do Conselho de Segurança, sem fazer menção a países específicos, apenas à América Latina e África. Incluiu-se ainda dar maior voz aos países em desenvolvimento no FMI e no Banco Mundial, e fortalecer a OMC.

A reunião do G-20 tem de ser vista dentro do contexto político-diplomático que tem caracterizado os encontros anteriores do grupo. A declaração chegou ao consenso possível e expressa as principais preocupações das maiores economias do globo, mas não pretende – nem tem esse objetivo – resolver os problemas que afetam os países. O atual contexto de polarização e desconfiança, exacerbado pelos conflitos na Ucrânia e em Gaza, e a perspectiva do novo governo Trump tornam difícil um avanço real na grande maioria dos temas tratados.

No momento em que cada país procura colocar seus interesses em primeiro lugar, a diplomacia brasileira conseguiu incluir na agenda do G-20 preocupações sociais ao lado dos temas geopolíticos, econômicos e comerciais. A implementação da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza conta com a efetiva adesão de 82 países, e pode ser considerada como a decisão mais importante do ponto de vista do Brasil. Foram relevantes as menções ao financiamento para o meio ambiente, ao compromisso de metas do Acordo de Paris mais ambiciosas, além da referência de que todas essas questões devem levar em conta as circunstâncias locais, em crítica indireta às decisões tomadas pelos países desenvolvidos, sem levar em consideração as dimensões dos países em desenvolvimento.

A partir de janeiro, com o início do novo governo norte-americano, as questões geopolíticas, ambientais e multilaterais tratadas certamente sofrerão forte influência das mudanças que ocorrerão em Washington, e poucos se lembrarão dos termos da declaração do G-20 no Rio.

 

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE), É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS

 

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/a-reuniao-do-g-20-no-brasil/

 

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

O Impacto da Eleição de Trump sobre o Brasil - Rubens Barbosa (O Estado de S. Paulo)

O Impacto da Eleição de Trump sobre o Brasil.

Algumas promessas de campanha e declarações do presidente eleito certamente devem estar causando preocupação ao governo brasileiro

Por Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 12/11/2024 | 03h00

 

A eleição de Donald Trump para a presidência dos EUA terá não só profundas repercussões na política interna norte-americana, como também no cenário internacional, com forte impacto na geopolítica, na economia global e em alguns temas globais, como meio ambiente, mudança do clima, imigração, transição energética e avanço da direita. Ajustes, acomodações e resistências acontecerão em função das mudanças prometidas, a partir de janeiro.

As políticas econômicas e comerciais do governo Trump, se cumpridas as promessas, em função de políticas expansionistas para criar empregos, medidas nacionalistas e protecionistas de política industrial, com o consequente reflexo na inflação, no déficit público e na taxa de juros do Federal Reserve (Fed), poderão impactar o comportamento do dólar, a inflação e a taxa de juros no Brasil.

As relações institucionais entre o Brasil e os EUA não deverão ser afetadas. Comércio, investimentos, tecnologia e outras áreas de cooperação continuarão a fluir normalmente, mas algumas promessas de campanha e declarações de Trump certamente devem estar causando preocupação ao atual governo: a questão da Venezuela, a proximidade com a China, a evolução do Brics, a busca de protagonismo global, a possibilidade de imposição de tarifas para a exportação de todos os países para os EUA, a agenda climática, a eventual deportação de brasileiros, as acusações de corrupção, as relações de Trump com o bolsonarismo e os problemas com Elon Musk, associados à retórica de restrições à liberdade de expressão nas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF).

As ações globais para a preservação do meio ambiente, o combate à mudança de clima e a transição energética ficarão afetadas pela perda de prioridade no novo governo Trump, que prometeu ampliar a pesquisa e exploração de petróleo e gás no território americano e novamente abandonar o Acordo de Paris, eliminando as metas de redução de emissões de gás carbono. A COP-30, no Brasil, será diretamente afetada e poderá ser esvaziada pela ausência do presidente dos EUA.

A escalada retórica de Trump, já presidente eleito, sobre a situação política interna na Venezuela é inquietante para a política externa brasileira. Apesar de a América do Sul não ter prioridade na política externa dos EUA e a Venezuela não ter sido mencionada na campanha eleitoral, Trump disse, em entrevista no TikTok, que a Venezuela é um caos, que a população está sofrendo e que seu governo vai ter várias opções para responder a essa questão, inclusive a opção de uma intervenção militar. Certamente, terá apoio de outros países, como a Argentina, de Javier Milei, e resistências de potências extrarregionais que apoiam Caracas, como a Rússia e a China.

As relações com a China, a principal parceira comercial do Brasil, passarão por um momento muito delicado pela eventual reação dos EUA à aproximação brasileira com Pequim, pela dependência do mercado chinês. As decisões sobre a política de Lula da Silva em relação ao Brics, na reunião no ano próximo no Brasil, podem representar o maior desafio da política externa do atual governo. A presença no Brasil dos novos membros, autoritários e ditaduras, e a questão do ingresso da Venezuela no grupo deverão gerar reação da oposição de direita brasileira, às vésperas do início da campanha eleitoral de 2026. A decisão sobre o eventual ingresso do Brasil na Rota da Seda pode ter implicação no relacionamento com o governo Trump, visto que ainda com Joe Biden altas autoridades norte-americanas mandaram sinais claros sobre os riscos de uma eventual adesão do Brasil.

A promessa de deportar 10 milhões de imigrantes dificilmente será cumprida na totalidade, mas com certeza, em parte, será implementada. O maior contingente de brasileiros no exterior está nos EUA (1,9 milhão – 290 mil ilegais) e poderá ser afetado, o que gerará desconforto para o governo Lula.

O avanço da direita na região ganhará reforço e apoio de Washington. Javier Milei e Nayib Bukele serão prestigiados e ganharão mais espaço na América Latina, esvaziando ainda mais a liderança regional do Brasil e a busca de influência global (guerras na Ucrânia e Gaza).

Até mesmo na política interna poderá haver ações contrárias ao atual governo. Eduardo Bolsonaro estava em Mar-a-Lago, comemorando a vitória republicana, e não será surpresa se vier a estimular provocações e mesmo restrições ao governo Lula no final de 2025. Sem falar num eventual apoio do governo Trump à retórica de perseguição política a Jair Bolsonaro e de julgamento em relação aos condenados pelos acontecimentos de 8 de janeiro em Brasília e à declaração de inelegibilidade do ex-presidente pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Os imprudentes pronunciamentos do presidente Lula manifestando sua preferência por Kamala Harris para “defender a democracia e evitar o nazismo e o fascismo com outra cara” e aconselhando Trump a “pensar como habitante do planeta Terra” não vão ajudar na relação entre os chefes de Estado dos dois países.

Em face de todos esses desafios de política externa, de acordo com o interesse nacional e refletindo a mudança do eixo da política comercial para a Ásia/China, torna-se urgente uma declaração do governo brasileiro, sem ideologia ou partidarismo, com o objetivo de reafirmar uma posição de independência em relação a países ou grupo de países.

 

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR, MEMBRO DA APL, FOI EMBAIXADOR EM WASHINGTON

 

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/o-impacto-da-eleicao-de-trump-sobre-o-brasil/

terça-feira, 22 de outubro de 2024

O Brics e o movimento anti-Ocidente - Rubens Barbosa (OESP)

Opinião: 

O Brics e o movimento anti-Ocidente 

O Brasil deveria aproveitar a presidência do bloco em 2025 e enunciar sua posição de equidistância dos antagonismos em formação, na defesa de seus interesses 

 Rubens Barbosa 

O Estado de S. Paulo, 22/10/2024

A reunião do Brics, que se realiza as partir de hoje em Kazan, na Rússia, marca uma nova etapa na trajetória do grupo. Criado em 2006, por iniciativa da Rússia, o bloco foi constituído por Brasil, China, Índia e Rússia, e pouco depois incorporou a África do Sul. Em setembro de 2023, por influência da China, passaram a fazer parte também Emirados Árabes, Egito, Irã, Arábia Saudita, Etiópia. A participação do Brics na economia global é uma consequência de seu peso econômico (32,1% do PIB global contra os 29,9% do G-7, metade da população mundial e 25% do comércio internacional). 

A China tornou-se a segunda potência global, a Índia e o Brasil estão entre as dez maiores economias do mundo, a Rússia é uma potência nuclear e a África do Sul, a maior economia da África. A gradual ampliação dos países participantes no Brics era previsível a partir do momento em que a China convenceu o Brasil e a Índia a aceitar a inclusão de novos membros. Por iniciativa da China, em Kazan, será criada a categoria de parceiros do Brics para os novos membros, com a possível fixação de alguns critérios, como a representação geográfica, a oposição a sanções econômicas unilaterais, o apoio a reforma da ONU, especialmente a do Conselho de Segurança. Apesar das dificuldades criadas com a guerra da Rússia com a Ucrânia e da crescente tensão entre a China e os EUA, o interesse dos países em se juntar ao Brics, estimulado por Pequim, cresceu fortemente nos últimos meses, e 35 países (inclusive o Afeganistão, do Taleban) estão pleiteando a participação no grupo. 

Na reunião presidencial da Rússia, mais dez países deverão ser aceitos pelo Brics, entre eles são mencionados Cuba, Venezuela, Bolívia, Bielorrússia. A decisão de dobrar o número de participantes de todos os continentes, sob a liderança da China, com a inclusão de países autoritários e de viés anti-EUA, está tornando o Brics o embrião de um movimento antiocidental. Com o predomínio da China, o movimento tende a se ampliar com a grande maioria dos países com uma postura antiamericana e com viés pró-Rússia. A China e a Rússia veem o grupo como um ponto de confrontação com o Ocidente, como a inclusão do Irã evidencia. A contraposição ao Ocidente (conjunto de países sem delimitação geográfica, integrado pelos EUA, Europa, Japão, Austrália e outros países em todos os continentes) não é ideológica ou militar, mas de princípios, valores, na economia, nas finanças e nos avanços tecnológicos. A tendência de divisão do mundo entre Ocidente e o movimento antiocidental está aí para ficar. As implicações geopolíticas são evidentes e poderosas. 

A guerra da Rússia na Ucrânia representou um problema para o Brics, como originalmente concebido, pois um país-membro passou a ser visto como um inimigo ocidental, o que inevitavelmente contaminou a percepção política sobre o grupo. Embora sem uma agenda comum, os países-membros do Brics passaram a ampliar suas relações, tornaram-se mais conhecidos e passaram a coordenar suas ações nos organismos multilaterais, como a ONU, em temas de interesse comum. A criação do Novo Banco de Desenvolvimento foi o primeiro sinal de uma nova governança global, e a plataforma de desafio à hegemonia do dólar nas trocas comerciais, com a utilização do renminbi ou moedas locais, é outro indício da contestação em marcha, com previsível reação norte-americana, evidenciada pela ameaça de Donald Trump de taxar em 100% os produtos de países que aderirem. Apesar de existir o potencial para influir ao longo dos anos na governança global, as limitações internas e externas do grupo dificultam a ideia de se tornar uma efetiva alternativa à ordem ocidental. Quais os interesses do Brasil? 

Como o Brasil se situa no contexto do novo Brics? 

O Brics é para o Brasil um espaço privilegiado de articulação político-diplomática, bem como plataforma de cooperação em áreas que incluem virtualmente todos os principais temas da agenda internacional. O Brasil procura usar o Brics como alavanca para uma nova governança global, em que a multipolaridade prevaleceria sobre a unipolaridade, sem necessariamente confrontar o Ocidente. A reforma das instituições multilaterais permanece sendo objetivo central para o Brasil, ao lado do desenvolvimento de uma plataforma para a promoção do uso de moedas locais como meio de pagamentos e a expansão e o fortalecimento do Novo Banco de Desenvolvimento. 

Apesar de não concordar com a ideia de o Brics ser um vetor de disputa estratégica ou confrontação geopolítica e um agrupamento que pretende competir com o G-7 ou substituir as atuais organizações multilaterais, o Brasil, a exemplo da Índia, deveria permanecer no bloco, mesmo com o risco de ficar isolado no âmbito dos novos países-membros, com previsível perda de influência, até mesmo na definição da agenda do grupo. Em 2025, o Brasil assume a presidência do Brics ampliado, com a proposta de fortalecimento da cooperação do Sul Global para uma governança mais inclusiva e sustentável. O Brasil deveria aproveitar essa oportunidade e enunciar claramente sua posição de equidistância dos antagonismos em formação entre dois blocos na defesa de seus interesses econômicos, financeiros e comerciais. 

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE), É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS 

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terça-feira, 24 de setembro de 2024

Reforma do Judiciário no México A insegurança jurídica e influência do crime organizado - Rubens Barbosa (Estadão)

Opinião: 

Reforma do Judiciário no México

A insegurança jurídica, a influência do crime organizado e a politização das decisões poderão vir a ser evidenciadas nos próximos anos


Por Rubens Barbosa

Estadão, 24/09/2024

 

O Congresso mexicano aprovou uma ampla mudança constitucional que prevê profunda reforma do Judiciário, submetida pelo presidente López Obrador na reta final de seu mandato. A lei, já sancionada por Obrador, deverá ser aprovada por cerca de 27 Estados onde o partido Morena, de Obrador, tem ampla maioria. Nas eleições presidenciais de junho passado, o atual presidente conseguiu eleger Claudia Sheinbaum como sua sucessora e alcançou ampla maioria não só nas duas casas do Congresso, mas também em 17 dos 32 Legislativos estaduais.

As mudanças aprovadas no México são semelhantes à reforma que Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, quis aprovar em razão de desavenças com a Suprema Corte, mas não conseguiu por falta de apoio da sociedade israelense e de votos no Knesset. Segundo os críticos da reforma, caso aprovada, acabaria com a independência judicial em Israel.

Populista, a reforma do Judiciário no México, entre suas principais medidas, estabelece que mais de 6.500 juízes, incluindo os ministros da Suprema Corte de Justiça da nação (equivalente ao STF), terão seus mandatos encerrados e serão substituídos a partir de eleições por voto popular, com listas de candidatos elaboradas pelos Poderes Executivos, Legislativos e Judiciário, em 2025 e 2027. A reforma reduz de 11 para 9 os ministros da Suprema Corte, diminui a duração de seus mandatos de 15 para 12 anos e extingue a exigência mínima de 35 anos de idade para a indicação à Corte. São igualmente retirados alguns benefícios de funcionários do Judiciário e cria-se um órgão fiscalizador, composto por cinco integrantes.

A implementação dessa controvertida reforma deverá ser realizada pela nova presidente mexicana, que deverá conduzir, de forma direta, o pleito para a escolha dos juízes no próximo ano. Claudia Sheinbaum declarou que “o regime de corrupção e de privilégios está se tornando uma coisa do passado” e que “uma democracia verdadeira e o Estado de Direito começam a ser construídos”. A mudança deverá permitir ao partido governamental, o Morena, o controle dos Três Poderes, longe de uma verdadeira democracia.

A reforma constitucional do Judiciário gerou fortes manifestações contrárias à aprovação da lei e muitos analistas observam que a insegurança jurídica dela decorrente poderá afetar novos investimentos, inclusive aqueles em infraestrutura, tão necessários para atender o grande número de empresas que se está instalando no México para se beneficiar do mercado norte-americano. Há igualmente o temor de que, com a eleição para o preenchimento dos postos no Judiciário, as disputas serão politizadas e o Judiciário poderia ser também contaminado politicamente, perdendo sua autonomia.

Levando em conta a crescente participação do crime organizado na sociedade mexicana e sua infiltração nos aparelhos de Estado, o novo sistema judiciário poderá ficar mais acessível à infiltração de juízes de alguma forma ligados ao crime organizado. O México agora, na prática, se transformou num país de partido único. Em razão do novo sistema eleitoral para a escolha dos juízes, inclusive aqueles para a Suprema Corte, o país enfrentará um grande desafio para esse Judiciário eleito se manter independente, como é de praxe em qualquer democracia.

A sociedade mexicana está dividida sobre o tema. Muitos acham que a reforma é necessária para benefício de todos, e não de uns poucos, como ocorre com o sistema atual. Outros afirmam que acabou a separação de Poderes e a República, como estabelecida até agora, deixa de existir. Seria consagrada a afirmação de um governo autoritário.

A reforma do Judiciário provocou reação dos Estados Unidos e do Canadá. Washington falou de “um grande risco” e o governo canadense demonstrou preocupação com a insegurança jurídica de parte dos investidores.

Acompanhando de longe essa controvertida modificação constitucional, pode-se dizer que houve forte motivação ideológica para sua aprovação. López Obrador sempre foi um político da ala esquerda do espectro político mexicano e durante seu governo muitas foram as disputas entre o Executivo e o Judiciário. A proposta da reforma estava sendo discutida e era aguardada. O momento escolhido, porém, é simbólico. Obrador quis ser o autor da mudança um mês antes do fim de seu mandato, preferindo deixar que sua sucessora apenas implemente as reformas.

Não se pode ignorar o risco de politização na escolha dos juízes que irão concorrer aos postos vagos, inclusive na Suprema Corte. Difícil imaginar que o partido Morena – na prática o único partido com força no cenário político mexicano – não vai influir na escolha de candidatos para todos esses cargos. A insegurança jurídica, a influência do crime organizado e a politização das decisões poderão vir a ser evidenciadas nos próximos anos.

Qualquer semelhança com as discussões que estão em curso há algum tempo no Brasil sobre a insegurança jurídica derivada da falta de harmonia e de coordenação entre os Três Poderes, as consequências políticas, econômicas e sociais em decorrência da judicialização da política e da política de judicialização e sobre a infiltração do crime organizado em diferentes níveis das esferas municipais, estaduais e federais não será mera coincidência.

 

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE), É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS

 

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/reforma-do-judiciario-no-mexico/

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Insegurança jurídica vinda de fora - Rubens Barbosa (Correio Brasiliense)

Insegurança jurídica vinda de fora

A informação de que o acordo da Vale S/A com as famílias deve ser assinado em breve foi dada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no início de setembro

Rubens Barbosa *
Correio Brasiliense, 19/09/2924

A disputa pela indenização às famílias vítimas das tragédias ecológicas de Mariana deve estar resolvida até o começo de outubro, depois de mais de 10 anos de discussões. A disputa judicial sobre Mariana envolve os governos federal, de Minas Gerais e do Espírito Santo, além das empresas Vale, Samarco e BHP, responsáveis pela barragem rompida.

A informação de que o acordo da Vale S/A com as famílias deve ser assinado em breve foi dada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no início de setembro. "Até o começo de outubro, a gente vai ter acordo da Vale para resolver o problema de Mariana. Nós queremos utilizar o recurso para recuperar o que foi estragado, para cuidar do povo, só não posso dizer os termos do acordo porque só posso falar quando estiver definido e assinado."

Com a conclusão desta disputa, o acordo que deve envolver R$ 167 bilhões será o maior firmado globalmente, acima do acordo da BP nos EUA por desastre ambiental. Isso porém não é o fim de toda essa questão. Além da insegurança jurídica interna, surge agora um novo risco: a insegurança externa. Com a repetição de desastres ambientais, surgiram escritórios de advocacia na Europa e nos EUA que promovem ações coletivas contra empresas, mesmo que tenham sido feitos acordos com as comunidades locais ou com os governos. É importante que todo esse dinheiro vá para as pessoas e comunidades afetadas, não para advogados estrangeiros e fundos abutres que buscam lucrar com os brasileiros que sofreram com essa tragédia.

A judicialização desses casos no Reino Unido está sendo possível pelo entendimento da Corte de Apelação, posteriormente ratificada pela Corte. Suprema da Justiça britânica, de que os Tribunais britânicos são competentes para julgar causas relacionadas com desastres ecológicos em outros países. Com a ampliação da jurisdição de Cortes estrangeiras para o julgamento de ações que envolvam desastres ambientais no país, empresas nacionais com subsidiárias no exterior e seus sócios podem sofrer com uma insegurança jurídica internacional.

É o que está acontecendo com a Vale e a BHP por conta de Mariana, processadas por 620 mil brasileiros e 46 prefeituras. No tocante a Brumadinho e Maceió, a Vale e a Braskem estão sendo processadas na Inglaterra e na Holanda, apesar das empresas terem pagado bilhões às pessoas e comunidades afetadas. As consequências econômicas são muito claras: para o país aumenta a insegurança jurídica para empresas que queiram investir no Brasil; para as empresas, crescem os custos com o pagamento de apoio jurídico por muito tempo no exterior e pela indenização aos demandantes, se perder a ação, o que pode afetar mesmo o modelo de negócio.

Dado o inusitado da situação criada por escritórios de advocacias e Fundos internacionais que financiam essas causas na busca de lucros significativos, resta examinar o que fazer, qual a resposta do governo brasileiro. Do ponto de vista jurídico, as ações no exterior podem ser contestadas, mas as bases jurídicas são difíceis de reverter. Na Corte Inglesa, o julgamento da Vale começa em 21 de outubro sobre se a empresa deve pagar, ou não, indenização. Mais adiante, possivelmente em 2028, haverá o julgamento da pena e valor da causa. Para as pessoas afetadas, continua sendo uma longa espera por qualquer benefício neste processo, e apenas os ricos, advogados estrangeiros e fundos abutres, recebam uma parcela significativa do dinheiro no final.

Resta a alternativa política. O Governo brasileiro deveria questionar junto ao Reino Unido o processo na corte inglesa e defender o princípio do direito de que ninguém deve ser julgado duas vezes pelos mesmos fatos e que o Brasil deve ser soberano na decisão de questões jurídicas em seu território. Em paralelo, deveriam ser examinados recursos a Corte Internacional de Justiça, a cortes de arbitragem e ao Código de Ética da OAB para evitar que ações de indenização de desastres ecológicos no Brasil, já resolvidas internamente, sejam novamente julgadas no exterior.

Até o momento, não há nenhuma ação do governo brasileiro para tentar resolver esses conflitos de competências de cortes internacionais e cortes brasileiras. É urgente uma reação política do governo no exterior na defesa do interesse nacional.


* Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior

https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2024/09/6945366-inseguranca-juridica-vinda-de-fora.html



terça-feira, 27 de agosto de 2024

O Brasil e a Rota da Seda - Rubens Barbosa (Estadão)

 Comentário PRA: acho que a desarticulação entre o Itamaraty e o nucleo central do atual governo (se existe) será incapaz de levar adiante um projeto dessa magnitude e com todas as implicações de uma grande estratégia como a proposta pelo embaixador Rubens Barbosa. De certa forma, o Itamaraty perdeu protagonismo no atual governo, em favor de uma diplomacia deformadamente personalista, a do próprio Lula.

Opinião

O Brasil e a Rota da Seda

A Rota da Seda sul-americana, levando em conta os interesses brasileiros, poderia representar um passo relevante para uma política de integração física que beneficie todos os países da região

Por Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 27/08/2024 | 03h00


Em agosto, Brasil e China celebraram 50 anos do restabelecimento de relações diplomáticas e, em novembro, o presidente chinês, Xi Jinping, virá ao Brasil para uma visita bilateral e também para participar da reunião do G-20.

Na década de 1990, durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso à frente do Itamaraty, a China propôs e foi aceita pelo Brasil uma parceria estratégica que deveria beneficiar ambos os países. Os últimos 25 anos mostraram resultados bastante favoráveis a ambos os lados em termos de segurança alimentar (37% das exportações brasileiras de produtos agrícolas são absorvidas pelo mercado chinês) e energia (com investimentos chineses no Brasil). Deve ser mencionado, contudo, que, do lado brasileiro, ainda falta uma visão estratégica mais pragmática, sobretudo na atração de investimentos produtivos.

Dentro de uma visão estratégica de longo prazo, em 2013, o governo da China lançou a iniciativa Rota da Seda (Belt and Road Initiative) com o prazo de até 2049 para estar completa. A iniciativa dispõe de uma organização institucional integrada por um fórum para cooperação internacional e um conselho de alto nível. Os objetivos de Pequim são ampliação da coordenação política entre os países participantes, ampliação das facilidades de conexão entre todos os países, comércio desimpedido, integração financeira e melhora da relação entre os povos. A iniciativa Rota da Seda prevê investimentos chineses em infraestrutura (ferrovias, rodovias, energia, digital) em projetos terrestres e marítimos para conectar a China com a Ásia, Europa, África e América Latina por terra e mar. Integrada hoje por mais de 150 países, (20 na América Latina, somente Brasil, Paraguai e Colômbia estão fora até aqui), a Rota da Seda é o mais importante projeto da diplomacia chinesa.

Desde a ida do presidente Lula da Silva a Pequim em 2023, a China tem insistido para o Brasil integrar a Rota da Seda. Certamente, esse será um dos itens da agenda bilateral em novembro e, segundo se sabe, o Brasil deverá ser mais um país a participar da iniciativa chinesa.

Os aspectos geopolíticos do projeto foram ressaltados quando, como uma reação ocidental, os países do G-7, em 2022, aprovaram um plano de expansão na infraestrutura, com a possibilidade de gastos de US$ 600 bilhões. O plano, no entanto, pouco avançou, ao contrário da iniciativa chinesa, que iniciou mais de mil projetos nos últimos dez anos, especialmente na Ásia e África, mas também na Europa e América Latina.

A entrada na Rota da Seda deveria ser precedida da definição do interesse brasileiro. Levando em conta considerações geopolíticas, a questão que se coloca, do ponto de vista da política externa e do interesse nacional, é como o Brasil vai se juntar à Rota da Seda sem perder a visão de equidistância entre o Ocidente e a China. O gesto poderá ser oficializado pela simples adesão ou, confirmando a posição de independência, poderá ficar no contexto dos dois países, com a inclusão dessa questão na Comissão Mista Brasil-China (Cosban), mecanismo de coordenação bilateral, em que seriam discutidos os projetos que viriam a ser incluídos na Rota da Seda: quais poderão ser considerados e como se dará o acesso ao financiamento para a execução deles. Aqueles de infraestrutura na América do Sul são os que mais se enquadram no contexto da Rota da Seda. Caso concretizados, favoreceriam a ampliação do comércio do Brasil com os vizinhos sul-americanos e poderiam abrir um corredor para a exportação de produtos brasileiros para a Ásia, especialmente para a China. A Rota da Seda sul-americana, levando em conta os interesses brasileiros, poderia representar um passo relevante para uma política de integração física na América do Sul, liderada pelo Brasil, que possa beneficiar todos os países da região.

Não está incluído no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) um projeto estratégico de longo prazo que ligasse, por via ferroviária, o Atlântico ao Pacífico, de 3.755 quilômetros (km) de extensão (1.900 km no Brasil), passando pela metade norte do território nacional e pela Bolívia, e que chegasse aos portos peruanos, que estão sendo ampliados com recursos chineses. Esse corredor ferroviário teria um sentido estratégico fundamental para o Brasil se pudesse ser executado. Alternativamente, poderiam ser mais bem aproveitadas as vias hidroviárias nacionais na interligação com países vizinhos, como o Peru.

O transporte de produtos de exportação do Brasil não acompanhou a grande mudança do eixo comercial para a Ásia, em especial a China. Para alcançar essa região, 50% das exportações brasileiras têm de passar pelo Canal do Panamá ou pelo sul da África, o que não é eficiente nem econômico. Torna-se cada vez mais urgente abrir corredores de exportação diretamente para os mercados asiáticos, via portos no Peru e no Chile no Pacífico, para diminuir o tempo de transporte e o frete e tornar os produtos brasileiros mais competitivos.

A ideia de colaboração na construção do ambicioso corredor ferroviário ou de uma integração hidroviária no caminho do Pacífico, para o Porto de Chancay, no Peru, poderia ser um dos pontos altos das comemorações dos 50 anos.

 

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE), É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/o-brasil-e-a-rota-da-seda/