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domingo, 16 de março de 2025

A morte do multilateralismo sob Trump e Putin: Tempo de tormenta e vento esquivo - Celso Lafer O Estado de S. Paulo

Tempo de tormenta e vento esquivo

Celso Lafer

O Estado de S. Paulo, domingo, 16 de março de 2025

A erosão e a crise do multilateralismo comprometem o potencial de gestão cooperativa no âmbito da interdependência dos Estados

 

Pesa sobre a inserção internacional do Brasil a lógica das circunstâncias de relações cambiantes de um mundo de intensificados conflitos. São conflitos permeados pelas tensões de poder de alta voltagem que se dão no contexto do caleidoscópio da geopolítica.

Disso são exemplos o andamento da guerra na Ucrânia, guerra de conquista deliberada pela Rússia de Putin, e a intensidade bélica no Oriente Médio, cujo ponto de partida foi o ataque terrorista do Hamas a Israel. São conflitos que têm alcance geral. Apontam para uma renovada presença dos riscos da situação-limite paz/guerra na vida internacional, numa escala distinta dos chamados conflitos de baixa intensidade que emergiram no pós-Segunda Guerra, contidos na sua abrangência pelo precário equilíbrio da dissuasão nuclear da bipolaridade EUA/União Soviética.

A geopolítica, com sua ênfase no controle político dos espaços, insumos e matérias primas, é um componente das tensões internacionais, não apenas no campo estratégico-militar. Vem se desdobrando no campo econômico, na lógica de uma geoeconomia. Esta dá margem à ênfase no unilateralismo das preocupações dos Estados com sua segurança lato sensu. É o que coloca entre parênteses o multilateralismo das normas gerais orientadoras do comércio internacional. Daí, na vigência da geoeconomia, as tendências de renovados protecionismos de feitio autárquico, às quais Trump dá inequívoco ímpeto.

Trump, com o decisionismo desrespeitador de normas de seu modo inamistoso de atuar, vem traçando a vis directiva das guerras comerciais com sua elevação arbitrária de tarifas. Os demais atores econômicos vão e estão calibrando, na lógica da reciprocidade da equivalência, as contramedidas das suas respostas às iniciativas de Trump, com base nos recursos do poder de seus mercados e da interdependência do mundo. Assim, intensificam-se também no campo econômico os riscos da vida internacional, instigando a incerteza de difícil mensuração.

No campo dos valores, as tensões são multiplicadas pelo efeito da prevalência da geografia das paixões na Torre de Babel da agenda da opinião pública dos países. Para isso contribuem o advento e a consolidação dos fundamentalismos e de populismos nacionalistas e xenofóbicos e a sua rejeição ao “diferente” constitutivo da pluralidade do mundo.

É um dado instigador do aumento dos “deslocados do mundo” – imigrantes não documentados e refugiados – no espaço planetário e no seu âmbito as atitudes de lideranças políticas, voltadas para a corrosão dos valores da democracia e da vigência da tutela dos direitos humanos.

A máquina do mundo em que estamos inseridos – porque somos do mundo, e não estamos apenas nele –, como diz Hannah Arendt, movimenta-se num tempo de “tormenta e vento esquivo”, para recorrer às palavras de Camões, de múltiplas facetas e da escala planetária que alcança a todos na interdependente indivisibilidade atual dos campos estratégico-militar, econômico e dos valores.

O crescente desrespeito das normas do direito internacional é uma expressão da descontinuidade estrutural em relação ao que foi elaborado no pós-Segunda Guerra para operar a ordem mundial dentro de certa “normalidade” de previsibilidade.

A primeira regra de coexistência de uma ordem internacional interestatal é a da preservação estabilizadora da integridade territorial de Estados soberanos, consagrada na Carta da ONU. Tem como objetivo deslegitimar as iniciativas de valer-se de força militar para o que foi o unilateralismo da ampliação do “espaço vital” de um país – uma das grandes causas da Segunda Guerra.

A guerra na Ucrânia, conduzida por Putin e respaldado pela China, está voltada para ampliar o “espaço vital” da segurança geopolítica de uma grande potência nuclear. É um imenso precedente que coloca em questão a prévia ordem jurídica internacional. Abre espaço para o inaceitável da rediscussão da estabilidade das fronteiras. É no clima deste precedente que Trump se permite falar sobre o Canal do Panamá, o Canadá, a Groenlândia, a Faixa de Gaza e a cessão de território da Ucrânia para a Rússia.

As normas de mútua colaboração têm como fonte material a “ideia a realizar” proveniente da necessidade de lidar por meio do multilateralismo com a dinâmica das interações das sociedades num sistema internacional interdependente e interligado, não obstante sua heterogeneidade e suas assimetrias. É uma necessidade óbvia da indivisibilidade do mundo quando se pensa, por exemplo, em clima e meio ambiente.

A erosão e a crise do multilateralismo comprometem o potencial de gestão cooperativa no âmbito da interdependência dos Estados. Abrem espaço para o unilateralismo decisionista de soberanias que rejeitam se ver circunscritas por normas em função de um autocentrado solipsismo de curto prazo de seus interesses nacionais. Desconsideram o comitas gentium da diplomacia. Projetam também uma visão hobbesiana de polarização generalizada de uma guerra de todos contra todos.


sexta-feira, 14 de março de 2025

Calçando as meias: A tragédia da educação no Brasil - Simon Schwartzman (O Estado de S. Paulo)

 sexta-feira, 14 de março de 2025

Calçando as meias - Simon Schwartzman

O Estado de S. Paulo

No médio e longo prazos, para atrair talentos para o ensino, será necessário oferecer melhores salários e mais oportunidades de progressão

 

Além da meia-entrada, somos também o País das bolsas e, agora, do Pé-de-Meia. 54 milhões recebem o Bolsa Família, o programa Pé-deMeia para o ensino médio distribuiu, em 2024, cerca de 4 milhões de benefícios, a um custo aproximado de R$ 12 bilhões, e, recentemente, o Ministério da Educação lançou programa similar para alunos dos cursos de licenciatura, de formação de professores. A novidade é que parte do dinheiro fica acumulada para só ser entregue a quem termina o curso. Postas as duas meias, quem sabe a educação brasileira agora andará melhor?

Nada contra dar algum dinheiro a quem tem pouco, sobretudo quando se gasta tanto com coisas inúteis. Mas, além do impacto fiscal, é preciso também ver se os programas cumprem seus objetivos. Num artigo anterior, eu disse duvidar de que o Pé-de-Meia para o ensino médio teria o efeito esperado de reduzir a evasão escolar e melhorar o desempenho estudantil. A evasão se dá, sobretudo, quando jovens mais pobres, da rede pública, chegam aos 18 anos e já ficaram para trás, sem entender nem se motivar pelo que é ensinado, e não veem perspectiva na corrida de obstáculos que é concluir o ensino médio tradicional, fazer o Enem e tentar entrar numa faculdade. Não me parecia, e continuo duvidando, que R$ 200 por mês e um bônus ao fim do curso vão alterar muito essa realidade. O que precisaria ser feito, e ficou pelo caminho, seria uma reforma aprofundada no ensino médio, criando alternativas efetivas de formação geral e profissional.

O novo Pé-de-Meia parte da constatação de que, nos países em que a educação é de qualidade, os professores são recrutados no terço superior dos que passam pelos diferentes sistemas de avaliação. No Brasil, seriam os que conseguem 700 pontos ou mais na média do Enem e optam por cursos em universidades públicas que, além de gratuitos, garantem uma boa renda – entre R$ 5 mil e R$ 10 mil por mês para engenheiros, R$ 13 mil e R$ 18 mil para médicos, R$ 8 mil para advogados. Para os que não conseguem, sobretudo mulheres mais pobres vindas de escolas públicas, uma opção são os cursos de licenciatura para ensinar na educação básica, em que o rendimento varia de R$ 4 mil a R$ 5 mil mensais.

O programa pretende lidar com isso oferecendo uma bolsa de R$ 1 mil por mês para quem consegue mais de 650 pontos no Enem, opta por um curso de licenciatura presencial e se compromete a trabalhar por cinco anos na rede pública. Candidatos que conseguem atingir essa nota – menos de 5% dos milhões que fazem o Enem a cada ano – tendem a vir de famílias de renda mais alta, os pais têm diplomas universitários, e estudaram em escolas particulares. Uma dúvida é se este estímulo seria suficiente para convencer essas pessoas a optar por uma carreira cujo rendimento é, ao longo da vida, metade ou menos do que outras que também estão a seu alcance. Outra dúvida é se o número de pessoas optando por essa bolsa faria alguma diferença. Segundo o Ministério da Educação (MEC), as universidades públicas estão oferecendo, este ano, 69 mil vagas para licenciaturas, com 310 mil inscritos, dos quais 19.339 tinham nota igual ou superior a 650 pontos no Enem (lembrando que cada candidato pode se candidatar a dois cursos diferentes). Uma gota d’água, comparado com 2,2 milhões de professores de educação básica no País, e 1,2 milhão de estudantes matriculados em licenciaturas no setor privado sem precisar passar pelo Enem.

Não há solução fácil para o problema da má qualificação dos professores, que não tem a ver somente com a má qualidade dos cursos de licenciatura, se são presenciais ou à distância, mas sobretudo com a bagagem precária com que a grande maioria chega ao ensino superior. Por muitos anos mais, estes serão os professores que teremos. Além de melhorar a qualidade dos cursos de formação, é preciso reforçar os processos de seleção e mentoria de novos contratados e apoiar a todos com supervisão apropriada, materiais didáticos e protocolos de ensino que garantam que seus estudantes terão interesse e aprenderão o que precisam. São práticas conhecidas que só dependem de determinação para ser adotadas.

No médio e longo prazos, para atrair talentos para o ensino, será necessário oferecer melhores salários e mais oportunidades de progressão. Com menos crianças nascendo, já é possível reduzir o número de turmas e pagar mais a menos professores. Será necessário também abrir a carreira, criando diferentes portas de entrada e saída, e não somente as licenciaturas tradicionais, sobretudo para professores de matérias específicas no fundamental II e no ensino médio, e de cursos de formação profissional. Com processos mais rápidos e práticos de qualificação e supervisão pedagógica, é possível atrair pessoas que dificilmente escolheriam passar a vida como professores da educação básica, mas que teriam interesse em ensinar como parte ou etapa de uma vida profissional mais ampla, e seriam exemplos e modelos para seus alunos. Médicos ensinando biologia, engenheiros ensinando computação, economistas ensinando estatística, técnicos ensinando a lidar com equipamentos.

Tudo isso, no entanto, é muito mais difícil e complicado do que, simplesmente, botar mais um dinheiro no pé-de-meia, que pode não dar certo, mas muita gente gosta.

 

Feliz ano novo, Brasília! Felipe Salto O Estado de S. Paulo

 quinta-feira, 13 de março de 2025

Feliz ano novo, Brasília!

Felipe Salto

O Estado de S. Paulo, 13/03/2025

Quanto às agendas mais estruturais, sou pessimista. Entendo que, daqui em diante, o governo só conseguirá fazer o ‘minimum minimorum’

 

O ano acaba de começar para o mundo de Brasília. Passadas as festividades do Carnaval, o Orçamento será debatido no Congresso Nacional. As pressões por medidas populistas chegam de todos os lados: mudança na faixa de isenção do Imposto de Renda, programas sociais e despesas em geral.

Já estamos em março e o País segue sem lei orçamentária. Para estes casos, as regras vigentes permitem ao governo executar um porcentual da proposta enviada ao Legislativo. São muitos os problemas a equacionar, como sempre, e falta a compreensão de que o dinheiro acabou e o tacho já foi raspado.

A tarefa mínima é cumprira meta estipulada para o resultado primário (receitas menos despesas, exceto juros da dívida). A meta é zero, com banda inferior, menos R$ 31 bilhões. Além disso, parte relevante dos precatórios, no valor de R$ 44,1 bilhões, pode ser excluída do resultado para fins de verificação da meta.

Em síntese, a meta provavelmente buscada pelo governo é um déficit de R$ 75,1 bilhões ou 0,6% do PIB. O número está bem distante do esforço necessário para atender às condições de sustentabilidade da dívida pública em prazo razoável.

Na proposta orçamentária, as receitas estão infladas. Prevê-se, por exemplo, receita proporcionada pela majoração da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e do Imposto de Renda nos Juros sobre Capital Próprio (JCP). Essas medidas já morreram. No caso da segunda, aliás, precisaria ter sido aprovada no ano anterior, conforme a Constituição.

A superestimativa é de R$ 60 bilhões. Assim, com receitas menores e despesas um pouco maiores que as previstas pelo governo, o cenário da Warren prevê uma necessidade de contingenciamento de mais de R$ 30 bilhões. A saber, o contingenciamento é uma espécie de corte de gastos em que a tesoura incide sobre as despesas não obrigatórias ou discricionárias. Não custa ressaltar que essa contenção serviria apenas à entrega de um déficit de R$ 75,1 bilhões (e não da meta zero).

É inescapável evitar que novas bombas fiscais e antigas pressões se materializem, inclusive no seio das revisões a serem promovidas na peça orçamentária. Os goleiros serão os principais jogadores, na Fazenda e no Planejamento, daqui até as eleições.

A liturgia do Orçamento compõe-se de etapas muito claras. A Comissão Mista de Orçamento (CMO) do Congresso terá de apreciar o texto do relator-geral. Este também será analisado e apreciado pelo plenário. Antes, caso o Executivo considere necessário (e será), o instrumento para solicitar alterações ao relator é o ofício.

Nos últimos dias, a imprensa já divulgou algumas informações sobre os programas Vale Gás e Pé-de-Meia, especialmente sobre como incorporar eventuais gastos adicionais no Orçamento anual. Além disso, há os mencionados problemas pelo lado das receitas. As despesas obrigatórias, por sua vez, contemplam subestimativas ou superestimativas, respectivamente, nos gastos previdenciários e com folha salarial. Mesmo problema que apontamos na proposta orçamentária para 2024, vale dizer.

No dia 22 de março, faça chuva ou faça sol, o Executivo é obrigado, por lei, a apresentar o relatório bimestral. Esse documento serve ao acompanhamento da execução orçamentária e subsidia eventuais contingenciamentos e/ou bloqueios de despesas previstas.

Quando a arrecadação se mostra inferior às estimativas, por exemplo, providencia-se o contingenciamento, garantindo o cumprimento das metas fiscais. O mesmo ocorre no caso do limite de gastos. Se as despesas estão indicando rompimento do limite, deve-se bloquear o volume necessário para evitar o estouro.

Em 2025, este primeiro relatório bimestral será ainda mais relevante. Em um cenário otimista, se o Orçamento já estiver aprovado e sancionado, o relatório servirá para que o Executivo promova o ajuste inicial necessário ao restabelecimento de uma credibilidade mínima junto à opinião pública. Alternativamente, se a proposta ainda estiver tramitando no Congresso, o relatório servirá para prestar contas sobre a realidade da arrecadação e do gasto no primeiro bimestre.

Diferentemente do que ocorreu em 2024, quando a arrecadação foi surpreendendo positivamente, a cada relatório bimestral, a tendência no ano corrente é oposta. É recomendável que se corrija a superestimativa da arrecadação, logo de cara, para evitar que as pressões sobre o gasto discricionário, as emendas e outros se transformem em compromissos, depois, irreversíveis. Disso dependerá o cumprimento da tarefa mínima que comentei acima, e sobre a qual escrevi na penúltima coluna neste espaço ( Estadão, 13/02/2025).

Quanto às agendas mais estruturais, sou pessimista. Entendo que, daqui em diante, o governo só conseguirá fazer o minimum minimorum. E já será muito, considerando-se tantos atores jogando contra, clamando por uma verdadeira enfiada de pé na jaca e colocando o presidente da República para fazer populismo, semanalmente, nos seus pronunciamentos.

A agenda fiscal estrutural já ficou para 2027. O próximo governo não poderá perder tempo e terá de realizar ajustes à altura de um primeiro ano de mandato. Tema, aliás, para futuro artigo.

 

terça-feira, 11 de março de 2025

Trump-Zelenski e o diálogo meliano - Rubens Barbosa O Estado de S. Paulo

Opinião:  Trump-Zelenski e o diálogo meliano

Poucas vezes a conhecida observação de que ‘a História se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa’ foi tão apropriada

Por Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 11/03/2025 | 03h00


O confronto entre os presidentes Donald Trump e Volodmir Zelenski na Casa Branca traz lembranças históricas e indica incertezas para o futuro.

Ocorreu-me recordar um episódio – o diálogo meliano – registrado pelo historiador grego Tucídides na sua conhecida História da Guerra do Peloponeso, retratando o conflito entre Atenas e Esparta, ocorrido em (431 a.C.-404 a.C.).

Melos, uma pequena ilha dórica no mar Egeu, optou por manter posição neutra na guerra. Atenas, visando a expandir seu império e a demonstrar seu poder, exigiu a submissão dos melianos. A negativa de Melos, baseada em princípios de justiça e na esperança de auxílio espartano, contrastava com a perspectiva implacável dos atenienses. Diante da recusa de Melos em se submeter, Atenas impôs sua vontade pela força: a cidade foi sitiada, seus homens executados e as mulheres e crianças tornadas como escravas.

Na negociação entre Atenas e Melos, em 416 a.C., os representantes atenienses afirmam que “o justo nas discussões entre os homens, só prevalece quando os interesses de ambos os lados são compatíveis e que os fortes exercem o poder e os fracos se submetem”. “Os fortes fazem o que podem e os fracos sofrem o que devem”. “A decisão é mais quanto à própria salvação, evitando oferecer resistência diante do que é muito mais forte”. “Melos não tem possibilidade de resistir e deve submeter-se para evitar sua destruição”. “Nenhum povo considera bom apenas o que lhe agrada e justo o que serve aos seus interesses”. “O interesse próprio anda lado a lado com a segurança, enquanto é perigoso cultivar a justiça e a honra”. “Meras esperanças, relativas ao futuro, são insuficientes para justificar qualquer expectativa de sucesso levando em conta os recursos disponíveis, comparados com aqueles que existem contra”. “Os que agem como convém em relação aos mais fortes procedem corretamente”. “Os desejos fazem ver o irreal como se já estivesse acontecendo”.

Por sua vez, os melianos, sustentando uma posição ética diante da opressão, argumentam que “a justiça deve prevalecer sobre a força” e que Esparta, sua aliada natural, virá em sua ajuda. Com isso, defenderam a legitimidade de sua neutralidade e a crença de que os deuses e a aliança com Esparta lhes favoreceria. “Para seus cidadãos, a amizade (com Atenas) é prova de fraqueza, o ódio (de Atenas) é uma demonstração de força”. “Ceder imediatamente é perder toda a esperança, mas a continuação da luta ainda poderá manter-nos de pé”.

O diálogo meliano é um exemplo do realismo político, em que a força e o interesse próprio prevalecem sobre a moralidade e a justiça. A crueza da afirmação “os fortes exercem seu poder e os fracos se submetem” reflete uma visão cínica das relações internacionais, que segue sendo atual na política internacional e oferece, ainda hoje, elementos para uma reflexão profunda sobre a natureza do poder e os limites dos ideais de justiça em um mundo dominado pela força e pelo interesse de autonomia dos países.

O episódio explicita o custo do uso da força e da brutalidade da guerra, bem como as limitações da justiça em um mundo dominado pelo mais forte. A negociação entre Atenas e Melos não só ilustra o realismo político já existente 400 anos antes de Cristo, mas também levanta questões universais sobre o poder, a justiça e a moralidade, temas que continuam a ser debatidos na política contemporânea.

O diálogo enfatiza a ideia de que a justiça só existe entre iguais em poder e de que a realidade das relações internacionais é marcada pela dominação dos mais poderosos. Impressiona a atualidade da postura ateniense de pragmatismo no contexto da realpolitik nos dias de hoje, com o uso da força econômica e comercial para obter vantagens políticas.

Tudo isso ficou exposto para o mundo na discussão acalorada no Salão Oval da Casa Branca, em frente às câmeras das televisões. “Você não tem cartas hoje para continuar a guerra”, “vocês vão perder o armamento que os EUA lhes fornecem”, a “Europa não tem condições de ajudar”. “Você tem de agradecer a vontade dos EUA em terminar a guerra, que vocês não têm condição de manter”, “sem os EUA você não tem nenhuma força”, foram algumas das afirmações de Trump, atualizando as frases do diálogo de Melos.

“Mostraremos claramente que é para o benefício de nosso império, e também para a salvação de vossa cidade, que estamos aqui dirigindo-vos a palavra, pois nosso desejo é manter o domínio sobre vós sem problemas para nós, e ver-vos a salvo para a vantagem de ambos os lados”, em outras palavras, parafraseando os atenienses, vociferou Trump a Zelenski.

O que aconteceu no Salão Oval – uma armadilha ao presidente ucraniano criada pelo presidente dos EUA e seu e vice – foi algo sem precedente nos 250 anos da história dos EUA. Poucas vezes a conhecida observação de que “a História se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa” foi tão apropriada para descrever um diálogo sobre como terminar uma guerra.

Se a política externa dos EUA se mantiver nos próximos anos, como explicitada no encontro – a ruptura do tratamento da Rússia como adversária dos últimos 60 anos e o distanciamento da Otan e da Europa – trará profundas transformações no cenário global e no próprio conceito de Ocidente.

 

Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), foi embaixador do Brasil em Londres (1994-99) e em Washington (1999-2004)

 

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/trump-zelenski-e-o-dialogo-meliano/


quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Entrar ou não entrar na OCDE - Rubens Barbosa (O Estado de S. Paulo)

Entrar ou não entrar na OCDE

Contrariando a política de governos anteriores, inclusive do PT, a atual gestão decidiu congelar as negociações
Por Rubens Barbosa
O Estado de S. Paulo, 25/02/2025

A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), um dos principais centros de discussão e definição das agendas econômica, comercial, financeira, social e ambiental global, é integrada por 38 países, inclusive Chile, México, Colômbia (governos de esquerda) e Costa Rica. A Argentina busca acelerar seu ingresso na organização.
Ao Brasil, seria importante ingressar na OCDE para poder influir no exame de questões que afetam os interesses nacionais e que serão reguladas internacionalmente neste ou em outros fóruns. Iniciadas na década de 1990, as relações do Brasil com a OCDE foram intensificadas gradualmente nos governos Cardoso, Lula e Rousseff. Em 2007, junto com outros cinco países, o Brasil virou “parceiro prioritário” da organização. Em 2015, o então chanceler Mauro Vieira assinou acordo de cooperação com a organização. Em 2017, o Brasil submeteu pedido de adesão à OCDE, mas o seu processo de acessão só foi iniciado em 2022, no governo Bolsonaro, juntamente com Argentina, Peru, Indonésia, Tailândia, Croácia, Romênia e Bulgária.
Depois de o conselho da organização aceitar um país como candidato, os membros definem o trajeto a ser seguido para a acessão. O passo inicial – que o Brasil já cumpriu – é a apresentação de memorando, pelo país candidato, contendo sua posição em relação aos instrumentos da OCDE (252 declarações, recomendações e decisões), com a possibilidade de estabelecimento de prazos e condições para a adesão. O Brasil já participa de todos os comitês técnicos da organização e contribui para as discussões e formulações de políticas internacionais, um dos aspectos mais relevantes quando se analisa a conveniência do ingresso brasileiro.
Contrariando a política de governos anteriores, inclusive do PT, a atual gestão decidiu congelar as negociações. No governo Lula 3, um grupo de trabalho foi criado, em agosto de 2023, para tratar do assunto, mas ele não se reúne com frequência. A primeira reunião de 2025 ocorreria no final de janeiro, mas foi adiada. O motivo foi que apenas 40% dos ministérios responderam, até agora, ao Itamaraty sobre as avaliações de impacto das medidas. Surge, agora, a notícia de que o governo Lula reavalia o memorando com os termos da adesão do Brasil à OCDE.
A organização é parte integrante do G-7 e do G-20 e subsidia os países-membros com dados e elementos de análise para as discussões. Mas, em 2024, pela primeira vez na história do G-20, o governo brasileiro resolveu rebaixar a OCDE como uma das organizações centrais na preparação para a Cúpula do Rio de Janeiro e inclui-la apenas como “convidada” em vários dos trabalhos do grupo.
A resistência do governo Lula em concluir os procedimentos de entrada na OCDE tem, principalmente, motivações ideológicas e políticas. Primeiro, uma premissa de que o “clube” tem um viés neocolonialista, pois é liderado por potências ocidentais que defendem a adesão dos demais países a uma série de regras. Isso num contexto em que esses setores do governo têm preferência por uma ordem mundial na qual o Sul Global e organismos como os Brics sejam priorizados. Segundo, há uma visão de que a OCDE vem se tornando um bloco com um viés mais político do que econômico. A organização, por exemplo, condenou a invasão da Ucrânia pela Rússia em fevereiro de 2023, o que gerou críticas da diplomacia brasileira por não ser uma instância diplomática. Politicamente, a resistência serve ainda como contraponto aos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, que tiveram como uma das prioridades em política externa a adesão ao bloco. Bolsonaro, inclusive, tratou diretamente do assunto com Donald Trump, em 2019, e ganhou o apoio público dele à reivindicação. A assessoria especial para assuntos internacionais da Presidência da República lidera a oposição ao ingresso na OCDE, com o apoio da Casa Civil, do PT e de parte do Itamaraty.
Dentro do próprio governo Lula, apesar da oposição do Palácio do Planalto, há setores favoráveis à adesão, como o Ministério da Fazenda, o do Planejamento e Orçamento, o do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços e a Controladoria-Geral da União.
Apesar de a resistência ideológica ter atrasado o processo, o Brasil continua a ter uma relação próxima com a OCDE. O chanceler Mauro Vieira já esteve, por duas vezes, na sede da organização em Paris. Em dezembro, houve a assinatura de um termo na área de integridade da informação, uma setor que o governo Lula, em geral, prioriza. Além disso, muitas instituições, como agências reguladoras (CVM e Cade), TCU e STF, além de governos estaduais, têm contato direto com a organização.
O momento para discutir a entrada ou não do Brasil na OCDE não poderia ser mais oportuno. A mudança a favor do acesso ajudaria a desfazer a percepção no exterior de que Brasília está deixando de ter uma atitude de equidistância nas disputas e tensões entre os EUA e a China/Rússia para se alinhar a um dos lados. O ingresso na OCDE mostraria a independência do Brasil, país ocidental, mas com crescentes interesses na Ásia, em especial no mercado chinês, e indicaria que o assunto é tratado como uma estratégia de Estado, com menos ideologia e mais pragmatismo.
Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), foi embaixador do Brasil em Londres (1994-99) e em Washington (1999-2004)

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/entrar-ou-nao-entrar-na-ocde/

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

A COP 30 no Brasil - Rubens Barbosa (O Estado de S. Paulo)

 Opinião:  A COP 30 no Brasil

Nunca em seus 500 anos o País esteve no centro de discussões sobre temas globais. Neste momento, o Brasil é voz que terá de ser ouvida

Por Rubens Barbosa

Estadão, 28/01/2025 | 03h00


A conferência anual dos países-membros da Convenção da ONU sobre Mudança de Clima, a ser realizada em Belém, em novembro de 2025, começa a apresentar-se como a mais desafiadora de toda a História.

Na sua trigésima edição, a COP do Brasil, e não da floresta, enfrentará desafios importantes na logística do encontro, na geopolítica global e nas negociações em função dos limitados avanços registrados na reunião da COP-16, sobre biodiversidade, em Cali, na Colômbia, e da COP-29, realizada em Baku, no Azerbaijão, apesar do apoio político manifestado na declaração da cúpula do G-20, recentemente realizada. A COP-30 deverá continuar a tratar dos temas de sua agenda, como o cumprimento do Acordo de Paris, de 2015, e a proteção das florestas e das agendas que saíram dos encontros em Cali e Baku, como financiamento climático, mercado de carbono, transição energética e biodiversidade.

A COP-30 ocorrerá assim em um ambiente preocupante, em que a temperatura do planeta pode estar se aquecendo acima do limite de 1,5ºC previsto no Acordo de Paris e as emissões de gás carbono, crescendo na contramão dos compromissos assumidos. Em termos geopolíticos, as dificuldades para a aprovação de financiamento para os países mais vulneráveis aumentaram, e o negacionismo ambiental atingiu o seu máximo com as políticas ambientais de Donald Trump.

Difícil imaginar o que poderá avançar da agenda que incluiria (1) acelerar a descarbonização com compromissos mais ousados para a redução das emissões de gás de efeito estufa até 2030, com o objetivo de limitar o aquecimento global a 1,5ºC; (2) apoiar políticas de adaptação para mitigar os impactos das mudanças climáticas, especialmente em países mais vulneráveis; (3) garantir que o financiamento necessário para os países em desenvolvimento esteja disponível; (4) implementar o artigo 6 do Acordo de Paris com a regulamentação do mercado de carbono para incentivar o investimento em tecnologias verdes e soluções climáticas; e (5) proteger a Amazônia e os biomas tropicais.

Do ponto de vista do Brasil, as questões relacionadas com o financiamento climático, transição energética justa, regulamentação do mercado internacional de carbono, preservação da Amazônia e cooperação entre o Sul Global certamente estarão entre as prioridades. Será o momento de insistir na observância das circunstâncias locais em temas como agricultura tropical e combustíveis fósseis na matriz energética.

Muitas serão as reuniões e discussões preparatórias para a defesa dos interesses brasileiros no encontro de 2025. Em algumas áreas, em função de disputas internas, ainda não estão claras as posições nacionais. Depois de meses de discussão, o embaixador André Corrêa do Lago foi designado como presidente da COP no Brasil e terá a responsabilidade de coordenar as reuniões e iniciativas durante o evento. As incertezas sobre as posições brasileiras continuam. Para definir as prioridades que o Brasil levará para a conferência, será necessário concluir as discussões internas. Será necessário um detalhamento de como se alcançar as metas mais ambiciosas (banda de 59% a 65%) para a redução de emissão de gás de efeito estufa, de investimentos na transição energética, além do Plano do Clima, a Estratégia Nacional de Biodiversidade, o Pacto pela Transição Ecológica, a Estratégia Nacional de Adaptação e Mitigação. Na questão do desmatamento da Amazônia, a redução anunciada para 2024 é significativa, mas as queimadas foram um retrocesso. Os ilícitos na Amazônia (desflorestamento, queimadas e garimpo ilegal) continuam e estão se agravando, sem que o Estado em seus três níveis apresente um plano consistente para assegurar seu poder em toda a região contra o crime organizado. A questão da pesquisa e exploração na Margem Equatorial terá de ser decidida.

O grande desafio para os trabalhos preparatórios e as discussões durante a realização da reunião de Belém está na saída dos EUA do Acordo de Paris e na baixa prioridade de Trump para as questões ambientais e mudança do clima. Donald Trump dificilmente comparecerá ao encontro no Brasil. A participação dos EUA poderá ocorrer com a presença de alguns Estados e instituições ambientais. As posições do presidente Javier Milei, da Argentina, poderão também dificultar a formação de consensos regionais. O risco de esvaziamento político da COP-30 é real.

Nunca em seus 500 anos o Brasil esteve no centro de discussões sobre temas globais. Neste momento, o Brasil é voz que terá de ser ouvida em questões ambientais, de transição energética e de mudança de clima.

A partir dos trabalhos preparatórios da COP-30, com os EUA pouco interessados, abre-se uma grande oportunidade para o Brasil assumir efetivamente a liderança global nas questões ambientais e de mudança de clima. Para tanto, seria necessária uma imediata e bem realizada coordenação entre governo, iniciativa privada e sociedade civil, de forma que se possa concretizar esse objetivo. Essa coordenação será essencial para a definição dos interesses estratégicos do Brasil na conferência. Se o Brasil não ocupar esse vazio político, certamente a Europa, com seu “Green Deal” e as medidas restritivas já adotadas, tenderá a assumir essa liderança.

O Brasil não pode perder mais essa oportunidade.

 

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE), É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS

 

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/a-cop-30-no-brasil/

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Admirável mundo novo - Rubens Barbosa (O Estado de S. Paulo)

 Admirável mundo novo

Estão governo e empresas brasileiras conscientes das mudanças e preparados para defender os interesses nacionais neste novo cenário mundial?

 

Opinião:  Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 24/12/2024


No meio de grandes transformações na economia e na ordem internacional, estamos entrando numa nova etapa histórica pela interação de diversos fatores de grande intensidade.

Em primeiro lugar, a supremacia ocidental econômica, financeira e militar dos últimos 200 anos está sendo questionada e, na visão de muitos, está sendo reduzida. O mundo começa a se dividir em um grupo de nações ocidentais (sem definição geográfica) – EUA, Europa, Japão, Austrália e outras – e, de outro, um crescente grupo de nações, liderado pela China, tendo como base o Brics, formado por dez países, com 13 nações convidadas como associadas e mais de uma dezena pedindo para integrá-lo. A influência dos EUA, como a nação mais poderosa do mundo, parece estar em declínio, como se vê na tentativa de conter o conflito no Oriente Médio.

Em segundo lugar, o rápido avanço das tecnologias em várias áreas – inteligência artificial, computação, biotecnologia –, o mais profundo da história da humanidade (maior, talvez, que a invenção da roda, que a revolução industrial e mesmo que a arma nuclear), sobretudo pela possibilidade de a inteligência artificial tomar decisões independentemente da ação humana, com profundas consequências políticas e econômicas globais.

Em terceiro lugar, as mudanças climáticas produzidas pela ação humana estão na raiz de uma crescente crise ecológica, com desastres em todos os continentes (furacões e inundações, queimadas, chuvas e secas) causando destruição e morte, além do crescimento do nível dos oceanos em razão do aquecimento global, ameaçando aumentar o número de refugiados.

Em quarto lugar, as instituições multilaterais criadas depois do fim da guerra, em 1945, para a preservação da paz e da segurança mundiais, não são mais capazes de responder a todos esses desafios por não mais serem representativas da nova geopolítica e da nova geoeconomia global. A Cúpula do Futuro, reunião convocada pelo secretário-geral da ONU, em setembro passado em Nova York, para examinar como poderia ser a governança num mundo multipolar em tempos de grandes mudanças e desafios para a humanidade, terminou esvaziada, sem qualquer perspectiva para indicar caminhos de uma nova governança global. As guerras na Ucrânia e no Oriente Médio em crescente tensão, pela invasão do Líbano e da Síria pelo exército israelense, com a possibilidade de escalada, continuarão a ter impacto na economia e na política global. Caso o conflito se estenda com um eventual ataque de Israel contra o Irã, com o apoio dos EUA, a situação poderá sair do controle, com a possível interferência de potências antiocidentais ao lado do Irã.

Um quinto fator poderia ser acrescentado. Um livro recente – A guerra por Outros Meios (War by Other Means, Harvard Press) – capta as mudanças na formulação e na execução das políticas internas e externas dos países. Um dos aspectos novos examinados é o uso de instrumentos econômicos e comerciais como um meio de alcançar objetivos geopolíticos. A relação entre poder econômico e geopolítica passa a ser fundamental no mundo atual. Nesse sentido, tornam-se elementos básicos a performance macroeconômica do país, a evolução da política econômica internacional e os instrumentos utilizados na busca dos objetivos geopolíticos.

A geoeconomia passou a ser um elemento crítico quando se analisa o papel de cada país neste novo mundo. A geoeconomia focaliza o uso da força por meio de instrumentos econômicos e comerciais para promover e defender os interesses nacionais, para produzir resultados geopolíticos favoráveis e efeitos positivos sobre os objetivos geopolíticos. As restrições à venda de chips para a China, a proibição de compra de roteadores chineses pelos EUA, as medidas protecionistas comerciais da União Europeia, com a desculpa de evitar o desmatamento de florestas, as políticas restritivas minerais da China e o congelamento unilateral de reservas de terceiros países são alguns exemplos da utilização de medidas econômicas como armas, criando verdadeiras guerras por outros meios.

No contexto da geoeconomia, a defesa da segurança nacional passa a ser frequentemente utilizada na ação política nos EUA, na China e em outros países. Utilizado de forma crescente como justificativa de medidas econômicas e comerciais, “o papel da segurança nacional na política e estratégia de comércio e investimento está aumentando em toda parte. Há mudanças na maneira como as pessoas estão abordando a questão da política comercial, a política econômica internacional e isso é verdade nas economias de mercado do mundo todo”, como reconheceu alto funcionário norte-americano. As prioridades econômicas e as novas preocupações com a segurança nacional (que pode incluir tudo) se fundem e tornam superados os conceitos de liberalismo e livre mercado.

Essas são as novas realidades globais. Os países terão de se ajustar para conseguir defender com êxito seus próprios interesses, mas, em primeiro lugar, terão de definir seus objetivos estratégicos, fortalecer os fundamentos de sua economia e ter uma clara visão de seus interesses de médio e longo prazos.

Estão governo e empresas brasileiras conscientes dessas mudanças e preparados para defender os interesses nacionais neste novo cenário?

 

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE), É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS

 

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/admiravel-mundo-novo/

domingo, 12 de janeiro de 2025

Trump, o Brasil e o mundo pós-2025 Pedro Malan O Estado de S. Paulo

Trump, o Brasil e o mundo pós-2025

Pedro Malan

O Estado de S. Paulo, domingo, 12 de janeiro de 2025

 

O futuro, que tem por ofício ser incerto, está a se tornar ainda mais incerto, imprevisível e perigoso. São momentosas as razões para que seja assim. A relação cada vez mais conflituosa entre os EUA e a China nas áreas econômica, tecnológica e militar; o agravamento dos conflitos no Oriente Médio; a belicosidade da Rússia em relação à Europa; o desenvolvimento vertiginoso da inteligência artificial e seu potencial de uso no desenvolvimento de armas mais letais como também em campanhas de propaganda política e desinformação. Tudo sob o dramático pano de fundo da mudança climática, do risco de aumento de endemias e de grandes fluxos migratórios que com grande frequência causam virulentas reações.

A avassaladora vitória eleitoral de Donald Trump deve a seus olhos constituir um claro mandato para intensificar seu peculiar modus operandi e sua visão sobre o que significa fazer a América “great again”. Anos atrás, a revista The Economist sugeriu que as ações de Trump seguiam um roteiro padrão, composto de três atos: fazer ameaças, alcançar acordos (propiciados pelas ameaças) e declarar vitória sempre (“make threats, strike deals, always declare victory”).

A julgar por suas declarações e postagens neste momento que antecede sua posse no próximo dia 20, esse script vem sendo seguido à risca por Trump, em várias frentes. Ameaçou impor tarifas (“a palavra mais bonita do dicionário”) de até 60% sobre produtos chineses, e de 25% sobre seus dois parceiros do acordo Nafta, Canadá e México. E também a produtos importados da Dinamarca, caso esta não concorde com seu “projeto” para a Groenlândia, “questão vital para a segurança nacional norteamericana”. Noticiou o propósito de assumir o controle do Canal do Panamá e de mudar o nome do Golfo do México para Golfo da América. Exibiu um mapa coberto com a bandeira norte-americana que alcança todo o território do Canadá, ao qual já se referiu como o 51.º Estado norte-americano. E voltou a pressionar os países europeus para que elevem, agora para 5% do Produto Interno Bruto (PIB), seus gastos em defesa.

E o Brasil, nesse complexo contexto? Nosso país terá neste ano de 2025 a dupla e grande responsabilidade, na área internacional, de presidir a COP-30 e a reunião anual do grupo Brics, agora ampliado para dez países integrantes. Ambas a serem realizadas no Brasil, ambas a exigir exaustivas negociações diplomáticas para que possam vir a ser consideradas exitosas. Não será tarefa fácil, dado o conturbado contexto doméstico, o quadro regional de grande instabilidade e uma situação global que inspira grande apreensão dos pontos de vista econômico e geopolítico.

O protagonismo do Brasil, sua voz, seu prestígio, sua influência na cena internacional são em larga medida afetados pela percepção que tenha o resto do mundo sobre nossa influência e gravitas em nossa própria região. E, ainda mais importante, sobre como estamos equacionando nossos inúmeros problemas domésticos nas áreas econômica, social e político-institucional.

A propósito, será proximamente lançado livro, organizado por Ana Carla Abrão Costa, Ana Paula Vescovi e por mim, em homenagem ao extraordinário Eduardo Guardia, que tão cedo nos deixou. O artigo que escrevemos Ana Carla e eu, intitulado Desafios fiscais crescentes para 2026 e muito além, abre com a seguinte epígrafe de Eduardo Guardia: “Estamos num momento muito delicado no Brasil. Somos um país que tem oportunidades enormes. Vejo isso hoje no mercado de capitais: novas tecnologias, novos setores. Mas vamos olhar o País como um todo e enxergar os problemas que ou simplesmente não estamos conseguindo resolver ou estamos empurrando para debaixo do tapete. Essa é a grande obrigação de todos nós. Temos que ter uma compreensão dos desafios, temos de exigir que o País caminhe na direção correta, porque estamos acumulando uma quantidade imensa de problemas que vão tornando as soluções mais custosas, mais difíceis”.

Essas palavras, proferidas em 2021, retêm relevância e urgência para o debate que deveria ter lugar no caminho que nos levará às eleições de outubro 2026 – e muito além. Democracias de grandes massas urbanas (o Brasil é a terceira maior do mundo) não são propensas a adotar ações que gerem no curto prazo custos para interesses específicos muito vocais, e benefícios difusos e de longo prazo para a maioria. Que por vezes o façam, é consequência de uma liderança incomumente corajosa ou de um eleitorado que compreende os custos de adiar escolhas difíceis. Liderança corajosa e competente é coisa rara, mas também é raro um eleitorado informado e comprometido.

O que exige educação para a liberdade. A qual, segundo Aldous Huxley, “deve começar com a apresentação de fatos e enunciação de valores e deve prosseguir, desenvolvendo técnicas adequadas para realizar esses valores e combater aqueles que, por qualquer razão, optam por ignorar os fatos ou negar os valores”. E no mesmo Admirável Novo Mundo Revisitado: “A sobrevivência da democracia depende da capacidade de um grande número de pessoas de fazer escolhas realistas à luz de informações adequadas”. É preciso que nos empenhemos para que seja esse o nosso caso.

Parabéns ao Estadão pelos 150 anos. Que venham os próximos! •


domingo, 5 de janeiro de 2025

O Decálogo do Estadão: seus princípios e valores - O Estado de S. Paulo

A missão do ‘Estadão’

Desde a edição inaugural, em 1875, este jornal se apresenta ao País como um patrono da defesa da liberdade e do espírito republicano; conheça os valores que guiam ‘O Estado de S. Paulo’ há 150 anos

04/01/2025

Desde sua fundação, em 1875, o jornal O Estado de S. Paulo presta serviço à causa da liberdade, aos valores republicanos e ao progresso do Brasil. O decálogo que vai a seguir resume esses princípios, reafirmados diariamente em todas as plataformas do Estadão, como uma renovação permanente da missão de lutar por um País mais justo e próspero para todos os brasileiros.

1. Desde a edição inaugural, ainda como A Província de São Paulo, em 4 de janeiro de 1875, este jornal se apresenta ao País como um patrono da defesa da liberdade e do espírito republicano.

2. O Estadão é um jornal de alma liberal, valorizando a liberdade individual, o empreendedorismo, a propriedade privada, a igualdade perante a lei e a limitação do poder estatal. Para tanto, a liberdade de imprensa é um imperativo, uma vez que o poder estatal sem a devida fiscalização de uma imprensa livre e independente tende a ser arbitrário e corrupto.

3. O Estadão é desde sempre um jornal independente e apartidário, condição que lhe permite estar “em posição de escapar às interposições do governo, às paixões partidárias, e às seduções inerentes aos que aspiram ao poder”, como se lê em seu editorial inaugural.

4. O Estadão exerce constante vigilância sobre o exercício do poder, que deve ser direcionado para o bem comum, e não para o benefício de oligarquias. Nesse sentido, o jornal é intransigente defensor do equilíbrio entre os Poderes da República e do princípio federativo.

5. Defender a liberdade de forma intransigente e não se deixar influenciar pelas pressões e modismos de seu tempo requer coragem. O Estadão é um jornal que diz o que precisa ser dito e defende o que acredita ser o certo. Não é por outra razão que, há 150 anos, o Estadão é a consciência crítica de seu tempo.

6. O Estadão tem lado: jamais abrigará em suas páginas opiniões que atentem contra seus princípios democráticos e republicanos.

7. Este jornal é uma tribuna inabalável de defesa da democracia contra o populismo, a demagogia, o extremismo e todas as formas de autoritarismo. Nos momentos de sua história sesquicentenária em que seus valores foram desafiados pela força dos poderosos de turno, o Estadão se manteve aferrado a seus princípios fundadores, não raro pagando um alto preço pela independência.

8. O Estadão é um jornal irredutivelmente apegado ao regime da lei, em particular ao princípio republicano fundamental: a igualdade de todos os cidadãos perante a lei. Não há democracia sem respeito às leis.

9. O Estadão defende que o Brasil se torne um país mais próspero e justo por meio de políticas públicas destinadas a mitigar a brutal desigualdade socioeconômica que insiste em dividir os brasileiros entre cidadãos de primeira e de segunda classe. O desenvolvimento virá de ações – públicas e privadas – que promovam crescimento econômico sustentado e ambientalmente responsável.

10. O Estadão acredita que a responsabilidade fiscal e a impessoalidade na administração pública são o único caminho para a construção de um Estado que seja eficiente, nem grande nem mínimo, isto é, apto a atender às necessidades mínimas dos cidadãos para uma vida digna, com o manejo racional e transparente dos recursos públicos.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

‘Smart autonomy’ para a política externa brasileira - Leonardo Paz Neves (O Estado de S. Paulo)

 Opinião

‘Smart autonomy’ para a política externa brasileira

Nova abordagem reconhece importância do multilateralismo, mas também vê como crucial aprofundamento da relação com países-chave

Por Leonardo Paz Neves

O Estado de S. Paulo, 23/12/2024


A política externa brasileira foi, nas últimas décadas, caracterizada por uma lógica de autonomia nacional. Sua primeira abordagem, conhecida como autonomia pelo distanciamento, foi adotada durante o regime militar. Ela não indicava uma ruptura com nenhuma das duas superpotências globais à época, mas sim um distanciamento dos projetos de poder ideológicos dos Estados Unidos e da União Soviética. Durante a década de 1990 do pós-guerra fria, a política externa brasileira entra em uma nova fase: a da autonomia pela participação. O governo do presidente Fernando Henrique Cardoso identifica que o fenômeno da globalização era uma “força irresistível”, apostando no projeto multilateral e no fortalecimento dos instrumentos e regimes internacionais.

Já durante os governos do Partido dos Trabalhadores, uma nova lógica foi adotada: a da autonomia pela diversificação, refletindo um novo cenário internacional, com assunção desse grupo emergente ao centro dos espaços de decisão da governança global. A criação do G-20 na virada do século já dava o tom dessa tendência. Mais forte e autoconfiante, o governo do presidente Lula da Silva buscou, sem prejuízo da sua relação com os EUA e com o Ocidente, diversificar seu leque de parcerias internacionais. Fomentou a criação de um conjunto de espaços de diálogo e buscou institucionalizar algumas relações mais estratégicas, como Brics, Fórum de Diálogo Índia, Brasil e África do Sul (Ibas) e União de Nações Sul-Americanas (Unasul).

Com a chegada de Donald Trump à presidência dos EUA, a vitória do Brexit no Reino Unido e o fortalecimento de grupos antiglobalistas, os ventos do multilateralismo e das apostas pela globalização perderam força. A intensificação da rivalidade entre EUA e China, a eclosão da covid-19, a guerra da Ucrânia e o retorno de Trump ao poder nos EUA parecem ter consolidado o que começamos a ver em 2016. Vivemos uma nova era, um retorno das rivalidades geopolíticas em que o combate às novas ameaças internacionais e o desenvolvimento de bens públicos globais ficam submetidos às agendas políticas e de segurança das principais potências.

É nesse novo contexto que a diplomacia brasileira precisa se reinventar de modo inteligente e pragmático para que o País possa mitigar os efeitos dos novos desafios e aproveitar as escassas oportunidades para o desenvolvimento. Assim, propomos uma nova lógica: a da autonomia inteligente (smart autonomy).

Hoje, o Brasil não pode prescindir de ter ótimas relações com a China e os EUA. O Brasil não tem o luxo de escolher. Os EUA são a nossa principal origem e destino de investimento direto externo, é onde está localizada a nossa maior diáspora e é um país com o qual compartilhamos profundos laços culturais. A China é nosso principal parceiro comercial e financiador de nosso superávit externo, é a principal economia do mundo e é o centro nevrálgico da região mais dinâmica do planeta. Ambos os países são indispensáveis para o desenvolvimento do Brasil. Seremos, sem dúvida, pegos no fogo cruzado no futuro (vide pressão americana em relação à adoção da tecnologia 5G). Saber navegar entre os interesses geopolíticos da China e dos EUA, sem alienar nenhum dos dois ou sofrer danos econômicos mínimos, será uma arte.

O multilateralismo está em baixa, mas isso não significa que devamos abandonar um bem tão precioso da sociedade internacional moderna. É apenas através dele que conseguiremos mitigar os principais desafios do nosso tempo, como mudança climática, emergências sanitárias, cibersegurança, etc. No entanto, não deve ser nossa única aposta. Já fizemos essa opção ao apostar tudo na solução multilateral da Rodada Doha, da Organização Mundial do Comércio (OMC), e perdemos o timing para avançar em outras parcerias comerciais. Com isso, vimos nossa participação no comércio internacional ficar estagnada por décadas.

Em paralelo à defesa do multilateralismo, nossa estratégia deve também ser mais agressiva no estabelecimento de parcerias táticas com países que também veem na sua internacionalização um caminho para o seu desenvolvimento, e estão menos presos a interesses geopolíticos. Destaco o caso da Coreia do Sul, que é um país que tem o seu desenvolvimento dependente de sua inserção internacional, além de ter uma economia dinâmica e complementar à brasileira. Possui tecnologia avançada em setores críticos para o nosso desenvolvimento, como comunicação e energia (a exemplo do hidrogênio verde e semicondutores). A relação com a Coreia sofreria menos limitações em razão de questões geopolíticas.

Nesse sentido, a smart autonomy é uma abordagem flexível e pragmática. Ela foca na construção de uma agenda positiva com ambas as potências do nosso tempo, ao mesmo que tenta evadir-se das pressões geopolíticas impostas por elas. A smart autonomy reconhece a importância do multilateralismo, mas ao mesmo tempo vê como crucial o engajamento tático no aprofundamento das relações com alguns países-chave. Deveríamos formular estratégias mais robustas para nos adequar a essa abordagem. Afinal, países como Coreia do Sul, Índia e Indonésia podem ser fundamentais para nosso desenvolvimento futuro.


Opinião por Leonardo Paz Neves

É pesquisador do Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional Fundação Getulio Vargas (FGV NPII)

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Mercosul revigorado - Rubens Barbosa O Estado de S. Paulo,

 Opinião: Mercosul revigorado

Com a futura assinatura do acordo com a UE, o bloco sul-americano pode iniciar um círculo virtuoso de inserção internacional

Por Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 10/12/2024 


A reunião presidencial do Mercosul, em Montevidéu, na semana passada, foi uma das mais importantes desde sua criação em 1991, em função da decisão dos países do Mercosul e da União Europeia (UE) de dar por concluída definitivamente a negociação do acordo de parceria em discussão há 30 anos.

Com a futura assinatura do acordo com a UE, o Mercosul sai do isolamento e pode iniciar um círculo virtuoso de inserção internacional. Foi assinado acordo comercial com o Panamá e iniciadas conversações com os Emirados Árabes Unidos.

Na fase mais recente, em 2019, Mercosul e UE acordaram os principais trade-offs da negociação, como as diversas cotas em bens agrícolas acertadas entre o Mercosul e a UE. Em 2023/2024, foram propostos reajustes para preservar a capacidade do Estado para alavancar políticas de interesse público, como em compras governamentais (foram excluídas todas as compras do SUS do capítulo de compras, pela importância que possuem para o acesso a medicamentos, assim como para reforçar o sistema produtivo de medicamentos). Para equilibrar algumas partes do acordo, foram recusados os termos do documento adicional (side letter) sobre comércio e desenvolvimento sustentável apresentado no início de 2023 pela UE. De forma inédita, foi agora estabelecido um mecanismo para evitar que medidas unilaterais das partes prejudiquem o equilíbrio estabelecido no acordo, pois tais medidas têm o potencial de comprometer concessões comerciais negociadas e desequilibrar o resultado acordado. Após o “acordo político” de 2019, a UE adotou legislações que, a depender da forma como sejam implementadas, poderão romper o equilíbrio do entendimento de 2019 em temas que não foram renegociados na etapa iniciada em 2023. É o caso, por exemplo, das cotas oferecidas pela UE para a exportação de carnes do Mercosul, que não foram reabertas na etapa de 2023. Estabeleceu-se que uma arbitragem definirá se houve esvaziamento dos compromissos assumidos e em que montante, independentemente de ter havido violação ou não do acordo. Se for o caso, a parte que restringiu o comércio deve oferecer compensações comerciais (abertura de mercado) ao outro lado. Se não houver acordo quanto à compensação, há direito à “retaliação” (suspensão de benefícios previstos no acordo), no montante definido em arbitragem, com vistas a restabelecer o equilíbrio do que foi negociado.

Em mais de 30 anos de existência, o Mercosul negociou acordos comerciais de pouca relevância para a economia nacional (Egito, Israel, Cingapura e, em breve, entrará em vigor o com a Palestina). O acordo com a UE, o segundo mercado (16%) para o Brasil, de mais de 800 milhões de pessoas e 27 países, é de longe o mais importante até aqui e manda uma mensagem poderosa à comunidade internacional quanto à colaboração ampliada entre duas regiões que defendem os mesmos valores e interesses, além de sinalizar o fim do isolamento do Mercosul. Cerca de 90% dos produtos dos dois países terão tarifa zero no primeiro ano do acordo.

Para o Brasil, a assinatura do acordo reforça a projeção externa do País e fortalece a política de independência e equidistância em uma das questões geopolíticas que dividem hoje o mundo: as tensões entre os EUA e a China. No caso da UE, amplia as áreas de contato com uma região líder em segurança alimentar, energia limpa e que passou a priorizar o meio ambiente. É importante lembrar que não se trata apenas de um acordo comercial, mas também de um ambicioso acordo de associação estratégica com a União Europeia, que inclui três vertentes: a política, a de cooperação e a do livre comércio. Em seguida, deverá ser assinado o acordo com a Efta, a Associação Europeia de Livre Comércio, integrada por Suíça, Noruega, Islândia e Liechtenstein.

As transformações na economia e na ordem global tornam o acordo entre o Mercosul e a UE ainda mais estratégico tanto para o Mercosul quanto para a União Europeia. Os dois lados perceberam que esse acordo, no contexto atual, representa mais do que interesses comerciais e passa a ser importante também pelas implicações geopolíticas globais.

Resta agora a assinatura e aprovação dos acordos de diálogo político, de cooperação e de livre comércio. O comercial, pelo Conselho da União Europeia e pelos Congressos dos países do Mercosul, e os demais pelos Parlamentos dos países-membros da UE. A oposição da França, da Itália e da Polônia ao comercial terá de ser superada pela maioria liderada pela Alemanha, Portugal e Espanha.

Outra matéria importante incluída na pauta do Mercosul foi o pedido da Argentina para que seja revista, para dar maior flexibilidade, a regra da Resolução 32 pela qual as negociações de acordos comerciais devem ser feitas conjuntamente pelos países-membros. Com isso, o governo argentino espera poder negociar acordo de livre comércio isoladamente com os EUA, embora pareça pouco provável que os EUA mudem sua política e abram negociações comerciais com a Argentina. A proposta argentina não tem chance de ser aceita pelos países do Mercosul (e agora a UE também vai demover Javier Milei), mas adquire um caráter sensível porque a Argentina coordenará os trabalhos do Mercosul no primeiro semestre de 2025.

 

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE), FOI COORDENADOR NACIONAL DO MERCOSUL

 

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/mercosul-revigorado/


domingo, 1 de dezembro de 2024

Uma luz no fim do túnel - Bolívar Lamounier (O Estado de S. Paulo)

Uma luz no fim do túnel

Bolívar Lamounier

O Estado de S. Paulo.

30 de nov. de 2024

A desordem política em que o Brasil vive há mais de duas décadas decorre de três fatores: o pequeno número de pessoas genuinamente vocacionadas para a vida pública, deformações grotescas em nosso sistema institucional e, mais importante, a obscena desigualdade de nossa sociedade.

Aos fatores acima haveria que acrescentar o quadro mundial, no qual despontam ditadores como Nicolás Maduro, um presidente condenado eleito para a presidência dos Estados Unidos e ditaduras totalitárias como as da Rússia, China e Coreia do Norte. Vladimir Putin chega a ameaçar o mundo abertamente com o recurso a seu gigantesco arsenal nuclear.

Quanto ao Brasil, a escassez de vocações políticas a que me refiro diz respeito ao excesso de indivíduos ávidos por viver “da política” e não “para a política”. O quase total desaparecimento da geração de líderes do Congresso constituinte (1987-1988) deixou aberto o espaço para o discurso ideológico vazio do PT, o populismo de Lula da Silva e um Congresso no qual, com as exceções de praxe, pululam larápios e trapaceiros. Essa “oferta” molda a “demanda”, ou seja, aprofunda o descrédito da instituição legislativa, que afugenta possíveis bons candidatos e assim por diante, num círculo vicioso cujo fim não está à vista.

As deformações do sistema político-institucional têm sido amplamente discutidas, sem que apareçam lideranças lúcidas, dispostas a agarrar pela unha o touro da reforma política. Sabemos que o sistema presidencialista de governo é ruim mesmo onde haja partidos políticos; onde não os há, como é o nosso caso, é péssimo. Associado a contínuas rixas entre os Três Poderes, na contramão do que a Constituição estipula, não há como visualizar um panorama diferente desse que Brasília nos oferece dia sim, outro também.

Contudo, para avaliar a hipótese da descida aos infernos, como ocorreu na Argentina, é preciso repisar o óbvio: somos uma das sociedades mais desiguais do planeta. Uma minoria inferior a 10% açambarca metade da riqueza nacional e não assume o que deveria ser sua cota de responsabilidade na arrumação do País. Na parte inferior da pirâmide social, podemos dizer sem medo de errar que 30% dos cidadãos são incapazes de transmitir num simples bilhete o que tenham ouvido pelo telefone. São infracidadãos. Na última eleição municipal, o alto índice de abstenção resultou deste conjunto de elementos: candidaturas em sua maioria inexpressivas, ausência de propostas realistas para a melhoria da vida nas cidades, desânimo geral.

Sendo a realidade o que acima resumidamente se expôs, nada há a estranhar no desinteresse generalizado pela atividade política. Menos ainda quando se considera que a pequena parte capacitada da elite não tem sabido como motivar os eleitores e reverter tais tendências. Menos ainda a estranhar que o desinteresse se agudize entre os jovens, se a eles não se oferece o que mais lhes interessa: um mínimo de esperança. Esta, outrora, se consubstanciava nas ideologias, hoje moribundas, fato que só não enxergam os que não querem enxergar, ou que se valem de mitos ideológicos a fim de organizar partidos de araque, através dos quais assegurem acesso ao erário, a empregos públicos e prebendas, que são seus meios de vida.

Mas, exultai, uma luz começou a reluzir no fim do túnel. Ainda Estou Aqui, o já celebrado filme de Walter Salles, despertou os corações e mentes, notadamente no seio da juventude. Mostrou que os cidadãos, de todas as idades, não viraram as costas à vida pública. Desde que verdades relevantes lhes sejam ditas, com franqueza, clareza e competência, seus corações despertam. O filme vai fundo num dos episódios mais macabros do período dos governos militares, o desaparecimento do deputado Rubens Paiva, narrado em livro por seu filho Marcelo Rubens Paiva. Esse fato não ocorreu na pré-história, ocorreu algumas décadas atrás, mas só agora chega com toda a sua força dramática aos jovens, seja porque a informação lhes tenha sido sonegada, seja porque só agora surgiu um grupo de artistas com competência para relatá-lo como deve ser relatado: em sua simples verdade.

O êxito do trabalho de Walter Salles suscita uma questão muito mais ampla. Nós, brasileiros, não conhecemos nossa história. Não a conhecemos em seus momentos horrendos, que foram muitos, nem nos relativamente promissores, que foram poucos e curtos, mas existiram.

Essa constatação permitenos ousar mais um pouco, ampliando esta reflexão: por maior que seja o descrédito das instituições, por mais generalizadas e cruéis que sejam nossas desigualdades sociais, é possível enfrentá-las com esta arma simples: a oferta de verdades relevantes.

A mudança de atitude sugerida no parágrafo anterior vai muito além do sempre desejável adensamento da cidadania. Diz respeito à prevenção da grave crise que já nos espreita. Sabemos todos que um ajuste fiscal sério é a condição sine qua non para a retomada do desenvolvimento econômico e social. Mas a bússola pela qual se pretende orientar o País é ainda a polarização idiota que temos vivido desde 2016. 


sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Bolsonaro nu - Editorial O Estado de S. Paulo

Bolsonaro nu

Editorial O Estado de S. Paulo, 28/11/2024

Ninguém precisava da PF para saber que Bolsonaro é golpista. Mas as investigações são úteis porque o despem de vez dos trapos retóricos com os quais ele tentou se travestir de democrata

O relatório final da Polícia Federal (PF) sobre a tentativa de golpe de Estado que teria sido urdida no seio do governo de Jair Bolsonaro para aferrá-lo ao poder decerto não surpreendeu quem acompanhou minimamente a vida pública do ex-presidente. Desde quando saiu do Exército em desonra, passando por uma frívola carreira parlamentar – que, se prestou para alguma coisa, foi para enriquecê-lo, além de sua família – até chegar à Presidência da República, Bolsonaro jamais traiu seu espírito golpista. De mau militar e mau deputado a mau presidente, foram quase 40 anos de exploração da insurreição e da infâmia como ativos políticos.

Este jornal, seguramente, não está surpreso com o que veio a público após o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), levantar o sigilo sobre o referido relatório. Afinal, faz quase 25 anos que já sublinhávamos nesta página o vezo parasitário de Bolsonaro no Brasil pós-redemocratização, chamando-o pelo que é: um desqualificado que se serve das mesmas liberdades democráticas que sempre quis obliterar (ver o editorial Dejetos da democracia, 8/1/2000).

A rigor, ninguém precisava de um relatório policial de mais de 800 páginas para saber que Bolsonaro é um golpista inveterado. Quem já votou nele ao longo da vida pode alegar tudo, menos desconhecimento de sua índole destrutiva. Mas, para quem quiser, aí está o portentoso material reunido pela PF a encadear fatos e personagens com notável robustez, além de desnudar o espírito insurreto que jamais deixou de guiar o ex-presidente ao longo de sua trajetória.

Segundo a PF, Bolsonaro “planejou, atuou e teve domínio de forma direta e efetiva” das tramoias para impedir a posse do presidente Lula da Silva, o que teria incluído até um suposto plano para assassiná-lo, entre outras autoridades. E não só entre novembro e dezembro de 2022, mas durante todo o mandato – que, recorde-se, começou com a disseminação de mentiras sobre a suposta “fragilidade” das urnas eletrônicas. Ainda de acordo com a PF, essa desabrida campanha de desqualificação do sistema eleitoral já era parte do plano golpista de Bolsonaro para se insurgir contra um resultado nas urnas que não fosse a sua reeleição, contando que a desconfiança que semeou entre milhões de brasileiros poderia lhe ser útil no futuro.

É fundamental frisar que ainda se está em fase de inquérito policial. De modo que o contraditório e a ampla defesa só estarão plenamente garantidos aos 37 indiciados, como é próprio do Estado Democrático de Direito, mais à frente, vale dizer, se e quando a Procuradoria-Geral da República (i) oferecer denúncia contra eles, (ii) as acusações forem aceitas pelo STF e (iii) o caso, então, entrar na fase judicial propriamente dita. Entretanto, as eventuais provas que poderão ser apresentadas à Justiça pelo parquet, obviamente, serão decisivas apenas, por assim dizer, para o destino penal de Bolsonaro. Já sobre seu golpismo não há prova mais cabal de que se trata de um inimigo figadal da democracia do que seu próprio passado.

Nesse sentido, é estarrecedor ainda haver no seio de uma sociedade que se pretende livre e democrática quem admita a presença de alguém como Bolsonaro na vida política. Ou pior, que enxergue como “democrata”, “patriota”, “vítima do sistema” ou baboseira que o valha um sujeito de quinta categoria que já defendeu o fechamento do Congresso, lamentou o “baixo número” de concidadãos torturados e mortos nos porões da ditadura militar, pregou o fuzilamento do presidente Fernando Henrique Cardoso e trata adversários políticos como inimigos a serem eliminados, inclusive fisicamente. Ademais, Bolsonaro jamais desestimulou as manifestações de teor golpista realizadas em seu nome, como os acampamentos na frente de quartéis País afora. Tudo indica que não o fez para falsear um “clamor popular” pelo golpe e, assim, pressionar as Forças Armadas a apoiálo na intentona – o que, para o bem do Brasil, não ocorreu.

A Justiça, primeiro, e a História, depois, hão de ser implacáveis com Bolsonaro e todos os que flertaram com a destruição da democracia no Brasil.