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quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Mercosul revigorado - Rubens Barbosa O Estado de S. Paulo,

 Opinião: Mercosul revigorado

Com a futura assinatura do acordo com a UE, o bloco sul-americano pode iniciar um círculo virtuoso de inserção internacional

Por Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 10/12/2024 


A reunião presidencial do Mercosul, em Montevidéu, na semana passada, foi uma das mais importantes desde sua criação em 1991, em função da decisão dos países do Mercosul e da União Europeia (UE) de dar por concluída definitivamente a negociação do acordo de parceria em discussão há 30 anos.

Com a futura assinatura do acordo com a UE, o Mercosul sai do isolamento e pode iniciar um círculo virtuoso de inserção internacional. Foi assinado acordo comercial com o Panamá e iniciadas conversações com os Emirados Árabes Unidos.

Na fase mais recente, em 2019, Mercosul e UE acordaram os principais trade-offs da negociação, como as diversas cotas em bens agrícolas acertadas entre o Mercosul e a UE. Em 2023/2024, foram propostos reajustes para preservar a capacidade do Estado para alavancar políticas de interesse público, como em compras governamentais (foram excluídas todas as compras do SUS do capítulo de compras, pela importância que possuem para o acesso a medicamentos, assim como para reforçar o sistema produtivo de medicamentos). Para equilibrar algumas partes do acordo, foram recusados os termos do documento adicional (side letter) sobre comércio e desenvolvimento sustentável apresentado no início de 2023 pela UE. De forma inédita, foi agora estabelecido um mecanismo para evitar que medidas unilaterais das partes prejudiquem o equilíbrio estabelecido no acordo, pois tais medidas têm o potencial de comprometer concessões comerciais negociadas e desequilibrar o resultado acordado. Após o “acordo político” de 2019, a UE adotou legislações que, a depender da forma como sejam implementadas, poderão romper o equilíbrio do entendimento de 2019 em temas que não foram renegociados na etapa iniciada em 2023. É o caso, por exemplo, das cotas oferecidas pela UE para a exportação de carnes do Mercosul, que não foram reabertas na etapa de 2023. Estabeleceu-se que uma arbitragem definirá se houve esvaziamento dos compromissos assumidos e em que montante, independentemente de ter havido violação ou não do acordo. Se for o caso, a parte que restringiu o comércio deve oferecer compensações comerciais (abertura de mercado) ao outro lado. Se não houver acordo quanto à compensação, há direito à “retaliação” (suspensão de benefícios previstos no acordo), no montante definido em arbitragem, com vistas a restabelecer o equilíbrio do que foi negociado.

Em mais de 30 anos de existência, o Mercosul negociou acordos comerciais de pouca relevância para a economia nacional (Egito, Israel, Cingapura e, em breve, entrará em vigor o com a Palestina). O acordo com a UE, o segundo mercado (16%) para o Brasil, de mais de 800 milhões de pessoas e 27 países, é de longe o mais importante até aqui e manda uma mensagem poderosa à comunidade internacional quanto à colaboração ampliada entre duas regiões que defendem os mesmos valores e interesses, além de sinalizar o fim do isolamento do Mercosul. Cerca de 90% dos produtos dos dois países terão tarifa zero no primeiro ano do acordo.

Para o Brasil, a assinatura do acordo reforça a projeção externa do País e fortalece a política de independência e equidistância em uma das questões geopolíticas que dividem hoje o mundo: as tensões entre os EUA e a China. No caso da UE, amplia as áreas de contato com uma região líder em segurança alimentar, energia limpa e que passou a priorizar o meio ambiente. É importante lembrar que não se trata apenas de um acordo comercial, mas também de um ambicioso acordo de associação estratégica com a União Europeia, que inclui três vertentes: a política, a de cooperação e a do livre comércio. Em seguida, deverá ser assinado o acordo com a Efta, a Associação Europeia de Livre Comércio, integrada por Suíça, Noruega, Islândia e Liechtenstein.

As transformações na economia e na ordem global tornam o acordo entre o Mercosul e a UE ainda mais estratégico tanto para o Mercosul quanto para a União Europeia. Os dois lados perceberam que esse acordo, no contexto atual, representa mais do que interesses comerciais e passa a ser importante também pelas implicações geopolíticas globais.

Resta agora a assinatura e aprovação dos acordos de diálogo político, de cooperação e de livre comércio. O comercial, pelo Conselho da União Europeia e pelos Congressos dos países do Mercosul, e os demais pelos Parlamentos dos países-membros da UE. A oposição da França, da Itália e da Polônia ao comercial terá de ser superada pela maioria liderada pela Alemanha, Portugal e Espanha.

Outra matéria importante incluída na pauta do Mercosul foi o pedido da Argentina para que seja revista, para dar maior flexibilidade, a regra da Resolução 32 pela qual as negociações de acordos comerciais devem ser feitas conjuntamente pelos países-membros. Com isso, o governo argentino espera poder negociar acordo de livre comércio isoladamente com os EUA, embora pareça pouco provável que os EUA mudem sua política e abram negociações comerciais com a Argentina. A proposta argentina não tem chance de ser aceita pelos países do Mercosul (e agora a UE também vai demover Javier Milei), mas adquire um caráter sensível porque a Argentina coordenará os trabalhos do Mercosul no primeiro semestre de 2025.

 

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE), FOI COORDENADOR NACIONAL DO MERCOSUL

 

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/mercosul-revigorado/


domingo, 1 de dezembro de 2024

Uma luz no fim do túnel - Bolívar Lamounier (O Estado de S. Paulo)

Uma luz no fim do túnel

Bolívar Lamounier

O Estado de S. Paulo.

30 de nov. de 2024

A desordem política em que o Brasil vive há mais de duas décadas decorre de três fatores: o pequeno número de pessoas genuinamente vocacionadas para a vida pública, deformações grotescas em nosso sistema institucional e, mais importante, a obscena desigualdade de nossa sociedade.

Aos fatores acima haveria que acrescentar o quadro mundial, no qual despontam ditadores como Nicolás Maduro, um presidente condenado eleito para a presidência dos Estados Unidos e ditaduras totalitárias como as da Rússia, China e Coreia do Norte. Vladimir Putin chega a ameaçar o mundo abertamente com o recurso a seu gigantesco arsenal nuclear.

Quanto ao Brasil, a escassez de vocações políticas a que me refiro diz respeito ao excesso de indivíduos ávidos por viver “da política” e não “para a política”. O quase total desaparecimento da geração de líderes do Congresso constituinte (1987-1988) deixou aberto o espaço para o discurso ideológico vazio do PT, o populismo de Lula da Silva e um Congresso no qual, com as exceções de praxe, pululam larápios e trapaceiros. Essa “oferta” molda a “demanda”, ou seja, aprofunda o descrédito da instituição legislativa, que afugenta possíveis bons candidatos e assim por diante, num círculo vicioso cujo fim não está à vista.

As deformações do sistema político-institucional têm sido amplamente discutidas, sem que apareçam lideranças lúcidas, dispostas a agarrar pela unha o touro da reforma política. Sabemos que o sistema presidencialista de governo é ruim mesmo onde haja partidos políticos; onde não os há, como é o nosso caso, é péssimo. Associado a contínuas rixas entre os Três Poderes, na contramão do que a Constituição estipula, não há como visualizar um panorama diferente desse que Brasília nos oferece dia sim, outro também.

Contudo, para avaliar a hipótese da descida aos infernos, como ocorreu na Argentina, é preciso repisar o óbvio: somos uma das sociedades mais desiguais do planeta. Uma minoria inferior a 10% açambarca metade da riqueza nacional e não assume o que deveria ser sua cota de responsabilidade na arrumação do País. Na parte inferior da pirâmide social, podemos dizer sem medo de errar que 30% dos cidadãos são incapazes de transmitir num simples bilhete o que tenham ouvido pelo telefone. São infracidadãos. Na última eleição municipal, o alto índice de abstenção resultou deste conjunto de elementos: candidaturas em sua maioria inexpressivas, ausência de propostas realistas para a melhoria da vida nas cidades, desânimo geral.

Sendo a realidade o que acima resumidamente se expôs, nada há a estranhar no desinteresse generalizado pela atividade política. Menos ainda quando se considera que a pequena parte capacitada da elite não tem sabido como motivar os eleitores e reverter tais tendências. Menos ainda a estranhar que o desinteresse se agudize entre os jovens, se a eles não se oferece o que mais lhes interessa: um mínimo de esperança. Esta, outrora, se consubstanciava nas ideologias, hoje moribundas, fato que só não enxergam os que não querem enxergar, ou que se valem de mitos ideológicos a fim de organizar partidos de araque, através dos quais assegurem acesso ao erário, a empregos públicos e prebendas, que são seus meios de vida.

Mas, exultai, uma luz começou a reluzir no fim do túnel. Ainda Estou Aqui, o já celebrado filme de Walter Salles, despertou os corações e mentes, notadamente no seio da juventude. Mostrou que os cidadãos, de todas as idades, não viraram as costas à vida pública. Desde que verdades relevantes lhes sejam ditas, com franqueza, clareza e competência, seus corações despertam. O filme vai fundo num dos episódios mais macabros do período dos governos militares, o desaparecimento do deputado Rubens Paiva, narrado em livro por seu filho Marcelo Rubens Paiva. Esse fato não ocorreu na pré-história, ocorreu algumas décadas atrás, mas só agora chega com toda a sua força dramática aos jovens, seja porque a informação lhes tenha sido sonegada, seja porque só agora surgiu um grupo de artistas com competência para relatá-lo como deve ser relatado: em sua simples verdade.

O êxito do trabalho de Walter Salles suscita uma questão muito mais ampla. Nós, brasileiros, não conhecemos nossa história. Não a conhecemos em seus momentos horrendos, que foram muitos, nem nos relativamente promissores, que foram poucos e curtos, mas existiram.

Essa constatação permitenos ousar mais um pouco, ampliando esta reflexão: por maior que seja o descrédito das instituições, por mais generalizadas e cruéis que sejam nossas desigualdades sociais, é possível enfrentá-las com esta arma simples: a oferta de verdades relevantes.

A mudança de atitude sugerida no parágrafo anterior vai muito além do sempre desejável adensamento da cidadania. Diz respeito à prevenção da grave crise que já nos espreita. Sabemos todos que um ajuste fiscal sério é a condição sine qua non para a retomada do desenvolvimento econômico e social. Mas a bússola pela qual se pretende orientar o País é ainda a polarização idiota que temos vivido desde 2016. 


sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Bolsonaro nu - Editorial O Estado de S. Paulo

Bolsonaro nu

Editorial O Estado de S. Paulo, 28/11/2024

Ninguém precisava da PF para saber que Bolsonaro é golpista. Mas as investigações são úteis porque o despem de vez dos trapos retóricos com os quais ele tentou se travestir de democrata

O relatório final da Polícia Federal (PF) sobre a tentativa de golpe de Estado que teria sido urdida no seio do governo de Jair Bolsonaro para aferrá-lo ao poder decerto não surpreendeu quem acompanhou minimamente a vida pública do ex-presidente. Desde quando saiu do Exército em desonra, passando por uma frívola carreira parlamentar – que, se prestou para alguma coisa, foi para enriquecê-lo, além de sua família – até chegar à Presidência da República, Bolsonaro jamais traiu seu espírito golpista. De mau militar e mau deputado a mau presidente, foram quase 40 anos de exploração da insurreição e da infâmia como ativos políticos.

Este jornal, seguramente, não está surpreso com o que veio a público após o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), levantar o sigilo sobre o referido relatório. Afinal, faz quase 25 anos que já sublinhávamos nesta página o vezo parasitário de Bolsonaro no Brasil pós-redemocratização, chamando-o pelo que é: um desqualificado que se serve das mesmas liberdades democráticas que sempre quis obliterar (ver o editorial Dejetos da democracia, 8/1/2000).

A rigor, ninguém precisava de um relatório policial de mais de 800 páginas para saber que Bolsonaro é um golpista inveterado. Quem já votou nele ao longo da vida pode alegar tudo, menos desconhecimento de sua índole destrutiva. Mas, para quem quiser, aí está o portentoso material reunido pela PF a encadear fatos e personagens com notável robustez, além de desnudar o espírito insurreto que jamais deixou de guiar o ex-presidente ao longo de sua trajetória.

Segundo a PF, Bolsonaro “planejou, atuou e teve domínio de forma direta e efetiva” das tramoias para impedir a posse do presidente Lula da Silva, o que teria incluído até um suposto plano para assassiná-lo, entre outras autoridades. E não só entre novembro e dezembro de 2022, mas durante todo o mandato – que, recorde-se, começou com a disseminação de mentiras sobre a suposta “fragilidade” das urnas eletrônicas. Ainda de acordo com a PF, essa desabrida campanha de desqualificação do sistema eleitoral já era parte do plano golpista de Bolsonaro para se insurgir contra um resultado nas urnas que não fosse a sua reeleição, contando que a desconfiança que semeou entre milhões de brasileiros poderia lhe ser útil no futuro.

É fundamental frisar que ainda se está em fase de inquérito policial. De modo que o contraditório e a ampla defesa só estarão plenamente garantidos aos 37 indiciados, como é próprio do Estado Democrático de Direito, mais à frente, vale dizer, se e quando a Procuradoria-Geral da República (i) oferecer denúncia contra eles, (ii) as acusações forem aceitas pelo STF e (iii) o caso, então, entrar na fase judicial propriamente dita. Entretanto, as eventuais provas que poderão ser apresentadas à Justiça pelo parquet, obviamente, serão decisivas apenas, por assim dizer, para o destino penal de Bolsonaro. Já sobre seu golpismo não há prova mais cabal de que se trata de um inimigo figadal da democracia do que seu próprio passado.

Nesse sentido, é estarrecedor ainda haver no seio de uma sociedade que se pretende livre e democrática quem admita a presença de alguém como Bolsonaro na vida política. Ou pior, que enxergue como “democrata”, “patriota”, “vítima do sistema” ou baboseira que o valha um sujeito de quinta categoria que já defendeu o fechamento do Congresso, lamentou o “baixo número” de concidadãos torturados e mortos nos porões da ditadura militar, pregou o fuzilamento do presidente Fernando Henrique Cardoso e trata adversários políticos como inimigos a serem eliminados, inclusive fisicamente. Ademais, Bolsonaro jamais desestimulou as manifestações de teor golpista realizadas em seu nome, como os acampamentos na frente de quartéis País afora. Tudo indica que não o fez para falsear um “clamor popular” pelo golpe e, assim, pressionar as Forças Armadas a apoiálo na intentona – o que, para o bem do Brasil, não ocorreu.

A Justiça, primeiro, e a História, depois, hão de ser implacáveis com Bolsonaro e todos os que flertaram com a destruição da democracia no Brasil.


quarta-feira, 13 de novembro de 2024

O Impacto da Eleição de Trump sobre o Brasil - Rubens Barbosa (O Estado de S. Paulo)

O Impacto da Eleição de Trump sobre o Brasil.

Algumas promessas de campanha e declarações do presidente eleito certamente devem estar causando preocupação ao governo brasileiro

Por Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 12/11/2024 | 03h00

 

A eleição de Donald Trump para a presidência dos EUA terá não só profundas repercussões na política interna norte-americana, como também no cenário internacional, com forte impacto na geopolítica, na economia global e em alguns temas globais, como meio ambiente, mudança do clima, imigração, transição energética e avanço da direita. Ajustes, acomodações e resistências acontecerão em função das mudanças prometidas, a partir de janeiro.

As políticas econômicas e comerciais do governo Trump, se cumpridas as promessas, em função de políticas expansionistas para criar empregos, medidas nacionalistas e protecionistas de política industrial, com o consequente reflexo na inflação, no déficit público e na taxa de juros do Federal Reserve (Fed), poderão impactar o comportamento do dólar, a inflação e a taxa de juros no Brasil.

As relações institucionais entre o Brasil e os EUA não deverão ser afetadas. Comércio, investimentos, tecnologia e outras áreas de cooperação continuarão a fluir normalmente, mas algumas promessas de campanha e declarações de Trump certamente devem estar causando preocupação ao atual governo: a questão da Venezuela, a proximidade com a China, a evolução do Brics, a busca de protagonismo global, a possibilidade de imposição de tarifas para a exportação de todos os países para os EUA, a agenda climática, a eventual deportação de brasileiros, as acusações de corrupção, as relações de Trump com o bolsonarismo e os problemas com Elon Musk, associados à retórica de restrições à liberdade de expressão nas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF).

As ações globais para a preservação do meio ambiente, o combate à mudança de clima e a transição energética ficarão afetadas pela perda de prioridade no novo governo Trump, que prometeu ampliar a pesquisa e exploração de petróleo e gás no território americano e novamente abandonar o Acordo de Paris, eliminando as metas de redução de emissões de gás carbono. A COP-30, no Brasil, será diretamente afetada e poderá ser esvaziada pela ausência do presidente dos EUA.

A escalada retórica de Trump, já presidente eleito, sobre a situação política interna na Venezuela é inquietante para a política externa brasileira. Apesar de a América do Sul não ter prioridade na política externa dos EUA e a Venezuela não ter sido mencionada na campanha eleitoral, Trump disse, em entrevista no TikTok, que a Venezuela é um caos, que a população está sofrendo e que seu governo vai ter várias opções para responder a essa questão, inclusive a opção de uma intervenção militar. Certamente, terá apoio de outros países, como a Argentina, de Javier Milei, e resistências de potências extrarregionais que apoiam Caracas, como a Rússia e a China.

As relações com a China, a principal parceira comercial do Brasil, passarão por um momento muito delicado pela eventual reação dos EUA à aproximação brasileira com Pequim, pela dependência do mercado chinês. As decisões sobre a política de Lula da Silva em relação ao Brics, na reunião no ano próximo no Brasil, podem representar o maior desafio da política externa do atual governo. A presença no Brasil dos novos membros, autoritários e ditaduras, e a questão do ingresso da Venezuela no grupo deverão gerar reação da oposição de direita brasileira, às vésperas do início da campanha eleitoral de 2026. A decisão sobre o eventual ingresso do Brasil na Rota da Seda pode ter implicação no relacionamento com o governo Trump, visto que ainda com Joe Biden altas autoridades norte-americanas mandaram sinais claros sobre os riscos de uma eventual adesão do Brasil.

A promessa de deportar 10 milhões de imigrantes dificilmente será cumprida na totalidade, mas com certeza, em parte, será implementada. O maior contingente de brasileiros no exterior está nos EUA (1,9 milhão – 290 mil ilegais) e poderá ser afetado, o que gerará desconforto para o governo Lula.

O avanço da direita na região ganhará reforço e apoio de Washington. Javier Milei e Nayib Bukele serão prestigiados e ganharão mais espaço na América Latina, esvaziando ainda mais a liderança regional do Brasil e a busca de influência global (guerras na Ucrânia e Gaza).

Até mesmo na política interna poderá haver ações contrárias ao atual governo. Eduardo Bolsonaro estava em Mar-a-Lago, comemorando a vitória republicana, e não será surpresa se vier a estimular provocações e mesmo restrições ao governo Lula no final de 2025. Sem falar num eventual apoio do governo Trump à retórica de perseguição política a Jair Bolsonaro e de julgamento em relação aos condenados pelos acontecimentos de 8 de janeiro em Brasília e à declaração de inelegibilidade do ex-presidente pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Os imprudentes pronunciamentos do presidente Lula manifestando sua preferência por Kamala Harris para “defender a democracia e evitar o nazismo e o fascismo com outra cara” e aconselhando Trump a “pensar como habitante do planeta Terra” não vão ajudar na relação entre os chefes de Estado dos dois países.

Em face de todos esses desafios de política externa, de acordo com o interesse nacional e refletindo a mudança do eixo da política comercial para a Ásia/China, torna-se urgente uma declaração do governo brasileiro, sem ideologia ou partidarismo, com o objetivo de reafirmar uma posição de independência em relação a países ou grupo de países.

 

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR, MEMBRO DA APL, FOI EMBAIXADOR EM WASHINGTON

 

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/o-impacto-da-eleicao-de-trump-sobre-o-brasil/

terça-feira, 12 de novembro de 2024

‘Vitória de Trump pode tornar o Brasil mais periférico no comércio global’, diz professor da USP (Yi Shin Tang) - Lílian Cunha O Estado de S. Paulo

Entrevista Estadão Economia

‘Vitória de Trump pode tornar o Brasil mais periférico no comércio global’, diz professor da USP
Para Yi Shin Tang, globalização ficou para trás e o mundo está na era das alianças bilaterais, que deve ser aprofundada com o novo presidente dos EUA
Lílian Cunha
O Estado de S. Paulo, 11/11/2024 | 09h30
Entrevista comYi Shin TangProfessor de Relações Internacionais da USP
Há um esgotamento do modelo comercial que prevaleceu desde o começo dos anos 1990 e perdurou até o fim dos anos 2010, a chamada globalização. É o que diz Yi Shin Tang, professor de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em comércio internacional e políticas antitruste, entre outros temas.
“Havia, nos anos 90, a ideia de comércio internacional como fator de estabilização política. E a estabilização política também como um fator de aumento do comércio global. As coisas estão se invertendo um pouco agora. E esse esgotamento está sobretudo na ideia de que o comércio não está trazendo os benefícios esperados. Tanto para quem promovia essa agenda como para aqueles que seguiram mais recentemente nesse movimento”, diz.
As duas grandes potências mundiais - Estados Unidos e China - agora passam por cima dos blocos de comércio para realizar alianças bilaterais em que o mais forte sempre é uma das duas nações. Com a vitória de Donald Trump nos EUA, o comércio mundial vai enfrentar ainda mais protecionismo segundo ele.
Yi Shin Tang será um dos participantes do Fórum Estadão Think — Do Brasil para o mundo: Desafios para a nossa inserção global, uma realização do Estadão, com apoio institucional da Fiesp, do Ciesp, da Firjan e da CNI. O evento ocorre nesta terça-feira, 12, no salão nobre da Fiesp. As inscrições podem ser feitas aqui.
Veja a seguir os principais pontos da entrevista:
As pessoas ainda concordam quando dizem que vivemos em um mundo globalizado. Mas o que vem mudando em relação ao comércio global?
Na década de 90, o período exatamente após a Guerra Fria, entendia-se que por meio de maior integração econômica e maior integração do comércio internacional se chegaria a um efeito democratizador. Então países que estavam em processo de transição democrática, como os do bloco soviético, e os menos desenvolvidos, se fizessem parte de uma integração comercial e econômica, teriam uma oportunidade de se tornarem mais democráticos. Sabe a imagem da cenoura e do cavalo? Era como se os países desenvolvidos dissessem: “Vamos dar a eles uma cenoura chamada crescimento econômico e acesso aos nossos mercados e, por consequência, vamos exigir deles que adotem instituições mais democráticas.” Isso aconteceu com países da América Latina, Ásia, África e Oriente. Eles passaram a aderir às instituições de integração econômica, ao sistema da Organização Mundial do Comércio (OMC), por exemplo. E o mundo, assim, foi caminhando. Até que houve um grande ponto fora dessa curva: a China. Foram os Estados Unidos que levaram a China para dentro do sistema da OMC. Isso aconteceu naquele cenário de ressaca do Massacre da Praça da Paz Celestial, que aconteceu na China no fim da década de 80. Houve grande pressão do bloco ocidental sobre a China para ela de fato se integrar ao mundo ocidental. E a premissa era que isso ia fazer o país se democratizar.
E a China se beneficiou muito disso… Qual foi o problema?
Sim, ela passou a ser cada vez mais um grande exportador do comércio internacional. Qual foi o grande problema? Ela não se conformou com as instituições ocidentais. Ela passou também a moldar as instituições do comércio internacional, influenciando as regras nesse comércio global. O feitiço se vira contra o feiticeiro, os Estados Unidos, porque ela passou a ser o grande rival dos americanos em termos de comércio global, uma ameaça. A indústria doméstica americana começou a ficar extremamente preocupada com a invasão de produtos chineses. Na Europa foi a mesma coisa. E aí os países ocidentais passaram a adotar medidas cada vez mais protecionistas.

E isso se acentuou mais ainda depois da pandemia, certo?
Sim, o livre comércio está sendo visto como uma ameaça à própria estabilidade interna de diversos Estados. E isso leva cada vez mais a uma fragmentação e uma fragilização do comércio global e das instituições. E a OMC passou a ser um sistema extremamente esgotado. Os Estados Unidos se recusam a validar a nomeação desses árbitros (da OMC), então é um é um órgão que não tem mais tomadores de decisões...
Então, em vez de blocos de vários países para comércio livre, como o Mercosul, a União Europeia, passamos a ter outra configuração?
Sim, bilaterais. Os Estados Unidos, para preservar seu espaço de poder, ele passa a estimular acordos bilaterais, com diferentes estados. E isso traz uma vantagem de negociação. Um Estados Unidos conversar com uma Argentina, com um Chile, Uruguai, bilateralmente, nessa relação, os americanos têm muito mais poder de barganha do que se tratasse com um bloco. E a China também faz a mesma coisa, por exemplo, com países africanos.
E o Brasil, onde fica nesse cenário?
O Brasil sempre optou pela diplomacia neutra, certo? Sempre com uma premissa de negociação acima de tudo. E de não alinhamento automático às diversas potências e hegemonias que existem pelo mundo. Só que esse é um modelo que vem se esgotando, que tem encontrado limitações importantes. Essas potências têm exigido também certa exclusividade. Com a vitória de Donald Trump nos EUA, a política dele é muito clara: privilegiar a América, muito protecionismo e alianças só com parceiros tradicionais. Isso pode trazer uma maior “periferização” para o Brasil.
Pelo fato de o governo aqui ser de esquerda? E se isso mudar nas próximas eleições?
Não acredito que mude muita coisa. No passado o Brasil tinha um alinhamento ideológico com Trump e essa aliança não aconteceu efetivamente. Quando houve o governo Trump e de Jair Bolsonaro simultaneamente havia um discurso ideológico afinado mas, claramente, não havia benefícios comerciais. Na verdade, o mundo todo vai sentir essa onda protecionista dos EUA. O Brasil por ser um país com menor peso econômico global, pode sentir ainda mais e se tornar mais dependente de outros mercados, como a China.
O que o Brasil perde se continuar com essa linha de neutralidade?
O Brasil perde com isso a oportunidade de aprofundamento das relações com esses países. E, muitas vezes, ele pode ser um país que pode, em vez de agradar todo mundo, conseguir o contrário. O Brasil, por exemplo, tem elevado tarifas de importação de diversos produtos chineses, não só a taxa das blusinhas. Acontece isso na indústria do aço, na de químicos. E isso é uma medida que, por princípio, desagrada o Estado chinês.
E as guerras e conflitos armados, como afetam o comércio global?
A posição dos Estados Unidos agora vai se tornar cada vez mais, digamos, doméstica. Cada vez mais fechado em si mesmo. A China vê isso como uma oportunidade de ampliar sua agenda expansionista em relação a Taiwan. Então, esses conflitos tendem a se aprofundar diante das limitações das instituições internacionais. Qual é a consequência sobre o comércio global? Maior instabilidade. Se há um aprofundamento dessa divisão entre Rússia e bloco ocidental, ou o comércio vai começar a se desenhar em torno dessa divisão, ou a União Europeia vai começar a fechar seus mercados para aliados da Rússia. E os russos vão começar a aprofundar suas relações comerciais com quem tenha uma agenda, digamos, neutra em relação a essa agenda expansionista deles. Por isso o governo brasileiro foi extremamente cuidadoso em criticar a posição da Rússia em relação à Ucrânia. Porque a Rússia tem uma posição importantíssima para o Brasil, com a venda para nós de um insumo fundamental, os fertilizantes. Então, muitas vezes os interesses comerciais moldam o discurso, a posição geopolítica dos Estados.
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segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Um ataque frontal à democracia americana - Carmen Lícia Palazzo e Lourival Sant’Anna (O Estado de S. Paulo)

 Carmen Lícia Palazzo transcreveu e introduziu este artigo impecável de Lourival Sant'Anna, sobre o neofascista Trump, amigo e chantageado pelo neoczar Putin.

“Bom resumo da situação, feito pelo Lourival [Sant’Anna].

E acho que devemos nos preocupar, sim, inclusive com o nosso compatriota tosco e com tendências neofascistas. 

Acrescento da minha parte [CLP] o que eu penso, lendo os dados sobre quem votou no Trump e na Kamala:

O fascismo, em qualquer lugar do mundo, chega ao poder pelas vias da democracia, com o voto das pessoas mais simples, com um discurso que "levanta as massas" (li muito sobre como o Mussolini chegou ao poder na Itália). E a maioria do eleitorado nos EUA (e certamente também no Brasil) não é letrada e nem faz grandes considerações mais sofisticadas. Foi o caso dos chamados rednecks norte-americanos. Aí mora o perigo. E o poder de alcance dos discursos eivados de ignorância, de incitação à violência é que dá a muitos uma ideia de pertencimento a um grupo liderado por alguém que é percebido como um macho forte e que conduz a tropa a algum hipotético futuro, fantasiosamente melhor. 

Copio o artigo do Lourival:

"Trump vai eliminar a separação de Poderes e os freios concebidos pelos ‘pais fundadores’

Trump está mobilizado pelo desejo de ver materializada a sua delirante visão de mundo

Por Lourival Sant'Anna

09/11/2024 | 17h00

A volta de Donald Trump à Casa Branca equivale a um terremoto no alicerce da democracia, da diversidade, da valorização da ciência e dos fatos, uma derrota no combate às mudanças climáticas e uma vitória para as ditaduras que contestam a ordem mundial, lideradas por China e Rússia. É a revanche de setores de baixa renda e sem ensino superior contra a elite intelectual.

Trump está mobilizado pelo desejo de ver materializada a sua delirante visão de mundo. Dessa vez, não haverá “adultos na sala” — assessores civis e militares que sutilmente descumpriram suas ordens e heroicamente mitigaram os efeitos desastrosos de seu primeiro mandato. 

Trump conta que em 2016 não conhecia muita gente em Washington — a capital que tanto despreza — e acabou sendo vítima da traição de inúmeros colaboradores. Esse é um dos combustíveis de seu rancor. 

Desta vez, Trump se cerca de pessoas escolhidas não pelo critério da competência ou reputação, mas da lealdade. Ele deixou claro que usará o Departamento de Justiça, equivalente à Procuradoria-Geral da República, para perseguir seus adversários políticos, a começar pela ex-presidente da Câmara Nancy Pelosi. 

Com maioria na Suprema Corte, no Senado e provavelmente na Câmara, e o propósito explícito de colocar o Estado a seu serviço, Trump procurará eliminar a separação de Poderes e os freios e contrapesos concebidos pelos chamados “pais fundadores” no século 18 para criar uma república e evitar a tirania representada, na época, pela monarquia absolutista e colonialista britânica, de cujo jugo acabavam de libertar sua jovem nação. 

Esse sistema, aperfeiçoado ao longo dos séculos para incorporar os direitos das mulheres, dos negros e de outras minorias, pressupõe a existência de uma elite guiada pelos valores do Iluminismo. A falibilidade e o egoísmo humanos eram limitados por um contrato social de busca do bem comum e de patriotismo. Quando esse consenso falhasse, o Congresso, a Justiça, a academia e a imprensa disparariam mecanismos de correção. É esse arcabouço que o trumpismo se dedica a destruir.

Trump e seus seguidores nutrem teorias conspiratórias contra o establishment político, jurídico e estatal, incluindo os órgãos de inteligência, contra a ciência e a imprensa, como cúmplices de um complô para extorquir a população e destruir sua identidade e tradições. 

Com vitória de Trump, republicanos veem sinais de uma nova coalizão de eleitores para se manter no poder

Em seu governo, a saúde deve ficar a cargo do ex-candidato independente à presidência Robert Kennedy Jr., que pretende retirar o flúor da água, responsável pelo quase desaparecimento das cáries; revisar o uso de vacinas e adotar terapias alternativas. Suas teses têm a qualidade daquele lampejo de Trump de injetar detergente no sangue para combater o vírus da covid. 

Kamala perdeu a eleição porque os eleitores de renda e escolaridade mais baixas deram preferência a Trump, e eles são a maioria. Ela teve 47% dos votos dos que ganham menos de US$ 50 mil por ano (27% dos eleitores) e 46% da faixa entre US$ 50 mil e US$ 100 mil (32%). Só ganhou entre os que recebem mais de US$ 100 mil (40% dos eleitores), com 51%, segundo a boca-de-urna da CNN.

Dos eleitores com ensino superior, 55% votaram em Kamala. Mas eles são apenas 43%. Na maioria, que não tem diploma, ela teve 42% dos votos. Kamala recebeu 53% dos votos das mulheres, que representam 53% de quem votou, mas apenas 42% dos homens. Obteve 52% dos votos dos latinos (12% dos votantes) e 85% dos negros (11% dos que compareceram às urnas).

Joe Biden teve mais apoio desses três grupos em 2020, embora Kamala seja mulher, filha de imigrantes e negra. Suas margens não foram suficientes para compensar a preferência dos brancos, que representam 71% dos eleitores, por Trump, que teve 57% dos votos deles. Até mesmo um quarto das mulheres pró-aborto dos Estados-pêndulo da Pensilvânia, Michigan e Wisconsin votou em Trump.

Esses resultados são a expressão da frustração com o alto custo de vida e da sensação de que o poder de compra era maior no governo Trump. Esses sentimentos se combinam com a percepção mais estrutural e profunda de que a elite intelectual, representada por Biden e Kamala, construiu um mundo que lhe favorece.

O livre comércio e a imigração levaram para longe as fábricas que davam empregos de qualidade para os operários e trouxeram os estrangeiros que aceitam trabalhar por salários menores. Trump entendeu isso e se elegeu prometendo elevar as tarifas de importação, deportar e barrar os imigrantes ilegais. Diante disso, a democracia, os direitos individuais, a ciência, o meio ambiente, a ordem internacional baseada em regras e a imprensa parecem distrações de intelectuais."”

terça-feira, 29 de outubro de 2024

O plano de Putin para destronar o dólar - The Economist, O Estado de S. Paulo

O plano de Putin para destronar o dólar

O Estado de S. Paulo | Internacional
29 de outubro de 2024

 

Presidente da Rússia espera que parceiros do Brics encampem sua estratégia para driblar sanções O presidente da Rússia, Vladimir Putin, estava animado na semana passada ao receber líderes mundiais, incluindo Narendra Modi e Xi Jinping, na cúpula do Brics em Kazan. No ano passado, quando o bloco se reuniu na África do Sul e se expandiu de cinco para dez membros, Putin teve de ficar em casa para evitar ser preso por um mandado emitido pelo Tribunal Penal Internacional. Desta vez, ele foi o anfitrião do clube em rápido crescimento que está desafiando a ordem liderada pelo Ocidente.

Em 15 anos, o Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) conquistou pouco. No entanto, Putin espera dar peso ao bloco, fazendo-o construir um novo sistema de pagamentos internacionais para atacar o domínio dos EUA nas finanças globais e proteger a Rússia e seus amigos das sanções.

Um sistema de pagamentos do Brics permitiria "operações econômicas sem depender daqueles que decidiram transformar dólar e euro em armas".

Esse sistema, que a Rússia chama de "Ponte do Brics", deve ser construído dentro de um ano e permitiria que os países fizessem liquidações transnacionais usando plataformas digitais administradas por seus bancos centrais. Surpreendentemente, ele pode tomar emprestado conceitos de um projeto diferente chamado mBridge, parcialmente administrado por um bastião da ordem liderada pelo Ocidente, o Banco de Compensações Internacionais (BIS), sediado na Suíça.

As negociações elucidaram um pouco a corrida para refazer os circuitos financeiros do mundo. A China há muito aposta que a tecnologia de pagamentos - não uma rebelião de credores ou conflito armado - reduzirá o poder dos EUA.

O plano do Brics pode tornar as transações mais baratas e rápidas. Esses benefícios podem ser suficientes para atrair economias emergentes. Em um sinal de que o esquema tem potencial genuíno, as autoridades ocidentais estão cautelosas de que ele seja projetado para escapar de sanções.

Alguns estão frustrados com o papel não intencional do BIS, conhecido como o banco central dos bancos centrais.

O domínio americano do sistema financeiro global, centrado no dólar, tem sido um pilar da ordem do pós-guerra e colocou os bancos americanos no centro dos pagamentos internacionais. Enviar dinheiro ao redor do mundo é um pouco como pegar um voo de longa distância; se dois aeroportos não estiverem conectados, os passageiros precisam trocar de voo, de preferência em um hub movimentado. No mundo dos pagamentos internacionais, o maior hub são os EUA.

PODER. Como quase todos os bancos que fazem transações em dólares têm de fazê-lo por meio de um banco correspondente nos EUA, o país é capaz de monitorar os fluxos em busca de sinais de financiamento terrorista e evasão de sanções. Isso fornece aos americanos um enorme poder.

Após a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022, o Ocidente congelou US$ 282 bilhões em ativos russos mantidos no exterior e desconectou os bancos russos do Swift, usado por cerca de 11 mil bancos para pagamentos internacionais.

Os EUA também ameaçaram "sanções secundárias" a bancos em outros países que apoiem o esforço de guerra da Rússia. Esse tsunami levou os bancos centrais a acumular ouro, e os adversários dos EUA a deixarem de usar o dólar para pagamentos, o que a China vê como uma de suas maiores vulnerabilidades.

Putin esperava capitalizar essa insatisfação em relação ao dólar na cúpula do Brics. Para ele, criar um novo esquema é uma prioridade prática urgente, bem como uma estratégia geopolítica. Os mercados de câmbio da Rússia agora negociam quase exclusivamente em yuans, mas, como o país não consegue obter o suficiente da moeda chinesa para pagar todas as suas importações, a Rússia foi reduzida às trocas. Putin espera avançar seus planos para o Brics Bridge, um sistema de pagamentos que usaria dinheiro digital emitido por bancos centrais e apoiado por moedas fiduciárias. Isso colocaria bancos centrais no meio de transações transnacionais, e não bancos correspondentes com acesso ao sistema de compensação de dólares nos EUA.

A maior vantagem para ele é que nenhum país poderia impor sanções a outro. A mídia estatal chinesa diz que o novo plano do Brics "provavelmente se baseará nas lições aprendidas" com o mBridge, uma plataforma de pagamentos experimental desenvolvida pelo BIS junto com os bancos centrais da China, Hong Kong, Tailândia e Emirados Árabes.

O experimento do BIS foi inocente em seus objetivos e teve início em 2019, antes da invasão feita pela Rússia. Ele tem sido incrivelmente bem-sucedido. Poderia reduzir o tempo de transação de dias para segundos e os custos de transação para quase nada. Em junho, o BIS disse que o mBridge havia atingido o "estágio mínimo de produto viável" e o banco central da Arábia Saudita se juntou como um quinto parceiro no esquema. Ao criar um sistema que poderia ser mais eficiente do que o atual e enfraquecer o domínio do dólar, o BIS involuntariamente entrou em um campo minado geopolítico.

Os ganhos de eficiência de novos tipos de dinheiro digital podem corroer o uso do dólar no comércio internacional, de acordo com o Fed.

Reciprocamente, eles poderiam impulsionar a moeda da China.

A maioria dos pagamentos internacionais é em dólares e normalmente ocorre em uma cadeia de bancos intermediários. Em vez disso, o projeto mBridge depende de bancos centrais e lhes dá visibilidade e algum controle sobre os bancos nacionais e sobre o uso de suas moedas digitais por bancos estrangeiros.

Na etapa 1, um banco que envia um pagamento internacional trocaria a moeda normal (A$) por uma moeda digital (eA$) emitida diretamente pelo banco central. Na etapa 2, o banco a trocaria por uma moeda digital estrangeira (e-B$), que enviaria na etapa 3. O banco estrangeiro trocaria isso de volta para dinheiro normal na etapa 4.

É possível que os conceitos e o código do mBridge sejam replicados pelo Brics, China ou Rússia? O BIS, sem dúvida, vê o mBridge como um projeto conjunto e acredita que tem a palavra final a respeito de quem pode participar.

No entanto, algumas autoridades ocidentais dizem que os participantes do teste do mBridge podem ser capazes de repassar o capital intelectual que ele envolve para outros, incluindo participantes do Brics Bridge.

De acordo com várias fontes, a China assumiu a liderança no software e código por trás do projeto mBridge. Talvez essa tecnologia e know-how pudessem ser usados para construir um sistema paralelo. O BIS não quis comentar semelhanças entre seu experimento e o plano de Putin, defendido por ele na cúpula de Kazan.

GEOPOLÍTICA. 

 Em a reunião do G-20, em 2020, o BIS recebeu a tarefa de melhorar o sistema existente e, a pedido da China, de experimentar moedas digitais. Como diferentes membros da organização têm objetivos concorrentes, manter-se acima da briga está ficando mais difícil.

Uma opção para os EUA e seus aliados é tentar dificultar novos sistemas de pagamento que competem com o dólar.

Autoridades ocidentais alertaram o BIS que o projeto poderia ser mal utilizado por países com motivos malignos. O BIS desde então desacelerou seu trabalho no mBridge.

Outra opção é melhorar o sistema baseado em dólar para que seja tão eficiente quanto os novos rivais. Em abril, o Fed de Nova York se juntou a seis outros bancos centrais em um projeto do BIS com o objetivo de tornar o sistema existente mais rápido e barato.

O Fed também pode vincular seu sistema doméstico de pagamentos instantâneos àqueles de outros países. Qualquer sistema de pagamento rival do Brics ainda enfrentará enormes desafios. Garantir liquidez será difícil ou exigirá grandes subsídios governamentais implícitos.

Se os fluxos subjacentes de capital e comércio entre dois países estiverem desequilibrados, o que geralmente acontece, eles terão de acumular ativos ou passivos nas moedas um do outro, o que pode ser desagradável.

Por tudo isso, o esquema do Brics pode ter força.

Há consenso de que os atuais pagamentos transnacionais são lentos e caros. Embora os países ricos tendam a se concentrar em torná-los mais rápidos, muitos outros querem derrubar o sistema atual completamente. Pelo menos 134 bancos centrais estão experimentando dinheiro digital, principalmente para fins domésticos, avalia o Atlantic Council, centro de estudos em Washington.

A cúpula do Brics da semana passada não foi um Bretton Woods. Tudo o que a Rússia e seus amigos precisam fazer agora é mover um número relativamente pequeno de transações relacionadas a sanções para além do alcance dos EUA. Ainda assim, muitos estão mirando mais alto.

No ano que vem, a cúpula do Brics será no Brasil, recebida por seu presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, que se queixa do poder do dólar. "Toda noite eu me pergunto por que todos os países têm de basear seu comércio no dólar", disse ele no ano passado.

"Quem foi que decidiu isso?" 

@ TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL © 2023 THE ECONOMIST NEWSPAPER LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM

ARTIGO O BIS, com sede na Suíça, involuntariamente entrou em um campo minado geopolítico

 

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

A esquerda fanática - Denis Lerrer Rosenfield (O Estado de S. Paulo)

Apenas uma reserva a este artigo do conhecido acadêmico gaúcho: Lula não é antissemita. suas motivações são claramente politicas, mas da pior espécie: um anacrônico antiamericanismo e uma fidelidade aos antiamericanos, de qualquer tipo: supostamente de esquerda - como são tidos Cuba e Venezuela -, da direita mais reacionária (Putin) e dos fundamentalistas teocráticos opressores das mulheres (Irã), não importa muito a natureza, basta ser antiamericano e antiocidental. Deve ser alguma tara. Paulo Roberto de Almeida A esquerda fanática Denis Lerrer Rosenfield O Estado de S. Paulo, 7/10/2024 O alinhamento não se faz mais segundo valores universais, apregoados por Marx e Engels, mas segue a linha do autoritarismo mais explícito A diplomacia presidencial de Lula da Silva, com apoio entusiasta do PT e o auxílio inestimável de seus assessores esquerdistas, é um exemplo eloquente do que esse setor da esquerda brasileira se tornou. Se antes alguns comedimentos eram ainda resguardados, agora a máscara caiu. O alinhamento não se faz mais segundo valores universais, apregoados por Karl Marx e Friedrich Engels, mas segue, atualmente, a linha do autoritarismo mais explícito, no apoio inabalável a Vladimir Putin e Nicolás Maduro, além dos companheiros de sempre, como os sucessores dos irmãos Castro, e, mais aterrador, na aliança com o totalitarismo islâmico, a exemplo do Hamas, Hezbollah e Irã. As escolhas foram feitas! O Irã acaba de bombardear Israel com 181 mísseis balísticos, alvejando populações civis e bases militares, em uma evidente declaração de guerra, sem que Israel tenha invadido o seu território. Resposta do Itamaraty: silêncio. Manifestou dias depois “preocupação”. Revelador, não? Contudo, quando Israel exerce o seu direito de autodefesa, Lula não cessa de falar, em uma compulsão incontrolável, na qual se revela todo o seu antissemitismo. Se fôssemos seguir a sua lógica, na verdade ilógica, Israel deveria se submeter aos seus assassinos. Os ideólogos do PT poderiam, então, se regozijar em seu “humanismo”. O ataque iraniano não tem nada a ver com a causa palestina. O regime dos aiatolás tem um único e só objetivo: aniquilar o Estado de Israel e, subsequentemente, os judeus pelo mundo afora. Preliminar disso já observamos nos atentados perpetrados na Argentina. Aliás, lá também com a complacência da esquerda peronista. Os palestinos são nada mais do que o pretexto utilizado para atrair a esquerda mundial, sobretudo de corte identitário. Se amanhã houvesse um acordo entre Israel e os palestinos, com a criação de um novo Estado, os ataques iranianos não iriam simplesmente cessar. Em nada ele contribuiria para o objetivo totalitário: a destruição do Estado judeu. Essa esquerda nem mais se preocupa com as aparências: aprecia a violência pela violência, em nome da causa “decolonial”. Poderia, pelo menos, ser coerente: se prega a emancipação total das mulheres, deveria condenar o que ocorre com elas sob o regime totalitário iraniano. São submetidas a controles rigorosos de vestimentas, de exercício da sexualidade, como se fossem servas. Se não o fazem, são reprimidas, censuradas, torturadas e assassinadas às centenas, se não aos milhares. E o que têm a dizer as feministas esquerdistas: nada. Simplesmente se calam e são, dessa maneira, cúmplices. Os valores feministas não valeriam para as mulheres iranianas e para as submetidas aos regimes islâmicos. Tampouco valeriam para as mulheres estupradas e assassinadas nos ataques do 7 de Outubro e para as que são até hoje reféns do Hamas. Provavelmente por ignorância, se não por má-fé, de onde Lula e seus assessores ideologizados tiraram a ideia de que o Hamas luta pela criação de um Estado palestino ao lado do judeu? Nem leram a carta de fundação dessa organização terrorista nem escutaram o que dizem os seus líderes. Eles visam unicamente à aniquilação do Estado de Israel. E a esquerda mundial, sobretudo universitária (lugar de despensamento), se encanta: “From the river to the sea, Palestine will be free” – do rio (Jordão) ao mar (Mediterrâneo), a Palestina será livre. Como assim? Onde fica a criação de dois Estados se Israel deve ser aniquilado? O apreço dessa esquerda pela violência é seu traço definidor. Irã, Hamas e Hezbollah apregoam o culto da morte e do martírio. Festejam massacres, atentados terroristas e tudo aquilo que contribua para a supressão dos valores ocidentais, de liberdade, igualdade, tolerância e bem-estar de suas populações. Cometem crimes de guerra ao utilizarem os seus habitantes como escudos humanos. Lançadores de foguetes, armas e munições estão entrelaçados aos civis que se tornam os seus reféns. Procuram assim fazer com que Israel apareça como o agressor quando ataca os alvos militares. Para o Hamas e o Hezbollah, os palestinos são buchas de canhão. Os túneis servem somente aos terroristas, que ficam em abrigos, enquanto os civis entram no fogo cruzado. Israel, por sua vez, protege a população civil em abrigos construídos com essa finalidade, enquanto os seus soldados lutam a céu aberto. As organizações terroristas cultuam a morte, Israel, a vida. Por último, o Hezbollah é um Estado dentro de um Estado, seu exército sendo superior ao libanês. E não responde às autoridades desse país, mas ao Irã, do qual é um satélite. Ou seja, o Líbano, que já foi considerado a Suíça do Oriente Médio, exemplo de liberdade, tolerância e convivência multiétnica e religiosa, convivendo pacificamente cristãos de diferentes confissões, muçulmanos xiitas e sunitas, drusos e árabes, é hoje um Estado escravo. Perdeu a sua soberania. Triste fim dessa esquerda que, outrora, se apresentava como democrática.

domingo, 29 de setembro de 2024

Política externa de Lula rebaixa o Brasil ao papel de mordomo-chefe da ditadura da Venezuela - J.R. Guzzo O Estado de S. Paulo

 

Opinião

Política externa de Lula rebaixa o Brasil ao papel de mordomo-chefe da ditadura da Venezuela

Tudo o que o Itamaraty atual conseguiu foi destruir qualquer possibilidade de fazer com que o Brasil seja levado a sério

Por J.R. Guzzo

O Estado de S. Paulo, 28/09/2024

Quase tudo na vida tem dois lados, mas o problema é esse “quase”. Há coisas que só tem um lado, e o lado que existe é muito ruim – ou têm dois, mas um é pior que o outro. O melhor exemplo ora disponível desta realidade é aquilo que o governo Lula chama de “política externa”. Há quase dois anos, desde que começou a sua terceira encarnação como presidente da República, Lula já gastou mais de R$ 3 bilhões em 23 viagens ao redor do mundo atrás da fantasia de tornar-se um guia espiritual do mundo subdesenvolvido. Tudo o que conseguiu de lá para cá foi destruir qualquer possibilidade de fazer com que o Brasil seja levado a sério.

É certo que o governo Lula, nas suas realizações internas, é um deserto do Saara que se estende a perder de vista. Então: já que não consegue fazer nada aqui dentro, não daria para fingir que está fazendo alguma coisa lá fora? Se foi essa a intenção, é evidente que não deu certo. O último prego no caixão da nossa “política externa altiva”, como diz o Itamaraty, é o rebaixamento do Brasil ao papel de mordomo-chefe da ditadura da Venezuela.

É uma coisa triste. Quanto mais Lula tenta se fazer de “interlocutor” entre “as partes”, mais ele se afunda como cúmplice público de um dos mais grosseiros roubos de eleição jamais vistos no seu Terceiro Mundo. Não há “duas partes” legítimas na Venezuela; não há, portanto, nada para negociar. Há um crime cometido por seu parceiro e ditador Nicolás Maduro, de um lado, e os eleitores assaltados por ele, de outro. Todo o mundo democrático diz isso, mas Lula acha que a esperteza é fazer de conta que está buscando uma “solução negociada”, enquanto fecha com o ditador por baixo do pano.

Acaba sendo apenas mais uma mentira de baixa qualidade. Lula diz que não condena o roubo porque quer “manter aberto” seu canal de “interlocução” com Maduro. Que canal? Que interlocução? O ditador diz que o outro lado é um bando de “terroristas” que se recusa a aceitar “o resultado das eleições”. Sua milícia já assassinou pelo menos 25 opositores que faziam protestos de rua. Há quase 2.000 presos políticos no país. Maduro diz que vai construir campos de concentração, e por aí se vai. Como o presidente do Brasil pode querer que a oposição “negocie”?

Rússia, Cuba, Irã e as ditaduras de sempre não perderam tempo, nem encheram a paciência de ninguém, com essas conversas sobre “diálogo”. Já foram logo cumprimentando Maduro por sua linda vitória, e vida que segue. Lula quis enganar todo mundo, e ficou com a brocha na mão: quem gosta de ditadura acha que ele vacilou feio, quem gosta de democracia convenceu-se mais uma vez que ele é um hipócrita.

 


 

 

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Democracia aqui, e também acolá: um chamado à coerência da Política Externa Brasileira - Conselho Acadêmico do Livres (Estadão)

 Democracia aqui, e também acolá: um chamado à coerência da Política Externa Brasileira


 André Portela, Elena Landau, Fernando Schuler, Leandro Piquet, Paulo Roberto de Almeida, Natalie Unterstell e Sandra Rios 


O Estado de S. Paulo, 27/09/2024

 

Não há dúvida de que a Venezuela vive sob uma ditadura: falta de liberdade de imprensa, perseguição e assassinato de opositores, além de uma crise econômica severa que gerou o maior fluxo migratório das Américas. Para manter seu poder, Nicolás Maduro alterou a Constituição, controlou o judiciário e as forças armadas, destruiu a economia e sufocou a sociedade civil, expulsando até o escritório de Direitos Humanos da ONU.

Este cenário geral já estava claro quando o presidente Lula recebeu o ditador venezuelano com honras de chefe de Estado no Palácio do Planalto, em maio de 2023. Ou quando, em março deste ano, minimizou a situação de Maria Corina Machado, opositora barrada pelo regime, fazendo pouco caso do desrespeito ao Acordo de Barbados, que visava garantir condições para a disputa. Na ocasião, ainda comparou a situação na Venezuela com a lei da ficha limpa que o impediu de concorrer em 2018, rebaixando as instituições brasileiras.

Ao enviar Celso Amorim para observar a eleição, Lula demonstrou conivência com o regime. O processo foi marcado por evidências claras de fraude. OEA, Uruguai e Argentina, entre outros parceiros regionais, fizeram críticas duras. Assim como o governo de esquerda do Chile, liderado por Gabriel Boric, evidenciando que a defesa democrática pode estar acima de recortes ideológicos. O Brasil se apequenou.

A oposição venezuelana apresentou provas de fraude, corroboradas por observadores internacionais e pesquisadores independentes. Como resposta, a Justiça da Venezuela emitiu mandado de prisão contra o presidente eleito, Edmundo González, agora asilado na Espanha. E como se portou a nossa diplomacia? Não seguiu o mandamento constitucional, que aponta para a defesa da democracia e dos direitos humanos. Assistimos, na verdade, à minimização das violações à liberdade na Venezuela. Infelizmente, a postura não surpreende.

Desde o final da década anterior, nossa política externa tem se deixado conduzir por concepções de mundo que nos aproximam de ditaduras. Sob o manto de uma iniciativa “contra-hegemônica” em prol do “Sul Global”, há a adoção de uma visão rasa de pragmatismo, que dimensiona incorretamente o interesse nacional. Na companhia dos maiores violadores de direitos humanos do planeta, esse processo penhora as melhores credenciais diplomáticas do Brasil - nossa confiabilidade.

O atual governo parece não entender que nosso respeito na seara internacional era fruto da defesa de princípios, por gerações, mesmo quando esta implicava em prejuízos mais imediatos.

A reiterada indiferença em relação aos crimes de guerra na agressão da Rússia à Ucrânia tem sido outro triste exemplo. Ao não marcar a diferença entre agressor e agredido, o atual governo acaba por reconhecer as duas partes como iguais no conflito, em frontal contradição com a Carta da ONU e a própria Constituição brasileira, que consagram o respeito à soberania e à não-intervenção nos assuntos internos de outros Estados.

Por absurdo, o presidente brasileiro chegou a sugerir a cessão do território ucraniano em troca da paz. Dessa forma, a ideia de “neutralidade” do Brasil nesse conflito é terrivelmente falsa, na medida em que nega material de socorro emergencial para um lado, e aumenta exponencialmente as importações de produtos do outro.

Há quem justifique o relativo silêncio do Brasil pelos descontos na compra de fertilizantes e óleo diesel, ou pela participação no BRICS, “para discussão de problemas globais”. Será mesmo que o cidadão brasileiro aceitaria ser cúmplice das barbáries perpetradas pela agressão russa à Ucrânia em troca de uma ilusória projeção mundial?

Mesmo entre os que estão mais à esquerda do espectro político há dificuldades de justificar certos posicionamentos. Por exemplo, o que diria uma defensora da igualdade de gêneros sobre a aproximação do Brasil ao Irã – um país que persegue e mata mulheres por não seguirem à risca os códigos de ‘decência religiosa’ dos Aiatolás?

Na comunidade internacional, o governo brasileiro tem sido visto como indiferente ao conjunto básico de direitos e garantias individuais consolidados em diversos acordos subscritos e ratificados pelo Brasil. Há uma profunda incongruência da atual política externa com respeito a valores e princípios tradicionais de nossa diplomacia. Uma postura injustificável no contexto de corrosão de regimes democráticos ao redor do mundo e aumento de impulsos autoritários em diferentes países.

Essa ambiguidade com a qual o governo federal tem tratado temas tão caros como direitos humanos poderá ter implicações domésticas. A relativização do valor da democracia no âmbito externo pode levar a uma degradação da confiança na democracia no âmbito interno. Por zelo às nossas liberdades, uma clara revisão de rumos é mais do que necessária.

 

André Portela, Elena Landau, Fernando Schuler, Leandro Piquet, Paulo Roberto de Almeida, Natalie Unterstell e Sandra Rios são conselheiros do Livres.


https://www.estadao.com.br/opiniao/espaco-aberto/democracia-aqui-e-tambem-acola/


quinta-feira, 26 de setembro de 2024

LULA O IRRELEVANTE - William Waack (O Estado de S. Paulo)

LULA O IRRELEVANTE 

William Waack

O Estado de S. Paulo, 26.09.2024

Lula oscila entre acreditar que a ordem mundial possa funcionar por respeito a princípios mutuamente acordados entre os países ou que é apenas o terreno do uso da força bruta. Como não possui nenhum dos dois, sua opção preferencial em política externa tem sido a da irrelevância.

Na guerra da Ucrânia, o princípio fundamental violado é o da integridade territorial. No caso da Venezuela, foram brutalmente pisados os princípios básicos de direitos humanos e liberdades individuais. Lula não reconhece essas violações em nenhum dos casos e acabou ficando com pouca autoridade moral para condenar o que acontece em Gaza ou no Líbano.

É isso que torna inócuos seus apelos por “justiça” ou por “inclusão” dos países pobres em instâncias que deveriam ser de “governança global”, ou quando denuncia condutas hipócritas de países ricos. São apelos morais feitos por quem abandonou a moralidade.

Para ser levado a sério, especialmente quando sugere uma reforma de todas as instituições internacionais, o presidente brasileiro poderia ter feito uso de uma longa tradição brasileira de formulação de política externa — e que até certo ponto soube fazer uso do destino que a geografia nos impôs (a de estar longe de grandes conflitos e ter um claro entorno de influência).

Na visão tosca que o conduz pelas relações internacionais — a de que se trata de uma “luta de classes” entre o Norte rico e o Sul pobre — Lula move-se para o que supõe ser seu lugar “natural”. É acompanhar a China e a Rússia na contestação da hegemonia americana.

O primeiro resultado prático dessa postura é diminuir, e não aumentar, as opções para uma potência média regional com escassa capacidade de projetar poder, como é a situação do Brasil. Ainda por cima dependente de mercados na Ásia e de insumos de todo tipo oriundos de países da ainda existente aliança ocidental capitaneada pelos Estados Unidos.

O segundo é condenar à irrelevância também o papel de “liderança global” que Lula pretendeu assumir desde o início de seu atual mandato. Por escolher um lado, jogou fora qualquer credencial de “mediador” em conflitos como o da Ucrânia — mas se acha “esperto” encostando-se no grupo de países que enxerga como “vencedores” (Rússia e China).

Por não aderir a princípios, esvaziou a pretensão de ser ouvido como uma “voz” com autoridade para exigir respeito a eles. A voz dos fracos, como ele gosta de ser visto, vitimizada pela brutalidade dos fortes. O Brasil nunca dispôs de grandes poderes de coerção. Perdeu também o de persuasão.

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

EUA: Imigrantes são uma fonte de riqueza essencial no presente e no futuro - Oliver Stuenkel (O Estado de S. Paulo)

Imigração é garantia de que os EUA não entrarão em declínio

Oliver Stuenkel

O Estado de S. Paulo, 23/09/2024

https://www.estadao.com.br/internacional/oliver-stuenkel/imigracao-e-garantia-de-que-eua-nao-entrarao-em-declinio/


Disfunção política, polarização destrutiva, epidemia de opioides, dívida pública crescente, expectativa de vida masculina em declínio e risco crescente de violência política – a lista de problemas enfrentados atualmente pelos Estados Unidos é longa e preocupante. Diante de tantas dificuldades, seria de se esperar que a maior potência econômica e militar do planeta estivesse em processo irreversível de declínio.

Porém, comparados com a maioria das outras economias desenvolvidas, os EUA estão em uma situação surpreendentemente invejável: diferentemente da Alemanha e de outras economias europeias, onde as principais empresas como Volkswagen não souberam se modernizar, os EUA lideram em áreas que devem dominar a economia do século 21, como a inteligência artificial. Igualmente em contraste com várias das maiores economias do planeta – como o Japão, a China e de novo a Alemanha, que enfrentam crises demográficas – a média etária nos EUA é relativamente baixa e estável. Enquanto expressiva parte da Europa enfrenta estagnação econômica, a economia americana vai bem: atualmente os EUA são responsáveis por 26,3% da economia global, a maior porcentagem em quase duas décadas e um aumento de 2,3 pontos porcentuais desde 2018. Se o Reino Unido fizesse parte dos EUA, seria um dos Estados com o menor PIB per capita do país, comparável ao Mississippi.

Há numerosos fatores que explicam a superioridade dos EUA em dinamismo e riqueza, desde maior produtividade per capita até a “sorte geológica” de não ter que importar energia, além de um ambiente regulatório e leis trabalhistas mais flexíveis.

No entanto, um fator merece destaque e deve se tornar uma vantagem competitiva cada vez mais relevante – e uma espécie de salva-vidas econômico. Trata-se da capacidade ímpar dos EUA de atrair e integrar imigrantes em grande escala. Tal afirmação pode parecer estranha diante da retórica pouco acolhedora da chapa presidencial do Partido Republicano, que tem chance considerável de comandar a nação a partir de 2025. É pouco provável, porém, que as promessas de deportação em massa de imigrantes sem documentação passem de uma tentativa de mobilizar a base trumpista. Afinal, a expulsão dos aproximadamente 11 milhões de imigrantes ilegais no país produziria uma catástrofe econômica e criaria uma enorme pressão inflacionária em função da falta de mão de obra.

Enquanto muitos americanos criticam, com razão, a forma como o atual governo lida com a crise migratória na fronteira com o México, quase dois terços da população veem a imigração como algo positivo, e os dados corroboram as vastas vantagens que a imigração produz para os EUA. Segundo previsões do Banco Central, a força de trabalho dos Estados Unidos crescerá por 5,2 milhões de pessoas na próxima década, principalmente por causa do aumento da imigração. Como resultado, o PIB será cerca de US$ 8,9 trilhões maior, e as receitas fiscais do governo federal serão US$ 1,2 trilhão maiores no período de 2024-34, levando a uma redução de US$ 900 bilhões do déficit.

Além disso, a imigração é o motor da inovação da economia americana: 45% das empresas da Fortune 500 foram fundadas por imigrantes ou seus filhos – entre eles, Google, AT&T, Budweiser, Colgate, eBay, General Electric, IBM e McDonalds, Apple, Disney, IBM, Boeing, 3M e Home Depot. Embora os estrangeiros representem apenas 13,6% da população dos EUA, 55% das startups americanas com valor de pelo menos US$1 bilhão tiveram pelo menos um fundador imigrante.

Independentemente de quem sucederá Joe Biden na Casa Branca, não há dúvida de que os EUA devem reformar seu sistema migratório e a gestão de suas fronteiras. Da mesma maneira, porém, o país continuará se beneficiando imensamente da chegada de milhões de migrantes em busca de oportunidades econômicas – que o ex-presidente George W. Bush chamou de “trunfo definidor dos EUA”. Vale lembrar as palavras do ex-presidente Ronald Reagan, do Partido Republicano, em 1989.

“Qualquer pessoa, de qualquer canto da Terra, pode vir morar nos EUA e se tornar um americano... Acredito que essa é uma das fontes mais importantes da grandeza dos Estados Unidos. (...) De maneira única entre as nações, atraímos nosso povo—nossa força—de todos os países e de todos os cantos do mundo. E, ao fazer isso, renovamos e enriquecemos continuamente nossa nação. Graças a cada nova onda de chegada a esta terra de oportunidades, somos uma nação eternamente jovem (...) Essa qualidade é vital para nosso futuro como nação. Se algum dia fechássemos a porta para novos americanos, nossa liderança no mundo logo seria perdida.”