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sábado, 13 de abril de 2024

O petróleo é nosso - Felipe Salto (UOL)

Felipe Salto

O petróleo é nosso

Felipe Salto

Colunista do UOL

08/04/2024 07h33


As atuais confusões em torno da eventual mudança no comando da Petrobras remetem ao passado. Getúlio Vargas, Monteiro Lobato, Eugênio Gudin e Roberto Campos, o avô, já se dividiam: as forças do mercado são soberanas ou o petróleo é tão estratégico a ponto de ficar sob o guarda-chuva e a proteção do Estado brasileiro? No fundo, esta é a peleja que remanesce, apesar de as discussões parecerem tão comezinhas, como agora, quando envolvem cabeças de dirigentes, dividendos extraordinários e que tais.

Jean Paul Prates é um quadro excepcional, com formação, experiência e histórico comprovados. Não haveria motivos para ser questionado. Ocorre que o episódio dos chamados dividendos extraordinários ensejou uma verdadeira briga de foices no seio do governo, com o mercado e a imprensa assistindo de camarote.

Felizmente, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) está atenta e abriu processo administrativo na última quinta-feira para supervisionar notícias, fatos relevantes e comunicados relacionados à Petrobras. Não é para menos, pois a boataria levou a um sobe e desce na precificação das ações da empresa, o que em nada colabora com a Petrobras ou com o país.

"Uma profusão de notícias vem provocando sobe e desce nas ações da Petrobras (PETR3 e PETR4) recentemente. Os rumores sobre uma possível demissão do presidente, Jean Paul Prates, levaram a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) a abrir um processo administrativo para supervisionar o que é comunicado pela estatal. Além disso, ainda paira a indecisão quanto à distribuição de dividendos extraordinários."

O que está em jogo é a pressão pela partilha de dividendos da ordem de R$ 43,9 bilhões. Destes, 28,97% pertencem à União, de modo que uma decisão pela distribuição dos dividendos extraordinários favoreceria a estratégia da política fiscal do governo neste momento.

Trata-se de uma receita polpuda de R$ 12,59 bilhões, a ingressar nos cofres públicos para ajudar na obtenção da meta zero do ministro Fernando Haddad, sem dúvida, em um momento em que há elevada incerteza sobre os resultados das contas públicas em 2024. Além disso, os agentes privados querem o dinheiro, obviamente. De outro lado, argumenta-se, no front dos que pregam a não distribuição, que a Petrobras teria de privilegiar seus planos de investimentos e turbiná-los, inclusive.

Todos sabem dos recentes problemas gravíssimos de gestão e desestruturação pelos quais a Petrobras passou. Pedro Parente conseguiu recolocar a empresa de pé, vamos nos lembrar, e desde então o noticiário policial não contou mais com colaborações dessa frente. Ainda bem. Avançamos. Prova, em última análise, da resiliência da Petrobras, da capacidade técnica inigualável do seu corpo de trabalhadores e colaborares e de como uma gestão e uma governança adequadas são fundamentais.

Após uma estratégia baseada em desinvestimentos e foco em projetos nas áreas de exploração e produção em campos mais rentáveis, nos últimos anos, o atual governo parece pretender um novo (velho) modelo para a empresa. É o que se depreende do plano de negócios anunciado no fim do ano passado.

O plano para 2024 a 2028 prevê uma alta de 31% em relação aos investimentos do plano quinquenal anterior, com mais de US$ 100 bilhões no total. A decisão sobre a distribuição dos dividendos extraordinários está ligada a esse ponto, vale dizer. Tudo circunda a seguinte dúvida: o caixa da empresa comportará os investimentos planejados ou será preciso lançar mão dos R$ 43,9 bilhões em dividendos extraordinários até o momento retidos?

Ora, sem entrar no mérito, isso deveria ter sido dito com clareza ao mercado, à imprensa e à sociedade, tempestivamente. Os ruídos todos gerados e as especulações em torno do que seria feito do pote de ouro no fim do arco-íris produziram um grau de incerteza elevadíssimo, prejudicando o desempenho das ações da companhia e contaminando todo o mercado. Pior, transbordaram para um debate improdutivo sobre mudanças no comando da empresa.

O presidente do BNDES Aloizio Mercadante faz, a meu ver, uma boa gestão à frente do banco. A nova política industrial (Nova Indústria Brasil), sob a batuta do Ministro e vice-presidente Geraldo Alckmin, foi uma boa sacada. Os desembolsos para bons projetos estão aumentando sem contratação de risco fiscal ou repetição de erros do passado.

Por que mexer em time que está ganhando? Fazer parecer que está perdendo não vale… Aí é gol de mão.

Melhor reforçar o Senador Jean Paul e segurá-lo na cadeira, mas isso só seria possível se não houvesse um mol de boataria a cada semana que começa. Aparentemente, o Presidente Lula entrou em campo e deve resolver o imbróglio. Fala-se até numa dança das cadeiras ou em mexidas maiores envolvendo outros ministérios, como a importante pasta do Planejamento, como decorrência da questão da Petrobras.

Me parecem movimentos desnecessários e que gerariam turbulências neste momento. Não há necessidade. Já há muito por resolver na economia!

A ideia de uma Petrobras que invista mais e "gere mais empregos" remete à campanha do petróleo é nosso e à velha disputa entre os que eram acusados de entreguismo e os chamados nacionalistas. Bobagem.

Nem tanto ao mar nem tanto à terra.

O melhor é encontrar, também nesta questão - e com rapidez - o meio do caminho. O plano de negócios anunciado pela empresa já era conhecido pelo mercado. A distribuição de dividendos não prejudicaria o essencial e ainda colaboraria para as contas do país, em um momento crucial. Afinal, R$ 12,59 bilhões em receitas primárias estão longe de ser dinheiro de pinga, em que pese não salvar a lavoura.

O essencial, a meu ver, é que se evite o mal maior, agora que o episódio já tomou tamanha proporção. Em economia, temos o que eu costumo chamar de sistema de vasos comunicantes. Se os ruídos na Petrobras persistirem, os fluxos de dólares vão ser afetados e as perspectivas para a taxa de câmbio poderão ser turvadas, inclusive a própria cotação do dólar à vista. A inflação acabaria sendo afetada, sem escapatória, e a vida do Tesouro, na gestão da dívida pública, e do Banco Central, na gestão da política monetária, tornar-se-ia muito mais penosa.

Por que tudo isso?

O petróleo já é nosso, presidente Lula. Não precisa se preocupar. Dê guarida ao presidente Jean Paul e siga o jogo. Ouça o Ministro Fernando Haddad. Ele sabe o que faz.


Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

terça-feira, 31 de agosto de 2021

Uma solução para os precatórios - Felipe Salto (Estadão)

Felipe Salto tem perfeito conhecimento das contas públicas e sabe onde se deve cortar. Quem é "imbrochável" deve ter coragem para enfrentar EMENDAS ILEGAIS e IRRESPONSÁVEIS do Centrão.


01:32:37 | 31/08/2021 | Economia | O Estado de S. Paulo | Espaço Aberto | BR

Uma solução para os precatórios

    Felipe Salto *

    O episódio dos precatórios revela a preferência por contornar o teto de gastos. O risco de não pagar despesas obrigatórias já foi elucidado no meu último artigo. Dólar, inflação, juros e dívida para cima. Proponho uma solução para preservar o teto, ampliar o Bolsa Família e quitar todos os precatórios em 2022.

    O governo informou, recentemente, que haverá R$ 89,1 bilhões de sentenças judiciais e precatórios a pagar no ano que vem. Não deveria surpreender-se, já que a Advocacia-Geral da União faz o mapeamento sistemático dos riscos. Na Lei de Diretrizes Orçamentárias e no Balanço-Geral da União constam as informações agregadas. Supõe-se ser a soma dos dados pormenorizados de cada ação judicial.

    Antes, previa-se algo como R$ 57 bilhões.

    A diferença, de R$ 32,1 bilhões (89,1 menos 57), precisará caber no teto e no Orçamento. O Projeto de Lei Orçamentária Anual será apresentado hoje e, até o momento em que este artigo foi escrito, não havia solução anunciada. A PEC dos Precatórios é um erro com potencial de prejudicar a economia via aumento do risco. Retirar o gasto do teto ou fixar um limite máximo anual de pagamento seriam saídas igualmente problemáticas.

    Um dos maiores precatórios da conta de 2022 é o Fundef, programa educacional dos anos 1990 para universalizar o acesso à escola. Em particular, esses precatórios tratam da complementação paga pela União aos fundos instituídos nos Estados e municípios.

    O Fundef foi substituído pelo Fundeb, passando a incluir o ensino médio. A despesa com precatórios do Fundef tem, exata e precisamente, a mesma natureza da despesa do Fundef original e do Fundeb atual.

    A complementação da União ao Fundeb não se sujeita ao teto de gastos desde a origem da nova regra fiscal (2016). Assim, não há razão para tratar coisas iguais de modo distinto: se a complementação está fora do teto, os precatórios dela originados também devem estar.

    O STF mandou a União pagar cerca de R$ 16 bilhões em precatórios do Fundef à Bahia, ao Ceará e a Pernambuco. Sob adequado tratamento contábil a esse gasto (fora do teto), metade do rombo de R$ 32,1 bilhões estaria resolvida.

    Essa discussão foi trazida inicialmente pelo economista Daniel Couri, que logo percebeu a inconsistência.

    E o resto? Nas contas da Instituição Fiscal Independente (IFI), se a inflação de 2021 ficar igual à acumulada em 12 meses até junho (8,35%), haveria folga de pelo menos R$ 15 bilhões no teto de 2022. Vale dizer, enquanto o limite sobe pela inflaçãomedida pelo IPCA do meio do ano anterior, as despesas sujeitas ao teto sobem pela do fim do ano.

    inflação está pressionada pela taxa de câmbio, pelo risco fiscal, pelo aumento dos preços das commodities e pelo espalhamento desses fatores no setor de serviços. Esperava-se, até há pouco, que a inflação pudesse ceder ao longo do segundo semestre.

    Ao contrário, as projeções de mercado não cansam de subir. Mas a alta dos juros deve permitir, ao menos, certa estabilidade em relação ao patamar de junho.

    Destaco que a folga estimada em R$ 15 bilhões pressupõe ausência de reajustes salariais para o serviço público além dos já concedidos (militares).

    Assim, o buraco de R$ 32,1 bilhões cairia para R$ 16,1 bilhões, com a correta interpretação para os precatórios do Fundef, e, em seguida, para R$ 1,1 bilhão, pelo uso da folga do teto. Restaria equacionar R$ 1,1 bilhão. O veto presidencial à nova regra para o fundão eleitoral já daria conta disso.

    Finalmente, como ampliar o Bolsa Família? Em 2021, as emendas de relator-geral do orçamento totalizarão R$ 18,5 bilhões. Vamos imaginar um corte de R$ 10 bilhões nessas emendas, que nem deveriam existir.

    A saber, ferem a própria lógica das emendas individuais â regulamentadas e impositivas. Abalam, ainda, os princípios básicos do processo orçamentário, a exemplo da impessoalidade e da transparência.

    Outros R$ 10 bilhões poderiam ser cortados nas demais despesas discricionárias (não obrigatórias), que incluem as emendas. Corrigindo as discricionárias de 2021 pela inflação e promovendo os cortes, seria possível garantir um volume de R$ 109,7 bilhões para 2022.

    Valor baixo, mas condizente com o funcionamento da máquina pública. Apagaria o incêndio dos precatórios e tornaria viável o Bolsa Família.

    Esse montante de R$ 20 bilhões permitiria ampliar o benefício médio do Bolsa Família em aproximadamente 60%, isto é, de cerca de R$ 190 para R$ 305, mantido o número de benefícios emitidos. Pode-se, ainda, imaginar um arranjo com menor aumento do benefício mensal para contemplar uma expansão do número de famílias atendidas pelo programa.

    O que proponho não tem nada de novo: pagar as contas em dia e cortar gastos para financiar despesas novas. Todas as alternativas consideradas até aqui â 1) parcelar precatórios, 2) fixar um limite de pagamento e postergar o excedente ou 3) retirar esses gastos do teto â têm riscos não desprezíveis. Mudar a regra na iminência do seu rompimento é um caminho a evitar.

    A solução difícil, cortar gastos, ninguém quer.

    * DIRETOR-EXECUTIVO DA IFI.

    AS OPINIÕES NÃO VINCULAM A INSTITUIÇÃO.

    sexta-feira, 27 de agosto de 2021

    Fábio Giambiagi publicou um livro que precisa ser lido pelo Paulo Guedes, o inimigo do IBGE - prefácio de Felipe Salto

    Tudo Sobre O Déficit Público: Um Guia Sobre o Maior Desafio do País Para a Década de 2020

    Estatísticas: longa viagem

    Há 24 anos não conseguíamos entender o que acontecera com a despesa; hoje tudo pode ser escrutinado.

    FABIO GIAMBIAGI

    O Estado de S. Paulo, 27/08/2021

    Corria o ano de 1997, e o gasto público estava "correndo solto". A despesa do governo federal, excluídas as transferências a Estados e municípios, tem três grandes rubricas: gasto com pessoal, benefícios do INSS e as "outras despesas". Naquele ano, este terceiro grande agregado passou de 3,6% para 4,8% do Produto Interno Bruto (PIB). Um plus de 1,2% do PIB... em apenas um ano! Um salto triplo, na linguagem do atletismo. Eu conversava muito com jornalistas na época, e aqueles que cobriam a parte fiscal me ligavam para saber o que estava acontecendo. "Não sei", era o que eu respondia. Meu papel é analisar números. E os números â desagregados â na época não existiam...

    Temos certa mania nacional de achar que tudo, no Brasil, é de "Terceiro Mundo". Não é. A rigor, temos algumas coisas de excelência. Uma delas â espantosamente, sob críticas â é a urna eletrônica, uma maravilha autenticamente brasileira, que permite saber o resultado da eleição, de um país de mais de 210 milhões de habitantes, em poucas horas. Outra é representada pelas nossas estatísticas fiscais. As atuais, não as de 1997...

    Eu me formei em Economia em 1983 e, no começo de 1987, comecei a trabalhar com temas de política fiscal. Sou testemunha dos avanços que o País fez na matéria. A caminho do final de 2021, considerando, então, a totalidade dos anos extremos deste período 1987/2021, terão sido 35 anos de "militância" no tema. Alguns dos colegas que conheci neste longo percurso já se foram, e outros estão aposentados. Decidi, então, compartilhar com os leitores o que eu aprendi na matéria, no livro Tudo sobre o déficit público â O Brasil na encruzilhada fiscal, que acaba de ser lançado pela Editora Alta Books.

    Ali o leitor interessado encontrará um exame detalhado das contas públicas desde 1991, quando passamos a ter estatísticas mais ou menos compatíveis com as atuais.

    Olhando as tabelas que acompanham o livro, o leitor poderá ver uma "granularização" cada vez maior das estatísticas da despesa. Aquela conta de 1997 da qual, na época, só se sabia o valor do grande agregado foi sendo sucessivamente aberta, e hoje se conhece com luxo de detalhes cada abertura e decomposição de cada uma das contas e subcontas que compõem essa rubrica: seguro-desemprego; gastos com Legislativo, Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública; Loas; subsídios; Fundeb; sentenças judiciais; créditos extraordinários; financiamento de campanhas eleitorais; Fies; Bolsa Família; despesas por Ministério, etc.

    É uma miríade de itens, todos religiosamente divulgados com o valor da despesa, mês após mês, nas fontes oficiais. Vinte e quatro anos atrás, não conseguíamos entender o que acontecera com a despesa. Hoje, 30 dias depois de o gasto ser feito, sabemos que item pressionou as contas e em que valor. Tudo pode ser escrutinado com lupa, mês a mês.

    Infelizmente, houve também, durante o período, uma degradação fenomenal da qualidade da nossa liderança.

    Na década de 1990, os debates sobre o Orçamento eram feitos no Congresso Nacional por políticos do quilate de um Roberto Campos, Francisco Dornelles, Delfim Netto, César Maia, José Serra, etc. O contraste com o panorama atual é devastador. Se a liderança política deste nosso (cada vez mais) triste país estivesse à altura da qualidade de nossas estatísticas, porém, o Brasil poderia ser outro.

    O livro é dedicado a um conjunto de pessoas que, desde os já longínquos anos 1980, participaram da construção deste robusto arsenal de informações fiscais. Esta coluna é dedicada ao grupo de funcionários anônimos que, ao longo de mais de três décadas, nos permitiu sair da idade da pedra em matéria de estatísticas fiscais e termos o sistema confiável de dados que temos hoje, passando pelos mais diferentes governos.

    Definitivamente, num contexto em que a institucionalidade é abalroada a cada dia, o Banco Central e a Secretaria do Tesouro Nacional são dois dos bons órgãos de Estado com os quais o País conta.

     ECONOMISTA

    ============= 

     

    Prefácio para o livro 

    Tudo sobre o déficit público: o Brasil na encruzilhada 
    fiscal

    de Fabio Giambiagi 

    (Editora Alta Books. 2021)1 

    Felipe Salto, economista, diretor IFI (Senado Federal) 

    Mário Covas governou São Paulo de 1995 a 2001. Político experiente, executou um dos programas de ajuste fiscal mais expressivos de que se tem notícia. Recebeu o estado quebrado e, por meio de medidas supostamente impopulares, o reergueu. Covas, que foi reeleito, costumava dizer: “O povo nunca erra. Ele apenas precisa ter todas as informações.” 

    A “tarefa pendente” apresentada no primeiro capítulo deste livro — fio condutor de todo o volume — requer convencimento. Só se faz ajuste fiscal, isto é, corte de gastos, aumento de impostos, redução de benefícios e incentivos fiscais, mobilizando, informando e educando. É muito mais fácil e sedutor prometer aumento de despesas públicas, daí a importância de disseminar informação de boa qualidade. 

    É preciso forjar lideranças pelo “lado da demanda”, por assim dizer. A conscientização da população a respeito do descalabro fiscal é o primeiro passo. É necessário esclarecer os riscos e as vicissitudes de se ter dívida pública elevada, sistema tributário regressivo e complexo, orçamento engessado e inercial e gastos mal-ajambrados. Além disso, deve-se mostrar o que virá depois. Ajuste fiscal não é um fim em si mesmo, mas o meio para se alcançar um crescimento econômico perene, mantendo a dívida pública em trajetória sustentável. 

    No livro Austerity, Alberto Alesina, Carlo Favero e Francesco Giavazzi mostram que o corte de despesas é o caminho menos custoso para conter o aumento da dívida pública. Em um contexto de crise pandêmica, o desafio é muito maior. 

    O Brasil, corretamente, respondeu à crise da covid-19 com um forte aumento de despesas, tanto na área da saúde como na forma de auxílio às empresas, transferências diretas de renda e destinação de recursos para os governos estaduais e municipais. No pós-crise, será preciso retomar uma agenda de austeridade, respeitando-se o princípio da responsabilidade fiscal: só se pode criar gasto novo com indicação de fonte de financiamento ou corte de outras despesas. 

    Como o país tem um teto de gastos a ser observado, essa equação torna-se ainda mais intrincada. Eis o contexto em que se apresenta este livro. Escrito por um dos maiores conhecedores das entranhas das finanças públicas brasileiras — o economista Fabio Giambiagi —, trata-se de um trabalho seminal. Sim, porque dará frutos não apenas entre especialistas — já naturalmente motivados —, mas também entre jornalistas, formadores de opinião, políticos e cidadãos em geral. 
    Giambiagi tempera a apresentação limpa e direta do vasto conjunto de dados fiscais e econômicos — preparados por ele a partir das principais bases disponíveis e de estudos próprios — com história, política e literatura. A leitura é escorreita, agradável e, por isso, cativante. O leitor perceberá, da apresentação até o último capítulo, que o livro está organizado de uma maneira lógica e didática. 

    A meta do livro não é apenas dar suporte técnico ao ajuste fiscal. Ao contrário, o autor amplia o escopo dessa batalha ao compartilhar seu conhecimento sobre o assunto de maneira generosa. É pouco dizer que se tornará leitura referencial obrigatória para o público em geral e para aqueles que estão na vida pública. Analisam-se as receitas e as despesas públicas federais e suas principais segregações, a dívida pública, o deficit primário e a conta de juros. Todos os indicadores fiscais são explorados no livro, mas sob um fio condutor: o de convencer o maior número de pessoas a respeito da importância de se ter contas públicas equilibradas para alcançar melhores níveis de desenvolvimento econômico e social. 

    No Capítulo 2, o leitor aprenderá que não importa apenas o tamanho da dívida, mas seu movimento no tempo, denominado pelos economistas de “dinâmica da dívida pública”. As condições de sustentabilidade fiscal estão diretamente atreladas ao tamanho e ao crescimento da economia e à taxa de juros. Entenderá, a propósito, no Capítulo 3, que as despesas com juros não são fruto do desejo do governante, do Congresso ou do Banco Central. Esse gasto é muito peculiar, justamente por ser uma espécie de efeito colateral da política monetária. É arguta a forma como o autor derruba a tese simplista do chamado “rentismo”. 

    A situação econômica do país requer “agir com mais sabedoria e dar conta dos desafios sociais de forma compatível com a sustentabilidade fiscal”, nas palavras do autor. Os objetivos fiscais, econômicos e sociais têm de estar intimamente relacionados e devem ser planejados e executados com habilidade política e capacidade técnica. 
    No Capítulo 5, Fabio Giambiagi mostra que o gasto cresce, continuamente, desde meados dos anos 1980. Contudo, a qualidade e a quantidade de bens e serviços públicos ofertados não evoluiu de acordo — ao menos não no ritmo desejado pela sociedade. A verdade é que as políticas públicas precisam estar alicerçadas naquilo que a literatura internacional convencionou chamar de “medium term expenditure framework” ou, simplesmente plano fiscal de médio prazo. É preciso, ainda, avaliar os programas orçamentários para poder cortá-los, mantê-los ou ampliá-los, na linha das chamadas “spending reviews”. Só assim se abrirá espaço para uma atuação mais arrojada do Estado. 

    A beleza do presente trabalho está em juntar diagnóstico e propostas concretas de solução, que poderiam compor um verdadeiro plano de voo na área fiscal. Nos Capítulos 6 e 14, por exemplo, discutem-se meios muito concretos para executar a “tarefa pendente” do ajuste fiscal. Todas, é claro, com custo político. E é aí que reside a diferença entre o “ajuste em tese” e o “ajuste na prática”. Não basta defender que se diminuam os gastos. É preciso mostrar como, em que proporções, quais as rubricas a serem cortadas e em que prazo. 

    Destaco algumas: a) criar novos planos de carreira no serviço público, com salários iniciais mais baixos; b) reduzir as chamadas desonerações tributárias; c) cortar gastos classificados como “passíveis de eliminação” ou de “redução”, a exemplo da compensação ao INSS pela desoneração da folha; d) aumentar as faixas do imposto de renda; e e) reajustar os salários dos servidores abaixo da inflação. 

    O livro ainda discute as razões pelas quais será preciso revisitar o tema da previdência em alguns poucos anos — provavelmente, em 2027. O fato é que a idade média da população está aumentando. As políticas públicas de previdência e de saúde sofrerão as consequências. Resta preparar as contas e a economia para isso. Por exemplo, a reforma de 2019 terá de ser revista para que se mantenha o mesmo efeito fiscal no longo prazo. 

    A descrição detida de todas as rubricas do gasto federal é espantosa. O leitor tem em mãos um guia prático, além de tudo, cujo título não poderia ser mais fiel ao conteúdo: Tudo sobre o déficit público

    Há diversos capítulos dedicados a explicar, uma a uma, as despesas que compõem o orçamento público federal. Sem um diagnóstico como esse, vale dizer, será impossível programar e executar um programa sério de ajuste fiscal. E o ajuste tem de ser pensado à luz das regras fiscais — instituições, normas e leis que balizam o comportamento das contas públicas. A propósito, o capítulo sobre o teto de gastos públicos é realista a respeito das limitações dessa regra constitucional criada em 2016, mas aponta saídas. Como costumo dizer, o teto foi uma espécie de “tapa na mesa” para sinalizar com clareza ao mercado e à sociedade uma nova prioridade: a contenção do gasto público. 

    A importância de amainar a alta do gasto não mudou de lá para cá. A essência do teto, se abandonada, levaria o país a amargar uma piora das avaliações de risco, com apreensão do mercado e precificação, nos juros da dívida, de todo esse receio e incerteza. Nas palavras do autor deste livro: “No Brasil, tudo acaba na Constituição.” Ela é tão detalhada e abrangente, que o teto de gastos precisou também se encaixar ali. Giambiagi argumenta que será difícil manter o teto até o décimo ano, como previsto na Emenda Constitucional nº 95, de 2016, porque as despesas discricionárias estão caindo rapidamente — notadamente os investimentos. Os subsídios também diminuíram muito no último triênio até 2019, mas daqui em diante há pouco espaço fiscal para ajustar a despesa sem mexer no grupo de gastos obrigatórios. 

    Assim, o livro nos leva à reflexão de que o teto deverá ser aprimorado. Ainda, há que evitar o “teto fake”, como classifica Giambiagi. Isto é, a exclusão arbitrária de itens da despesa sujeita ao teto, a criação de subterfúgios e a adoção de regras ad hoc para atender a anseios por gastos maiores. Seria uma nova versão do velho expediente da contabilidade criativa, que tanto mal fez ao país no período de 2009 a 2014, distorcendo a lógica das metas de superavit primário. 

    Não bastasse essa análise completa do âmbito federal, o livro ainda avança sobre as finanças dos governos subnacionais, fonte de grande preocupação, sobretudo no pós-crise da covid-19. Os estados e municípios têm despesas de pessoal (com ativos e inativos) altas e crescentes. Muitos já romperam os limites legais e não adotaram medidas suficientes para amenizar ou resolver o problema. A recomendação de Guilherme Tinoco, especialista que participa do livro no Capítulo 13, é o bom e velho “feijão com arroz”. Tão distante da realidade de muitos municípios e alguns estados, consiste em: a) controlar salários e quantitativo de servidores; b) melhorar a arrecadação; e c) atrair investimento privado, já que haverá pouco (ou nenhum) espaço para aumento de investimento público. 

    Por fim, executar a “tarefa pendente” do ajuste fiscal, como indicam os Capítulos 14 e 15, requererá a eleição de governantes eficientes e ciosos da responsabilidade fiscal. Por isso, é preciso franquear aos eleitores informações fidedignas sobre o quadro das contas públicas. Esclarecida, a população cobrará mais e não será enlevada por propostas populistas, que ignorem a restrição orçamentária. É preciso ter claro: a lassidão fiscal é tóxica para o desenvolvimento econômico e social. 

    Tudo sobre o déficit público é um livro que deveria estar nas cabeceiras de todas as famílias do país, nas escolas e nas universidades. É escrito por quem tem espírito público e conhecimento prático e teórico profundos. Fabio Giambiagi já é uma referência maior no tema. Com este livro, coroa uma carreira inigualável no escrutínio cuidadoso das contas do país. Chegou a hora de mudar. E, sob a democracia, a mudança é um processo incremental, fruto de trabalho educativo permanente. 

    Boa leitura! 

     

    Felipe Salto 

     

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    Renata Lo Prete, Âncora do Jornal da Globo.

    No site da Amazon: 


    Este livro defende o equilíbrio orçamentário como condição indispensável ao crescimento econômico e à justiça social. Fabio Giambiagi, um dos principais economistas dedicados às finanças públicas, descreve de maneira simples as receitas e as despesas governamentais e a forma como estas têm se comportado no Brasil. A evolução de nossas contas públicas não é matéria exclusiva dos economistas. Ao contrário, reflete escolhas políticas e hábitos culturais. Fabio lembra que é a sociedade quem sempre paga a conta das ilusões geradas por despesas descontroladas, seja na precarização dos serviços públicos, seja na falta de dinamismo econômico – problemas que afetam, em maior intensidade, as camadas mais pobres. Nossa dívida pública, após a pandemia, precisará ser administrada com rígido controle das despesas com pessoal e avaliação da eficácia das políticas, com vistas a recuperar a confiança nos governos. Sem dúvida, essa estratégia é a melhor alternativa para proporcionar a atração de investimentos privados e a abertura de espaço para a simplificação da tributação. Comunicar com clareza e transparência é tarefa fundamental nessa luta pela conciliação dos objetivos fiscais, econômicos e sociais ― e essa é a principal contribuição deste livro. De um lado, instrumentaliza os cidadãos com informações que lhes permitem cobrar dos governantes as diretrizes do equilíbrio fiscal. De outro, inspira líderes políticos com capacidade de articulação a enfrentar os desgastes em nome de um futuro melhor para todos. Por conta do ofício, o jornalista transita por uma gama variada de temas. Para compreender cada um deles a ponto de informar com propriedade, ele recorre a quem se dedica a um assunto pela vida inteira: o especialista. O jornalista precisa fazer as perguntas certas, o que é meio caminho andado. A outra metade depende de quem responde. Ouvir quem domina um tema é um prazer, que se duplica quando a pessoa tem a capacidade de comunicar o que sabe de maneira acessível. Assim é com Giambiagi. Estudioso das finanças públicas há mais de três décadas, ele sempre demonstrou disposição para dialogar e convencer pelo argumento. Mais especificamente, convencer acerca do imperativo de controlar a trajetória da dívida pública. As duas características ― riqueza de informação e capacidade de persuasão ― estão presentes neste livro. Para quem foi exposto ao tema em termos binários ― furar ou não o teto de gastos, estabelecer se é ou não sustentável ―, eis uma oportunidade de entender como se formou essa dívida. Oportunidade também para descartar a ideia de que estaríamos fadados ao fracasso na matéria. Entre 1985 e 2010, o Brasil foi capaz de restabelecer a democracia, controlar a inflação e obter avanços sociais. Equacionar a dívida ― defende o autor ― é a “tarefa pendente” do país. Porque, sem isso, não haverá crescimento, emprego e distribuição de renda. A discussão sobre a saída da crise é algo valioso quando se sabe da aversão dos Poderes ao desafio fiscal e quando muitos atores se empenham em interditar debates de substância. O autor não tem problema em remar contra a maré. Seu livro traz diagnóstico e carta de navegação. Foi feito para iluminar lideranças ― legisladores, técnicos da máquina, pesquisadores ― e convidar a refletir sobre um assunto que nada tem de etéreo, pois afeta a vida de todos. ― Renata Lo Prete, Âncora do Jornal da Globo.


    terça-feira, 6 de julho de 2021

    Retomando uma agenda racional, em 2023 - Felipe Salto (OESP)

     Feliz 2023!

      Felipe Salto

      01:03:55 | 06/07/2021 | Economia | O Estado de S. Paulo | Espaço Aberto | BR


      Estamos em janeiro de 2023. O Brasil comemora a eleição do novo governo e o programa coeso apresentado para o País. Surge uma oportunidade real para retomarmos a tendência histórica de melhoria das condições sociais. Há espaço para discutir a ampliação da igualdade de oportunidades por meio do crescimento econômico e da atuação eficiente do Estado.

      A redução da pobreza, o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS), a preservação da Amazônia, a reinserção do Brasil no mundo, a educação de qualidade para todos, o aumento dos investimentos, a garantia dos direitos humanos, a reforma do aparelho do Estado, a simplificação do sistema tributário e a responsabilidade com as contas públicas são as bases do novo discurso oficial.

      O desafio é enorme em todas as áreas. A desigualdade social e a dinâmica medíocre de aumento do produto interno bruto (PIB) per capita precisam ser transpostas. Há muito por fazer.

      Uma premissa central do governo eleito vem das ideias de John Rawls, importante filósofo falecido em 2002. Ele defendia a tese de que, sob um "véu de ignorância", as pessoas jamais desejariam políticas públicas concentradoras de renda, que excluíssem os setores menos favorecidos. A ideia é instigante: se você não soubesse em que família nasceria, com qual situação financeira, em que região geográfica, com quais capacidades biológicas, almejaria ter condições mínimas de igualdade.

      Na mesma linha, o economista Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia, defende a chamada igualdade de oportunidades.

      Sen mostra que para ter uma sociedade economicamente desenvolvida e socialmente justa o Estado precisa garantir o acesso equitativo às políticas públicas de educação, emprego, renda, saúde, etc.

      No programa do governo eleito lê-se que o Brasil avançou muito com a Constituição cidadã, desde 1988. Os direitos sociais foram expandidos e tornaram-se obrigação do Estado, assim como a busca pela transparência e pela impessoalidade no processo orçamentário.

      A promessa é resgatar esses princípios norteadores e elaborar políticas que lhes atendam de maneira eficiente.

      Na economia, o programa mostra que o Brasil conquistou certo espaço na cena internacional nos anos 1990 e na primeira década dos 2000, e ampliou suas vantagens comparativas na exportação de produtos primários. No entanto, não superou, mesmo nos melhores momentos, o desafio de expandir permanentemente suas taxas de crescimento.

      O governo eleito para comandar o País de 2023 a 2026 parece ter percebido que a saída para a economia passa por uma combinação de políticas.

      De um lado, zelar pela responsabilidade fiscal, pelo equilíbrio da dívida pública em relação ao PIB, pela transparência no processo orçamentário, pela qualidade do gasto público e pela manutenção do controle inflacionário. De outro, abrir espaço orçamentário para políticas de incentivo â desde que bem desenhadas e avaliadas â em momentos de alto desemprego e elevada ociosidade na economia.

      Também estão no plano de governo a abertura comercial, o aumento da competitividade e a busca de acordos que favoreçam o setor produtivo nacional.

      O acordo entre o Mercosul e a União Europeia tem grandes chances de prosperar, finalmente, a partir do compromisso efetivo do Brasil com a preservação da Amazônia e de políticas ambientais responsáveis.

      A reforma do Estado começa a ser discutida a sério: busca-se a eficiência na provisão de serviços públicos, a valorização da burocracia estatal e a adoção das práticas de gestão e de remuneração por resultados.

      Preconiza-se a adoção de um sistema de avaliação de políticas públicas, com planos pilotos para testar novas ideias e evitar o desperdício de dinheiro público.

      O plano de governo é acompanhado de estimativas para o espaço orçamentário nos próximos anos. Traz simulações para o ganho derivado da extinção de políticas ineficientes, a exemplo de certos incentivos tributários carregados por décadas nas contas públicas.

      Contém, ainda, cálculo minucioso para uma proposta de reforma tributária com dois objetivos: simplificação e redução da regressividade.

      Na área social, pretende-se ampliar o Bolsa Família por meio de programa de renda básica, mas unificando programas que deram pouco resultado e nunca foram avaliados a contento. Na educação, a ministra anunciada é experiente, conhece o setor como ninguém, tem ciência dos avanços do passado e apresentou uma lista de prioridades para sua pasta.

      Na saúde, o programa proposto considera que a população brasileira está envelhecendo e a demanda por serviços do SUScrescerá. Abre-se espaço orçamentário para isso em três frentes: aumento de receitas, corte de gastos e realocação de recursos.

      Parece um sonho, não é? Depois do horror, da incompetência, da falta de sensibilidade social das hostes oficiais, da crise pandêmica, do luto não vivido, do luto evitável, da tristeza geral destes anos, poderemos ter um novo horizonte. Convidoos a imaginar, desde já, o Brasil que queremos ter a partir de 2023. O futuro é logo ali!

      *

      DIRETOR EXECUTIVO E RESPONSÁVEL PELA IMPLANTAÇÃO DA IFI.

      AS OPINIÕES NÃO VINCULAM A INSTITUIÇÃO.

      terça-feira, 25 de maio de 2021

      A volta da carestia - Felipe Salto (OESP)

       A volta da carestia

      Felipe Salto

      O Estado de S.Paulo, 25 de maio de 2021


      “O Estado não pode assistir a isso calado. A população pobre é a que sofre mais”

      A inflação de alimentos, o aumento do número de pessoas sem emprego ou fora da força de trabalho e a evolução da renda preocupam. A população pobre sofre mais. O Estado tem o dever de dirimir essas mazelas por meio de políticas adequadas. Não pode assistir calado à volta da carestia.

      A inflação foi impulsionada pela alta do dólar, que afetou os preços dos insumos e dos bens finais importados. O repasse para a inflação geral acabou ocorrendo à medida que essa pressão da taxa de câmbio resistia. Em paralelo, a alta das commodities tem afetado os preços internos. A Instituição Fiscal Independente (IFI) aponta que o IPCA totalizará alta de 7,4% no acumulado em 12 meses até junho.

      O IPCA indicou inflação de 6,8% no acumulado em 12 meses até abril. Cálculos do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) mostram que o fardo é maior sobre as classes mais baixas. Na classificação do instituto, as pessoas com renda muito baixa enfrentaram alta de preços de 7,7% até abril, enquanto as de renda alta perceberam 5,2% de inflação.

      A abertura do IPCA, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra que os preços do grupo alimentação no domicílio cresceram 16%. Os preços de dois itens básicos, arroz e feijão, subiram 57% e 51%, respectivamente. O grupo das carnes no IPCA aumentou 35%. O patinho ficou 37% mais caro, o preço do músculo bovino aumentou 41% e os do acém e do peito cresceram 38% e 46%. Mesmo o frango em pedaços teve alta de 14%.

      A renda média do brasileiro subiu apenas 1,3% acima da inflação entre o trimestre encerrado em fevereiro de 2020 e o encerrado em fevereiro de 2021. A renda dos trabalhadores do setor privado com carteira assinada caiu quase 1% em termos reais. O trabalhador doméstico amarga uma queda de 4,5% nos seus rendimentos. Já a remuneração do trabalhador formal por conta própria caiu 4,6%.

      O número total de brasileiros e brasileiras ocupados passou de 93,7 milhões para 85,9 milhões. O total de pessoas desocupadas ou fora da força de trabalho saltou de 78,3 milhões para 90,9 milhões. No mercado informal, quase 2 milhões de trabalhadores sem carteira perderam seu trabalho. Já entre os informais que trabalham por conta própria, 1,3 milhão perdeu o ganha-pão.

      Então, quem está empregado vê sua renda corroída pela inflação de alimentos. Por sua vez, os que perderam emprego dependem dos programas sociais e do auxílio emergencial. A esse respeito, é preciso ter claro que o programa em vigência é insuficiente. E não é por falta de orçamento, mas pela escolha equivocada de prioridades e pela insensibilidade social de um governo fraco. Governar é escolher.

      No ano passado, a primeira versão do auxílio emergencial pagou, durante cinco meses, um benefício em torno de R$ 697 para mais de 66 milhões de pessoas. Agora são R$ 230 reais para 39 milhões de pessoas. Serão quatro parcelas mensais, insuficientes para garantir a subsistência de milhões de brasileiros.

      Para ter claro, se o beneficiário utilizasse os R$ 230 mensais apenas para comprar arroz, feijão e carne, ele conseguiria sustentar sua família por quatro dias. A conta considera um consumo de 200 gramas de cada item, no almoço e no jantar, tomando como base uma família de quatro pessoas.

      Um cálculo alternativo: o valor médio da cesta básica está em torno de R$ 550, ou seja, o auxílio deste ano representa pouco mais de 40% da cesta, o equivalente a 12 dias de alimentação em um mês. E os outros 18 dias?

      Muitas famílias só estão sobrevivendo graças à boa vontade de ONGs, associações e pessoas que se mobilizaram para arrecadar alimentos e distribuí-los em comunidades pobres. Se o Estado não é capaz de cuidar disso, está falhando no essencial.

      Antes da crise da covid-19, o País já estava em situação de elevada desigualdade e pobreza. Mas em fevereiro deste ano, segundo levantamento recente da Fundação Getúlio Vargas (FGV), 27 milhões de pessoas viviam em situação de pobreza. O número é quase três vezes superior ao observado em agosto de 2020, quando o auxílio emergencial (em valor mais alto) cumpriu o seu papel. As mudanças no benefício têm efeitos drásticos sobre as famílias pobres.

      Estudo elaborado pelos pesquisadores do Ipea Rodrigo Orair, Letícia Bartholo, Luiz Paiva e Pedro Souza mostra que é possível cuidar mais adequadamente da questão social. Eles também apresentam alternativas para financiar os gastos adicionais necessários. Não é por falta de diagnóstico e de proposta que o governo está paralisado. É por inépcia.

      É preciso, nesta quadra de trevas da vida nacional, lembrar dom Hélder Câmara: é inaceitável assimilar a pobreza como uma condição imutável. A culpa é nossa, de todos, mas, sobretudo, de quem tem poder para formular e executar políticas públicas. Temos de nos organizar para mudar essa situação. A volta da carestia e o aprofundamento das desigualdades são consequências da crise. Aceitá-las é apenas uma entre muitas escolhas possíveis.

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      Primeiro Diretor-Executivo da IFI. As opiniões são pessoais e não vinculam a instituição.

      quarta-feira, 28 de abril de 2021

      O desmonte do Estado brasileiro - Felipe Salto

      Destaco um trecho: "Mais um exemplo da situação crítica das despesas de custeio e manutenção da máquina e de programas essenciais está no Ministério das Relações Exteriores. Após os cortes e bloqueios, o Itamaraty contará com despesas discricionárias de R$ 551 milhões. Em 2016, o orçamento foi quase três vezes maior (R$ 1,5 bilhão)."

      A verdade é que o MRE, para o governo, vale menos que o aluguel de carros para a presidência e as benesses para a família presidencial.

      Paulo Roberto de Almeida

       O desmonte do Estado brasileiro

      Felipe Salto

      O Estado de S. Paulo, Espaço Aberto, 27 de abril de 2021

      Reduz-se cada vez mais a despesa essencial para o funcionamento da máquina pública


      É sintomático que o Orçamento de 2021 tenha sido sancionado em bases irrealistas. Os cortes promovidos pelo Poder Executivo devem permitir o cumprimento do teto, mas ao preço de desmontar o Estado brasileiro. Na ausência de mudanças estruturais no gasto obrigatório, reduz-se cada vez mais a despesa essencial para o funcionamento da máquina pública.

      O chamado shutdown não acontece da noite para o dia. Na verdade, políticas públicas essenciais estão sendo desidratadas ao longo dos últimos anos. Dada a opção pelo teto de gastos, mas sem avanços para conter a despesa mandatória, a fatura vai recaindo sobre o gasto discricionário (mais exposto à tesoura).

      Em 2021, o caso do censo demográfico é emblemático. Em pleno ano de pandemia, quando se processam mudanças sociais e econômicas profundas, o Ministério da Economia anunciou que a pesquisa não será realizada. Motivo? Falta de orçamento.

      O último censo realizado foi em 2010 e custou R$ 1,1 bilhão. Atualizado pelo IPCA e pelo aumento do número de domicílios, o orçamento do programa deveria ser de R$ 2,8 bilhões em 2021. O censo fundamenta a análise, o planejamento e a formulação de uma miríade de políticas sociais, econômicas, educacionais, etc. Os cortes anunciados levaram o orçamento dessa pesquisa a cerca de R$ 53 milhões. Na verdade, esse gasto não será sequer suficiente para preparar a realização do censo em 2022.

      As despesas discricionárias do Executivo estão orçadas em R$ 74,6 bilhões para 2021. É o menor nível da série. O Ministério da Educação ficou com R$ 8,9 bilhões. Somando as emendas de relator-geral, vai a cerca de R$ 10 bilhões. Em 2016 as despesas discricionárias executadas nessa área totalizaram R$ 21,8 bilhões. Isto é, o valor de 2021 corresponde à metade do observado cinco anos atrás. Isso sem considerar a inflação do período. Isto é, uma redução brutal.

      Na pasta da Saúde, as discricionárias do Executivo ficaram em R$ 15,5 bilhões, apenas meio bilhão acima do valor observado em 2016. Somando as emendas de relator-geral remanescentes (após os cortes do presidente da República), esse valor sobe para R$ 23,3 bilhões. Ainda assim, é um patamar muito baixo, sobretudo quando comparado a 2020 (o dobro), que também foi um ano de pandemia.

      O governo argumenta que os recursos adicionais necessários à saúde serão executados por meio dos chamados créditos extraordinários, que de fato estão sendo autorizados por medidas provisórias. Aliás, alterou-se o texto da Lei de Diretrizes Orçamentárias para deixar essas e outras despesas novas de fora da meta fiscal de déficit primário fixada em lei (receitas menos despesas, exceto juros da dívida).

      Em benefício da transparência, o ideal seria ter mudado a meta de déficit (R$ 247,1 bilhões). A outra regra fiscal, o teto de gastos, já estaria resolvida, porque todo crédito extraordinário - desde que justificadas a imprevisibilidade e a urgência â não é contabilizado nas despesas sujeitas ao limite constitucional. Estimo, preliminarmente, que o déficit primário efetivo, o que afeta a dívida pública, poderá ficar em torno de R$ 290 bilhões neste ano.

      Mais um exemplo da situação crítica das despesas de custeio e manutenção da máquina e de programas essenciais está no Ministério das Relações Exteriores. Após os cortes e bloqueios, o Itamaraty contará com despesas discricionárias de R$ 551 milhões. Em 2016, o orçamento foi quase três vezes maior (R$ 1,5 bilhão).

      Na verdade, o remanejamento de verbas promovido via vetos ao Orçamento e bloqueios de despesas por decreto promoveu um corte geral de cerca de R$ 29 bilhões. Esse valor é próximo das contas feitas pela Instituição Fiscal Independente (IFI), R$ 31,9 bilhões, em março. No início da semana passada o governo soltou na imprensa que R$ 20 bilhões seriam suficientes para cumprir o teto de gastos. Errou.

      Os cortes realizados mantiveram um orçamento elevado para áreas como Desenvolvimento Regional, cuja discricionária total (Executivo) será de R$ 1,5 bilhão mais R$ 6 bilhões em emendas de relator-geral não atingidas pelos vetos presidenciais. Em 2016 gastou-se R$ 1,3 bilhão e em 2020, R$ 4,4 bilhões.

      Se o risco de paralisação de políticas essenciais se materializar, como é provável que continue a ocorrer, o governo sofrerá pressões para desbloquear o que foi tesourado por decreto. Os vetos, vale dizer, só poderiam ser revertidos pelo Congresso. Esses cortes deverão preservar o teto, mas de maneira perigosa e ineficiente.

      No ano passado o governo não planejou o Orçamento público de 2021 para um cenário de recrudescimento da crise pandêmica. O plano deveria ser realista e coerente com a responsabilidade fiscal. Já se sabia das dificuldades a serem enfrentadas neste ano, dos riscos de novas ondas da covid19 e da precariedade social, econômica e fiscal.

      O "deixa como está para ver como é que fica" custou caro. Após os cortes, pode-se até cumprir o teto, mas não sem um desmonte do Estado brasileiro. Ou isso ou vão acumular uma montanha de contas a pagar para 2022.

      *

      DIRETOR EXECUTIVO DA INSTITUIÇÃO FISCAL INDEPENDENTE (IFI)

      domingo, 4 de novembro de 2018

      Desafios (externos) ao Brasil no próximo governo - Uniceub, 5/11, 19h30

      Um ex-aluno meu do doutoramento em Direito no Uniceub, Fernando Elias, atualmente professor no curso de Relações Internacionais na mesma instituição de Brasília, consultou-me recentemente – mais ainda antes do segundo turno – sobre o que poderíamos apresentar aos seus alunos sobre o cenário que se abriria ao Brasil a partir da instalação do próximo governo, em janeiro de 2019.
      Naturalmente tendente a analisar mais as questões econômicas, do que as políticas ou mesmo as diplomáticas, sugeri a organização de uma mesa redonda sobre os desafios externos ao Brasil, e indiquei convites a dois economistas de minha confiança: Felipe Salto, da Instituição Financeira Independente, órgão do Senado Federal, e o professor Roberto Ellery, do Departamento de Economia da UnB. O próprio Fernando Elias faria a coordenação dos debates.
      Eis o banner preparado para a ocasião: 

      Para tal ocasião, e para facilitar minha exposição antes do debate, preparei uma apresentação, como registrado nesta ficha: 

      3357. “Desafios externos ao Brasil no próximo governo”, Brasília, 4 novembro 2018, 24 slides. Apresentação em mesa-redonda no Uniceub, com a participação de Felipe Salto (IFI-Senado) e Roberto Ellery (Eco-UnB), sob a coordenação do prof. Fernando Elias, do curso de Relações Internacionais, em 5/11/2018. Disponível na plataforma Academia.edu (link: http://www.academia.edu/37701676/DesafiosExternosBrasil.ppt).

      Na verdade, como se verá, todos, ou praticamente todos, os grandes problemas do Brasil são essencialmente domésticos, mas como o curso é de relações internacionais, ficou o título.

      Minha apresentação, portanto, já está disponível. As dos dois colegas poderão ser disponibilizadas oportunamente.

      Paulo Roberto de Almeida
      Brasília, 4 novembro 2018


      quinta-feira, 16 de agosto de 2018

      Renda basica: Robin Hood as avessas - Felipe Salto (2014)

      Renda básica: Robin Hood às avessas

      Felipe Salto
      Folha de S. Paulo, 19/08/2014

      É preciso considerar que a escassez de recursos é uma realidade concreta e exige seletividade nas transferências sociais
      O mítico herói inglês, que tirava dos ricos para dar aos pobres, ficaria boquiaberto diante da tese da renda básica de cidadania (ou renda mínima), defendida há anos pelo senador Eduardo Suplicy (PT-SP).
      A renda básica é uma transferência mensal a ser paga pelo Estado a todos os cidadãos --ricos e pobres. Na prática, a adoção de tal política, no Brasil, seria um retrocesso em relação aos consagrados programas de transferência de renda com condicionalidades --Bolsa Escola (no governo Fernando Henrique Cardoso) e Bolsa Família (no governo Luiz Inácio Lula da Silva).
      No Brasil, onde a desigualdade é elevada, a saída é óbvia e as evidências empíricas são muito claras: direcionar as políticas públicas àqueles que delas mais necessitam.
      Se o governo do PT tivesse seguido a lei nº 10.835, de 2004, a chamada "renda básica de cidadania" já deveria estar sendo paga a todos os brasileiros, sem distinção socioeconômica. O benefício, porém, nunca foi concretizado.
      Ainda que a renda mínima seja defendida por economistas importantes como o belga Philippe Van Parijs, à luz do argumento de que o caráter universal do programa ampliaria a liberdade pessoal, é preciso considerar que a escassez de recursos é uma realidade concreta e exige seletividade nas transferências sociais.
      A lei --proposta por Suplicy, aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente Lula-- promete pagar a todos os cidadãos o mesmo que for pago aos brasileiros mais pobres. É justo? Não.
      Seria um grave erro desperdiçar recursos do Estado, que são arrecadados da própria sociedade, quando ainda convivemos com preocupante contingente de brasileiros e de brasileiras sem o mínimo necessário para sobreviver.
      Se, hoje, conseguimos identificar a parcela mais pobre da população, com evidente sucesso, e transferir a estas pessoas montantes de recursos importantes, que os ajudam a sair da situação de pobreza extrema, por que defender a ideia de jogar recursos para o alto?
      Uma conta simples mostra o grau de desatino da tese. Há 200 milhões de habitantes no Brasil. Se fixarmos um valor de R$ 100 ao mês por habitante (quantia relativamente baixa, quando consideramos que a lei preconiza que o recurso transferido seja suficiente para custear as despesas de saúde, educação e alimentação), o montante necessário para financiar a empreitada totalizaria R$ 240 bilhões ao ano!
      Isso corresponderia a 4,6% do PIB, ou a dez vezes o orçamento anual do Bolsa Família. Ainda que a ideia fosse acatada pelo governo, caberia perguntar: de onde sairiam os recursos? De mais impostos, ou de menos gastos sociais?
      A classe A representa, hoje, 2% da população brasileira --ou cerca de 4 milhões de pessoas. Isto é, dos R$ 240 bilhões, R$ 4,8 bilhões seriam destinados aos mais ricos da sociedade, que recebem acima de R$ 13,8 mil mensais. Essa pequena parcela da sociedade já detém 17% de toda a massa de renda do país e seria ainda mais beneficiada.
      Lição número um da economia: a utilização dos recursos (privados e públicos) deve buscar o melhor resultado possível e a melhor relação de custo e benefício.
      Criar um benefício monetário igual para todos é o mesmo que jogar dinheiro pela janela. O correto é adotar políticas seletivas em favor dos mais pobres --isto é, seguir a tendência do Bolsa Escola e do Bolsa Família. Além disso, evidentemente, é preciso criar novas políticas para atender à demanda da sociedade por mais e melhores serviços públicos e garantir ambiente propício à geração de maior número de empregos com bons salários.
      A renda básica de cidadania pode partir da cabeça de gente bem-intencionada. Mas nunca é demais lembrar que, de boas intenções, o inferno está cheio.

      FELIPE SALTO, 27, é economista especializado em finanças públicas da Tendências Consultoria Integrada e professor da FGV/EESP
      Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br - www.folha.com/tendencias

      terça-feira, 16 de agosto de 2016

      Financas Publicas: Mansueto Almeida e Felipe Salto (orgs): resenha do livro por Edmar Bacha

      A caminho do lançamento em Brasília...

      ...”De certa feita, o então governador Orestes Quércia teria dito: “quebrei o Banespa, mas elegi meu sucessor”. Dilma Rousseff poderia parafraseá-lo: quebrei o país, mas me reelegi presidente...”

      Finanças Públicas: da contabilidade criativa ao resgate da credibilidade
      Felipe Salto e Mansueto Almeida, orgs.


      PREFÁCIO
      Edmar Bacha*
      (em: Felipe Salto e Mansueto Almeida, orgs., Finanças Públicas: da contabilidade criativa ao resgate da credibilidade)

      Se um marciano pousar em Brasília, ficará pasmo ao saber que o Brasil paga taxas de juros altíssimas no mercado internacional, apesar de dispor de US$370 bilhões em reservas internacionais (US$20 bilhões a mais que o total da dívida externa do país) e de seu balanço de pagamentos em conta corrente estar a caminho do equilíbrio.

      A surpresa do marciano será maior ao verificar que, descontada a inflação, a taxa de juros interna do país é uma das mais altas do mundo, apesar de o déficit primário do setor público ser relativamente pequeno, podendo ser facilmente coberto com o caixa de quase um trilhão de reais do Tesouro Nacional no Banco Central – como aliás ocorreu com o pagamento das “pedaladas fiscais” de 2014 no final de 2015.

      Um analista local ponderará ao marciano que esse caixa do Tesouro tem como contrapartida um valor ainda maior de dívidas do próprio Tesouro com o Banco Central, não devendo por isso mesmo ser usado para pagar “pedaladas”. Arguirá, ainda, que a prova de que as contas públicas estão mesmo em maus lençóis é que a dívida bruta do governo central alcança elevados 65% do PIB.

      Mas o marciano ficará novamente confuso ao ver que apenas pouco mais da metade dessa dívida está associada a déficits acumulados do governo central. A outra quase metade têm como contrapartida a aquisição de ativos pelo governo, como as reservas internacionais e créditos com o setor privado. Deduzidos esses ativos, a dívida líquida do governo alcança 34% do PIB, um valor que não assusta para os padrões internacionais atuais.

      O analista não se dará por vencido, e observará que o déficit público total, incluindo o pagamento de juros, atinge assustadores 9% do PIB. Mas o marciano achará essa constatação algo tautológica, pois o déficit total é elevado apenas porque os juros são tão altos. Se os juros fossem baixos como em quase todo mundo, o déficit também deixaria de ser assustador.

      O analista insistirá que os juros não podem baixar de suas alturas, pois a inflação anual supera os 10% anuais, quando a meta que o Banco Central persegue é de 4,5%. O marciano ficará pasmo ao saber que a inflação se mantém alta apesar de o país enfrentar uma das piores recessões de sua história, com o desemprego beirando os 9% e o PIB caindo quase 4% no ano.

      Concluirá o marciano – parafraseando Tom Jobim sem o saber – que decididamente o Brasil não é para extraterrestres. Não basta pousar o disco voador em Brasília e dar uma olhada superficial nos números. Além de uma boa formação em economia, é preciso conhecer a história do país.  Essas são qualidades que sobram nos autores reunidos por Felipe Salto e Mansueto Almeida neste livro, o que é uma boa razão para lê-lo com atenção.

      O Brasil é conhecido por ser um “caloteiro serial”, na expressão cunhada por Reinhart e Rogoff[1]. Calotes na dívida foram dados de forma direta, por Delfim Neto em 1981, Sarney em 1986 e Collor em 1990. Ou mais comumente por via de uma aceleração da inflação. Nisso o Brasil foi um recordista, até o Plano Real. Entre dezembro de 1979 e julho de 1994, a inflação acumulada foi superior a treze trilhões por cento, uma das maiores da história mundial.

      Apesar desse histórico, ao contrário de outros serial defaulters o Brasil não dolarizou. O governo conseguiu que os brasileiros continuassem a usar a moeda nacional ao invés do dólar em suas transações financeiras. Para isso, entretanto, teve que pagar uma das mais altas taxas reais de juros de mundo em sua dívida interna. Como o ônus da dívida é pesado, os brasileiros continuam a antecipar que mais dia menos dia o governo optará por provocar um novo surto inflacionário para tentar desvencilhar-se de sua custosa dívida interna, como o fez tantas vezes antes do Plano Real. Estabeleceu-se assim no país um equilíbrio precário, em que tanto a taxa de juros real como a expectativa de um calote futuro se mantêm elevadas, mesmo quando a dívida pública líquida e o déficit primário não assustam para os padrões internacionais atuais.

      Informado dessa triste história, o marciano possivelmente entenderá a razão dos números que tanto o confundiram[2]. E também porque somente através de uma continuada responsabilidade fiscal – conforme preconizada neste volume — poderá o Brasil com o tempo superar os traumas financeiros do passado e conviver com taxas de juros civilizadas.

      Como argui com conhecimento de causa Mailson da Nobrega neste livro, as tentativas de regular as contas públicas antecedem o Plano Real. Antes dele, vieram a extinção do chamado orçamento monetário e das atividades de fomento do Banco Central a ele correlatas; o fim da “conta movimento” (que era uma espécie de cheque especial sem limites que o Banco do Brasil tinha no Banco Central); e a criação da Secretaria do Tesouro Nacional, por exemplo.

      Com o Plano Real, houve a renegociação definitiva das dívidas dos Estados com a União e a extinção ou privatização de praticamente todos bancos estaduais.  A partir da introdução do câmbio flutuante em 1999, ganhou forma o chamado tripé da política macroeconômica que incluiu o regime de metas inflacionárias e o compromisso com superávits primários nas contas do governo altos o suficiente para estabilizar a dívida pública em relação ao PIB. Em 2000, foi aprovada a Lei da Responsabilidade Fiscal, “um dos mais importantes marcos na construção de restrições orçamentárias fortes no Brasil”, nas palavras de Mailson da Nóbrega.

      Apesar dos vaticínios em contrário, os dois primeiros anos da administração Lula – até o estouro do escândalo do mensalão e a demissão de Antonio Palocci – caracterizaram-se pela manutenção desses sólidos princípios de condução macroeconômica, acompanhada de reformas na previdência pública e no sistema de garantias de crédito.

      A orientação da política econômica começou a mudar a partir da saída de Palocci do governo. Essa mudança coincidiu com a emergência da China no cenário econômico mundial, que gerou uma bonança externa de dimensões jamais antes vistas na história do Brasil. Não somente o PIB se viu dinamizado, mas a demanda interna pôde crescer a taxas ainda mais elevadas que o PIB, sem provocar desequilíbrios externos graças ao superciclo das commodities e a entrada abundante de capitais estrangeiros. Embora a custo de desindustrializar o país, a apreciação do câmbio gerada pela bonança externa permitiu manter a inflação sob controle com juros reais declinantes.

      A versão brasileira da chamada maldição dos recursos naturais veio à tona com a descoberta das reservas de petróleo do pré-sal. Ao governo Lula, o céu pareceu então ser o limite e as reformas fiscais foram definitivamente abandonadas.

      O impacto da crise financeira mundial de 2008-09 sobre o país durou pouco – uma “marolinha” como então a denominou o Presidente Lula. Recuperado o acesso ao crédito internacional e mantendo a China seu ritmo de crescimento, a bonança externa prosseguiu até 2011.

      A partir de então, um novo padrão se estabeleceu na economia mundial. A estagnação dos países desenvolvidos ficou patente, mesmo após a recuperação dos Estados Unidos do pior da crise financeira. Europa e Japão pararam de crescer. A China adentrou a renda média, diminuindo de forma significativa sua taxa de crescimento. O superciclo das commodities deu-se por encerrado e a aversão ao risco voltou a prevalecer no mercado de capitais, provocando uma reversão dos fluxos antes direcionados aos países emergentes.

      O impulso externo que garantiu o crescimento da renda e da demanda na administração Lula se dissipou. O governo de Dilma Rousseff, entretanto, ignorou essa nova realidade, iludido pelo aparente êxito das políticas anticíclicas em 2009 e 2010. Uma “nova matriz macroeconômica” foi proclamada em substituição ao tripé do governo de Fernando Henrique Cardoso.

      A nova matriz se caracterizou por uma política monetária frouxa que deixou de perseguir o centro da meta; por uma expansão de gastos sem cobertura de impostos, disfarçada por manobras contábeis e pedaladas fiscais; por uma deterioração da qualidade da dívida do Tesouro,  camuflada pela ampliação das operações compromissadas do Banco Central; por controles arbitrários dos preços de insumos essenciais (como petróleo, eletricidade e serviços públicos); e pela oferta exagerada de swaps cambiais para tentar evitar a desvalorização do real sem o uso das reservas internacionais.

      De certa feita, o então governador Orestes Quércia teria dito: “quebrei o Banespa, mas elegi meu sucessor”. Dilma Rousseff poderia parafraseá-lo: quebrei o país, mas me reelegi presidente.

      Não obstante, os autores deste volume estão otimistas que dias melhores virão. Quando eles chegarem, os autores têm a oferecer boas alternativas para retomar a construção abandonada há uma década de instituições fiscais sólidas. As receitas que apresentam são sensatas e qualificadas. Dão-nos a esperança de que na próxima vez que o marciano aterrissar em Brasília poderá encontrar um país com as contas públicas em ordem, pronto para voltar a crescer com estabilidade e equidade.

      Desejando aos leitores uma proveitosa leitura, faço votos para que as propostas de resgate da credibilidade fiscal contidas neste volume sejam postas em prática o mais cedo possível.
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      *Edmar Bacha é sócio fundador e diretor do Instituto de Estudos em Política Econômica da Casa das Garças, no Rio de Janeiro. Foi consultor sênior do Banco Itaú BBA. Foi membro da equipe econômica do governo responsável pelo Plano Real. Foi também presidente do BNDES, do IBGE e da ANBID. Foi professor titular na EPGE/FGV, UnB, PUC-Rio e UFRJ, e professor visitante em Columbia, Yale, Berkeley e Stanford. Foi pesquisador no IPEA, MIT e Harvard. Autor de “Belíndia 2.0: fábulas e ensaios sobre o país de contrastes”, prêmio Jabuti de melhor livro de economia em 2013. Bacharel em economia pela UFMG e Ph.D. em economia pela Universidade de Yale.

      Notas:
      [1] Cf. Carmen M. Reinhart e Kenneth S. Rogoff, “Serial default and the “paradox” of rich-to-poor capital flows”. American Economic Review/Papers and Proceedings, 94(2), págs. 53-58, maio 2004.

      [2] Para explorar mais a fundo as explicações oferecidas nos dois parágrafos anteriores, o marciano levou em sua viagem de volta o artigo de Persio Arida, Edmar Bacha e André Lara Resende, “Crédito, juros e incerteza jurisdicional: conjeturas sobre o caso do Brasil”. Reproduzido em: Edmar Bacha, Belíndia 2.0: fábulas e ensaios sobre o país dos contrastes (Civilização Brasileira, 2012), págs. 213-249.