Estatísticas: longa viagem
Há 24 anos não conseguíamos entender o que acontecera com a despesa; hoje tudo pode ser escrutinado.
FABIO GIAMBIAGI
O Estado de S. Paulo, 27/08/2021
Corria o ano de 1997, e o gasto público estava "correndo solto". A despesa do governo federal, excluídas as transferências a Estados e municípios, tem três grandes rubricas: gasto com pessoal, benefícios do INSS e as "outras despesas". Naquele ano, este terceiro grande agregado passou de 3,6% para 4,8% do Produto Interno Bruto (PIB). Um plus de 1,2% do PIB... em apenas um ano! Um salto triplo, na linguagem do atletismo. Eu conversava muito com jornalistas na época, e aqueles que cobriam a parte fiscal me ligavam para saber o que estava acontecendo. "Não sei", era o que eu respondia. Meu papel é analisar números. E os números â desagregados â na época não existiam...
Temos certa mania nacional de achar que tudo, no Brasil, é de "Terceiro Mundo". Não é. A rigor, temos algumas coisas de excelência. Uma delas â espantosamente, sob críticas â é a urna eletrônica, uma maravilha autenticamente brasileira, que permite saber o resultado da eleição, de um país de mais de 210 milhões de habitantes, em poucas horas. Outra é representada pelas nossas estatísticas fiscais. As atuais, não as de 1997...
Eu me formei em Economia em 1983 e, no começo de 1987, comecei a trabalhar com temas de política fiscal. Sou testemunha dos avanços que o País fez na matéria. A caminho do final de 2021, considerando, então, a totalidade dos anos extremos deste período 1987/2021, terão sido 35 anos de "militância" no tema. Alguns dos colegas que conheci neste longo percurso já se foram, e outros estão aposentados. Decidi, então, compartilhar com os leitores o que eu aprendi na matéria, no livro Tudo sobre o déficit público â O Brasil na encruzilhada fiscal, que acaba de ser lançado pela Editora Alta Books.
Ali o leitor interessado encontrará um exame detalhado das contas públicas desde 1991, quando passamos a ter estatísticas mais ou menos compatíveis com as atuais.
Olhando as tabelas que acompanham o livro, o leitor poderá ver uma "granularização" cada vez maior das estatísticas da despesa. Aquela conta de 1997 da qual, na época, só se sabia o valor do grande agregado foi sendo sucessivamente aberta, e hoje se conhece com luxo de detalhes cada abertura e decomposição de cada uma das contas e subcontas que compõem essa rubrica: seguro-desemprego; gastos com Legislativo, Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública; Loas; subsídios; Fundeb; sentenças judiciais; créditos extraordinários; financiamento de campanhas eleitorais; Fies; Bolsa Família; despesas por Ministério, etc.
É uma miríade de itens, todos religiosamente divulgados com o valor da despesa, mês após mês, nas fontes oficiais. Vinte e quatro anos atrás, não conseguíamos entender o que acontecera com a despesa. Hoje, 30 dias depois de o gasto ser feito, sabemos que item pressionou as contas e em que valor. Tudo pode ser escrutinado com lupa, mês a mês.
Infelizmente, houve também, durante o período, uma degradação fenomenal da qualidade da nossa liderança.
Na década de 1990, os debates sobre o Orçamento eram feitos no Congresso Nacional por políticos do quilate de um Roberto Campos, Francisco Dornelles, Delfim Netto, César Maia, José Serra, etc. O contraste com o panorama atual é devastador. Se a liderança política deste nosso (cada vez mais) triste país estivesse à altura da qualidade de nossas estatísticas, porém, o Brasil poderia ser outro.
O livro é dedicado a um conjunto de pessoas que, desde os já longínquos anos 1980, participaram da construção deste robusto arsenal de informações fiscais. Esta coluna é dedicada ao grupo de funcionários anônimos que, ao longo de mais de três décadas, nos permitiu sair da idade da pedra em matéria de estatísticas fiscais e termos o sistema confiável de dados que temos hoje, passando pelos mais diferentes governos.
Definitivamente, num contexto em que a institucionalidade é abalroada a cada dia, o Banco Central e a Secretaria do Tesouro Nacional são dois dos bons órgãos de Estado com os quais o País conta.
ECONOMISTA
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Prefácio para o livro
Tudo sobre o déficit público: o Brasil na encruzilhada
fiscal
de Fabio Giambiagi
(Editora Alta Books. 2021)1
Felipe Salto, economista, diretor IFI (Senado Federal)
Mário Covas governou São Paulo de 1995 a 2001. Político experiente, executou um dos programas de ajuste fiscal mais expressivos de que se tem notícia. Recebeu o estado quebrado e, por meio de medidas supostamente impopulares, o reergueu. Covas, que foi reeleito, costumava dizer: “O povo nunca erra. Ele apenas precisa ter todas as informações.”
A “tarefa pendente” apresentada no primeiro capítulo deste livro — fio condutor de todo o volume — requer convencimento. Só se faz ajuste fiscal, isto é, corte de gastos, aumento de impostos, redução de benefícios e incentivos fiscais, mobilizando, informando e educando. É muito mais fácil e sedutor prometer aumento de despesas públicas, daí a importância de disseminar informação de boa qualidade.
É preciso forjar lideranças pelo “lado da demanda”, por assim dizer. A conscientização da população a respeito do descalabro fiscal é o primeiro passo. É necessário esclarecer os riscos e as vicissitudes de se ter dívida pública elevada, sistema tributário regressivo e complexo, orçamento engessado e inercial e gastos mal-ajambrados. Além disso, deve-se mostrar o que virá depois. Ajuste fiscal não é um fim em si mesmo, mas o meio para se alcançar um crescimento econômico perene, mantendo a dívida pública em trajetória sustentável.
No livro Austerity, Alberto Alesina, Carlo Favero e Francesco Giavazzi mostram que o corte de despesas é o caminho menos custoso para conter o aumento da dívida pública. Em um contexto de crise pandêmica, o desafio é muito maior.
O Brasil, corretamente, respondeu à crise da covid-19 com um forte aumento de despesas, tanto na área da saúde como na forma de auxílio às empresas, transferências diretas de renda e destinação de recursos para os governos estaduais e municipais. No pós-crise, será preciso retomar uma agenda de austeridade, respeitando-se o princípio da responsabilidade fiscal: só se pode criar gasto novo com indicação de fonte de financiamento ou corte de outras despesas.
Como o país tem um teto de gastos a ser observado, essa equação torna-se ainda mais intrincada. Eis o contexto em que se apresenta este livro. Escrito por um dos maiores conhecedores das entranhas das finanças públicas brasileiras — o economista Fabio Giambiagi —, trata-se de um trabalho seminal. Sim, porque dará frutos não apenas entre especialistas — já naturalmente motivados —, mas também entre jornalistas, formadores de opinião, políticos e cidadãos em geral.
Giambiagi tempera a apresentação limpa e direta do vasto conjunto de dados fiscais e econômicos — preparados por ele a partir das principais bases disponíveis e de estudos próprios — com história, política e literatura. A leitura é escorreita, agradável e, por isso, cativante. O leitor perceberá, da apresentação até o último capítulo, que o livro está organizado de uma maneira lógica e didática.
A meta do livro não é apenas dar suporte técnico ao ajuste fiscal. Ao contrário, o autor amplia o escopo dessa batalha ao compartilhar seu conhecimento sobre o assunto de maneira generosa. É pouco dizer que se tornará leitura referencial obrigatória para o público em geral e para aqueles que estão na vida pública. Analisam-se as receitas e as despesas públicas federais e suas principais segregações, a dívida pública, o deficit primário e a conta de juros. Todos os indicadores fiscais são explorados no livro, mas sob um fio condutor: o de convencer o maior número de pessoas a respeito da importância de se ter contas públicas equilibradas para alcançar melhores níveis de desenvolvimento econômico e social.
No Capítulo 2, o leitor aprenderá que não importa apenas o tamanho da dívida, mas seu movimento no tempo, denominado pelos economistas de “dinâmica da dívida pública”. As condições de sustentabilidade fiscal estão diretamente atreladas ao tamanho e ao crescimento da economia e à taxa de juros. Entenderá, a propósito, no Capítulo 3, que as despesas com juros não são fruto do desejo do governante, do Congresso ou do Banco Central. Esse gasto é muito peculiar, justamente por ser uma espécie de efeito colateral da política monetária. É arguta a forma como o autor derruba a tese simplista do chamado “rentismo”.
A situação econômica do país requer “agir com mais sabedoria e dar conta dos desafios sociais de forma compatível com a sustentabilidade fiscal”, nas palavras do autor. Os objetivos fiscais, econômicos e sociais têm de estar intimamente relacionados e devem ser planejados e executados com habilidade política e capacidade técnica.
No Capítulo 5, Fabio Giambiagi mostra que o gasto cresce, continuamente, desde meados dos anos 1980. Contudo, a qualidade e a quantidade de bens e serviços públicos ofertados não evoluiu de acordo — ao menos não no ritmo desejado pela sociedade. A verdade é que as políticas públicas precisam estar alicerçadas naquilo que a literatura internacional convencionou chamar de “medium term expenditure framework” ou, simplesmente plano fiscal de médio prazo. É preciso, ainda, avaliar os programas orçamentários para poder cortá-los, mantê-los ou ampliá-los, na linha das chamadas “spending reviews”. Só assim se abrirá espaço para uma atuação mais arrojada do Estado.
A beleza do presente trabalho está em juntar diagnóstico e propostas concretas de solução, que poderiam compor um verdadeiro plano de voo na área fiscal. Nos Capítulos 6 e 14, por exemplo, discutem-se meios muito concretos para executar a “tarefa pendente” do ajuste fiscal. Todas, é claro, com custo político. E é aí que reside a diferença entre o “ajuste em tese” e o “ajuste na prática”. Não basta defender que se diminuam os gastos. É preciso mostrar como, em que proporções, quais as rubricas a serem cortadas e em que prazo.
Destaco algumas: a) criar novos planos de carreira no serviço público, com salários iniciais mais baixos; b) reduzir as chamadas desonerações tributárias; c) cortar gastos classificados como “passíveis de eliminação” ou de “redução”, a exemplo da compensação ao INSS pela desoneração da folha; d) aumentar as faixas do imposto de renda; e e) reajustar os salários dos servidores abaixo da inflação.
O livro ainda discute as razões pelas quais será preciso revisitar o tema da previdência em alguns poucos anos — provavelmente, em 2027. O fato é que a idade média da população está aumentando. As políticas públicas de previdência e de saúde sofrerão as consequências. Resta preparar as contas e a economia para isso. Por exemplo, a reforma de 2019 terá de ser revista para que se mantenha o mesmo efeito fiscal no longo prazo.
A descrição detida de todas as rubricas do gasto federal é espantosa. O leitor tem em mãos um guia prático, além de tudo, cujo título não poderia ser mais fiel ao conteúdo: Tudo sobre o déficit público.
Há diversos capítulos dedicados a explicar, uma a uma, as despesas que compõem o orçamento público federal. Sem um diagnóstico como esse, vale dizer, será impossível programar e executar um programa sério de ajuste fiscal. E o ajuste tem de ser pensado à luz das regras fiscais — instituições, normas e leis que balizam o comportamento das contas públicas. A propósito, o capítulo sobre o teto de gastos públicos é realista a respeito das limitações dessa regra constitucional criada em 2016, mas aponta saídas. Como costumo dizer, o teto foi uma espécie de “tapa na mesa” para sinalizar com clareza ao mercado e à sociedade uma nova prioridade: a contenção do gasto público.
A importância de amainar a alta do gasto não mudou de lá para cá. A essência do teto, se abandonada, levaria o país a amargar uma piora das avaliações de risco, com apreensão do mercado e precificação, nos juros da dívida, de todo esse receio e incerteza. Nas palavras do autor deste livro: “No Brasil, tudo acaba na Constituição.” Ela é tão detalhada e abrangente, que o teto de gastos precisou também se encaixar ali. Giambiagi argumenta que será difícil manter o teto até o décimo ano, como previsto na Emenda Constitucional nº 95, de 2016, porque as despesas discricionárias estão caindo rapidamente — notadamente os investimentos. Os subsídios também diminuíram muito no último triênio até 2019, mas daqui em diante há pouco espaço fiscal para ajustar a despesa sem mexer no grupo de gastos obrigatórios.
Assim, o livro nos leva à reflexão de que o teto deverá ser aprimorado. Ainda, há que evitar o “teto fake”, como classifica Giambiagi. Isto é, a exclusão arbitrária de itens da despesa sujeita ao teto, a criação de subterfúgios e a adoção de regras ad hoc para atender a anseios por gastos maiores. Seria uma nova versão do velho expediente da contabilidade criativa, que tanto mal fez ao país no período de 2009 a 2014, distorcendo a lógica das metas de superavit primário.
Não bastasse essa análise completa do âmbito federal, o livro ainda avança sobre as finanças dos governos subnacionais, fonte de grande preocupação, sobretudo no pós-crise da covid-19. Os estados e municípios têm despesas de pessoal (com ativos e inativos) altas e crescentes. Muitos já romperam os limites legais e não adotaram medidas suficientes para amenizar ou resolver o problema. A recomendação de Guilherme Tinoco, especialista que participa do livro no Capítulo 13, é o bom e velho “feijão com arroz”. Tão distante da realidade de muitos municípios e alguns estados, consiste em: a) controlar salários e quantitativo de servidores; b) melhorar a arrecadação; e c) atrair investimento privado, já que haverá pouco (ou nenhum) espaço para aumento de investimento público.
Por fim, executar a “tarefa pendente” do ajuste fiscal, como indicam os Capítulos 14 e 15, requererá a eleição de governantes eficientes e ciosos da responsabilidade fiscal. Por isso, é preciso franquear aos eleitores informações fidedignas sobre o quadro das contas públicas. Esclarecida, a população cobrará mais e não será enlevada por propostas populistas, que ignorem a restrição orçamentária. É preciso ter claro: a lassidão fiscal é tóxica para o desenvolvimento econômico e social.
Tudo sobre o déficit público é um livro que deveria estar nas cabeceiras de todas as famílias do país, nas escolas e nas universidades. É escrito por quem tem espírito público e conhecimento prático e teórico profundos. Fabio Giambiagi já é uma referência maior no tema. Com este livro, coroa uma carreira inigualável no escrutínio cuidadoso das contas do país. Chegou a hora de mudar. E, sob a democracia, a mudança é um processo incremental, fruto de trabalho educativo permanente.
Boa leitura!
Felipe Salto
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Renata Lo Prete, Âncora do Jornal da Globo.
No site da Amazon:
Este livro defende o equilíbrio orçamentário como condição indispensável ao crescimento econômico e à justiça social. Fabio Giambiagi, um dos principais economistas dedicados às finanças públicas, descreve de maneira simples as receitas e as despesas governamentais e a forma como estas têm se comportado no Brasil. A evolução de nossas contas públicas não é matéria exclusiva dos economistas. Ao contrário, reflete escolhas políticas e hábitos culturais. Fabio lembra que é a sociedade quem sempre paga a conta das ilusões geradas por despesas descontroladas, seja na precarização dos serviços públicos, seja na falta de dinamismo econômico – problemas que afetam, em maior intensidade, as camadas mais pobres. Nossa dívida pública, após a pandemia, precisará ser administrada com rígido controle das despesas com pessoal e avaliação da eficácia das políticas, com vistas a recuperar a confiança nos governos. Sem dúvida, essa estratégia é a melhor alternativa para proporcionar a atração de investimentos privados e a abertura de espaço para a simplificação da tributação. Comunicar com clareza e transparência é tarefa fundamental nessa luta pela conciliação dos objetivos fiscais, econômicos e sociais ― e essa é a principal contribuição deste livro. De um lado, instrumentaliza os cidadãos com informações que lhes permitem cobrar dos governantes as diretrizes do equilíbrio fiscal. De outro, inspira líderes políticos com capacidade de articulação a enfrentar os desgastes em nome de um futuro melhor para todos. Por conta do ofício, o jornalista transita por uma gama variada de temas. Para compreender cada um deles a ponto de informar com propriedade, ele recorre a quem se dedica a um assunto pela vida inteira: o especialista. O jornalista precisa fazer as perguntas certas, o que é meio caminho andado. A outra metade depende de quem responde. Ouvir quem domina um tema é um prazer, que se duplica quando a pessoa tem a capacidade de comunicar o que sabe de maneira acessível. Assim é com Giambiagi. Estudioso das finanças públicas há mais de três décadas, ele sempre demonstrou disposição para dialogar e convencer pelo argumento. Mais especificamente, convencer acerca do imperativo de controlar a trajetória da dívida pública. As duas características ― riqueza de informação e capacidade de persuasão ― estão presentes neste livro. Para quem foi exposto ao tema em termos binários ― furar ou não o teto de gastos, estabelecer se é ou não sustentável ―, eis uma oportunidade de entender como se formou essa dívida. Oportunidade também para descartar a ideia de que estaríamos fadados ao fracasso na matéria. Entre 1985 e 2010, o Brasil foi capaz de restabelecer a democracia, controlar a inflação e obter avanços sociais. Equacionar a dívida ― defende o autor ― é a “tarefa pendente” do país. Porque, sem isso, não haverá crescimento, emprego e distribuição de renda. A discussão sobre a saída da crise é algo valioso quando se sabe da aversão dos Poderes ao desafio fiscal e quando muitos atores se empenham em interditar debates de substância. O autor não tem problema em remar contra a maré. Seu livro traz diagnóstico e carta de navegação. Foi feito para iluminar lideranças ― legisladores, técnicos da máquina, pesquisadores ― e convidar a refletir sobre um assunto que nada tem de etéreo, pois afeta a vida de todos. ― Renata Lo Prete, Âncora do Jornal da Globo.
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