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sexta-feira, 27 de agosto de 2021

A demolição do Direito Internacional sob o bolsolavismo diplomático, 2018-2021 - Paulo Roberto de Almeida, Matheus Atalanio

 Nesta sexta-feira, 27/08/2021, participo, com o advogado Matheus Atalanio, do 19. Congresso Brasileiro de Direito Internacional. Escolhi falar sobre o tema título, mas ainda não terminamos de escrever o paper, que na verdade só vai ser publicado mais tarde. Mas antes de abordar o tema principal, resolvi fazer uma longa digressão sobre o papel do Direito Internacional na diplomacia brasileira, que transcrevo abaixo. A segunda parte virá oportunamente.


A demolição do Direito Internacional sob o bolsolavismo diplomático, 2018-2021

  

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor

Matheus Atalanio; advogado, membro da Comissão de Direito Internacional da OAB

Notas para palestra no 19º. Congresso da ABDI (27/08/2021; 16:00, sala: 3)

Primeiro rascunho de artigo para publicação nos anais do Congresso

 

 

A tradição brasileira em direito internacional em perspectiva histórica

A América Latina tem, reconhecidamente, uma longa tradição em matéria de Direito Internacional. Mesmo os não especialistas saberiam reconhecer a importância da contribuição continental nesse terreno bastando, por exemplo, fazer referência ao princípio do uti possidetis, à cláusula Calvo, à doutrina Drago, ao instituto do asilo diplomático ou ao conceito de mar patrimonial. O Brasil, por sua vez, possui longa prática diplomática, alicerçada em sólida e igualmente longa tradição jurídico-legal, o que tornou sua política externa respeitada internacionalmente e merecedora da confiança dos demais membros do sistema interestatal contemporâneo. 

Muitos dos “pais fundadores” da nação, antes, durante e no processo de construção do Estado independente, tinham formação jurídica, a maior parte realizada em Coimbra, sendo que no decorrer do Império dezenas de dirigentes, ademais obviamente dos magistrados, frequentaram os dois principais cursos jurídicos criados no país em 1827, em São Paulo e no Recife. Um dos líderes dos Conservadores, ou do chamado Regresso, Paulino José Soares de Souza, o Visconde do Uruguai, ministro dos negócios estrangeiros em duas ocasiões, deixou sua marca na literatura, com obras dedicadas à organização do Estado e ao funcionamento da administração pública: Ensaio sobre o Direito Administrativo(1862) e Estudos práticos sobre a administração das províncias (1865). 

José Maria da Silva Paranhos, o Visconde do Rio Branco, a despeito de não ter formação na área – era matemático e professor na Escola de Guerra Naval –, também se exerceu como chanceler, tendo criado, em 1859, o cargo de Consultor Jurídico na Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, função que ele próprio exerceu durante certo tempo. O cargo foi depois extinto, mas recriado por seu filho Paranhos Jr., o Barão do Rio Branco, quando ocupou por sua vez o Itamaraty na República. Muitas das negociações diplomáticas conduzidas pela chancelaria, pelo Barão do Rio Branco pessoalmente, em especial nas questões de fronteiras e na construção das posições do Brasil no campo das relações exteriores estavam solidamente ancoradas no respeito ao direito internacional, a marca do país na sua ação diplomática. Rio Branco proclamou uma vez que “o Brasil do futuro há de continuar invariavelmente a confiar acima de tudo na força do Direito”, e de fato essa postura foi rigorosamente seguida em todas as demais gestões.

Essas características foram ainda mais reforçadas por ocasião da Segunda Conferência Internacional da Paz, realizada na Haia, em 1907, na qual Rui Barbosa foi o chefe da delegação brasileira. Os temas da agenda eram os mais vastos possíveis, compreendendo a humanização da guerra (como um primeiro passo para a manutenção da paz), o primado da juridicidade nas relações internacionais, a revitalização do Direito das Gentes, o reexame dos conceitos de soberania, o arbitramento obrigatório em litígios pendentes, um tribunal de apelação em matéria de presas, a cobrança de dívidas, o estabelecimento de uma Corte Permanente de Arbitragem, assim como a composição de um Tribunal de Presas. Rui foi um resoluto defensor da igualdade soberana de todos os Estados, independentemente de seu tamanho ou poder militar, esforçando-se por estabelecer uma conceituação da soberania política em bases claras. Na conceituação de um diplomata, Rui foi um dos pioneiros na formulação doutrinária que conduziu à aceitação universal do princípio da igualdade jurídica dos Estados, pedra basilar do multilateralismo contemporâneo.[1]

Desde essa época, a construção dos valores e princípios da diplomacia brasileira sempre se fez pela via da adesão irrestrita às grandes cláusulas do direito internacional, o que aliás vinha reforçado pela presença de grandes juristas em sua Consultoria Jurídica. Segundo a definição constante do antigo Regimento da chancelaria do Império, a Consultoria Jurídica estava encarregada de “dar parecer sobre as negociações de quaisquer ajustes internacionais, os atos internacionais submetidos à aprovação ou ratificação, a inteligência e execução de quaisquer obrigações internacionais, as indenizações reclamadas por via diplomática, as contestações de Direito Internacional Público ou Privado e as propostas legislativas e regulamentos apresentados ou expedidos pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros”.[2]

Renovada pelo Barão, a Consultoria Jurídica foi imediatamente ocupada por Carlos Augusto de Carvalho, ex-chanceler na década anterior (presidência Floriano Peixoto), mas ele não ocupou o cargo senão por dois meses. O segundo Consultor Jurídico do Itamaraty foi Amaro Cavalcanti Soares de Brito, fundador e presidente da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, que também permaneceu pouco tempo no cargo por ter sido nomeado para o Supremo Tribunal Federal em maio de 1906. O terceiro, e provavelmente mais longevo, consultor jurídico do Itamaraty foi Clóvis Beviláqua que, nomeado em 1906, permaneceu no cargo até 1934, quando foi aposentado compulsoriamente, por disposição constitucional, tendo sido sucedido pelo jurista Gilberto Amado. Beviláqua é talvez mais conhecido como o autor, em 1916, do Código Civil brasileiro, que na verdade tinha sido iniciado por Epitácio Pessoa. 

Quase dez anos depois de ter defendido, em nome do Brasil, a igualdade soberana das nações na conferência da paz da Haia, Rui Barbosa, designado embaixador especial do Brasil nas comemorações do primeiro centenário da independência da Argentina, pronunciou, em 14 de julho de 1916, na Faculdade de Direito e Ciências Sociais, na qual recebeu o título de Doutor Honoris Causa, um longo discurso entremeando história argentina e os problemas do momento, vale dizer, a Grande Guerra. Sua conferência, “Los Conceptos Modernos del Derecho Internacional”, abordou não apenas o patrimônio jurídico e político do país platino, mas também os problemas causados pela invasão da Bélgica pela Alemanha, em total desrespeito aos princípios da neutralidade. A conferência – que ficou mais conhecida como “O dever dos neutros” – teve enorme impacto, tanto na Argentina quanto no Brasil, e os “conceitos modernos” enunciados por Rui também conheceram repercussão fora dos dois países, alcançando prestígio internacional, e passando, de certa forma, a integrar o patrimônio jurídico e doutrinário da diplomacia brasileira.[3]

Esse exato discurso de Rui Barbosa em Buenos Aires foi relembrado pelo chanceler Oswaldo Aranha, em 1942, quando o Brasil se viu confrontado à extensão da guerra europeia ao continente americano, instando, então, o Brasil, a assumir suas responsabilidades no plano dos princípios do direito internacional e dos valores da solidariedade hemisférica. A Alemanha tinha, mais uma vez, violado a neutralidade da Bélgica, para invadir a França. A postura de Aranha – que havia recepcionado Rui, quando jovem estudante no Rio de Janeiro, no memento em que o jurista desembarcava triunfalmente na volta ao Brasil –, foi decisiva para que, ao contrário da vizinha Argentina, então controlada pelo Grupo de Oficiais Unidos, de orientação simpática ao Eixo, o Brasil adotasse uma postura compatível com a construção doutrinal iniciada por Rui e de acordo a seus interesses nacionais, nos contextos hemisférico e global, em face do desrespeito brutal ao direito internacional cometido pelas potências nazifascistas na Europa e fora dela.

O Brasil foi a princípio neutro no conflito, sendo que o Consultor Jurídico nessa época, James Darcy, usou argumentos de seu antecessor Clóvis Beviláqua para examinar princípios e regras da guerra no direito público internacional, aplicáveis em caso de beligerância: bloqueio, busca e captura, respeito aos territórios e águas neutros. Depois de relembrar que o Brasil já era parte da Convenção relativa ao rompimento de hostilidades, aprovada na conferência da Haia de 1907, na qual se previa a notificação da beligerância às “potências neutras”, o Consultor recomendava, para o caso de guerra internacional envolvendo o Brasil, a adoção dos princípios formulados no Projeto de Código de Direito Internacional Público de Epitácio Pessoa.[4]

No imediato pós-guerra, assume a Consultoria Jurídica Levi Carneiro, que assina inúmeros pareceres nos quais ainda dominam vários problemas decorrentes da guerra. Um dos seus últimos pareceres, assinado em 5/12/1951, já tratava da criação de uma Corte Criminal Internacional: uma comissão de 15 países reuniu-se em Genebra, em agosto desse ano, sendo o Brasil representado por Gilberto Amado, antigo Consultor do Itamaraty em meados dos anos 1930, depois membro da Comissão de Direito Internacional. Amado dedicou-se, segundo ele, a fazer prevalecer o “bom senso”, eliminando, por exemplo, a competência da proposta corte para julgar “criminosos internacionais”.[5]

A década de 1950 pertence inteiramente, por assim dizer, ao eminente jurista Hildebrando Accioly, autor de um alentado Tratado de Direito Internacional Público que serviu a diversas gerações de diplomatas, e candidatos a tal, e não só no Brasil. Accioly, que ingressou na carreira diplomática em 1916, assinou, com o também diplomata e historiador Heitor Lyra, textos introdutórios aos Arquivos Diplomáticos da Independência, publicados por ocasião do primeiro centenário da autonomia nacional.[6] Tendo chegado a embaixador em 1938, exerceu diversos cargos no Itamaraty, entre eles Secretário-Geral, Ministro de Estado interino e dirigiu o Instituto Rio Branco nos seus primeiros dois anos de existência. 

Os inúmeros pareceres de Hildebrando Accioly cobrem todos os temas de que se ocupou a chancelaria brasileira nos anos 1950 e 60: declaração sobre direitos e deveres dos Estados, reservas a tratados internacionais (1952), projeto de Convenção da ONU sobre nacionalidade (1953), fundamentos jurídicos da extradição, projeto da Comissão de Direito Internacional sobre processo arbitral, convenção internacional sobre um estatuto para os apátridas, Corte Interamericana para a proteção de direitos humanos (1954), problemas jurídicos da aplicação do Tratado Interamericano de 1947 de Assistência Recíproca (TIAR), projeto de convenção sobre execução de sentenças arbitrais internacionais (1955), asilo diplomático, acordo de assistência militar Brasil-Estados Unidos (1956), disposições da Constituição sobre atos internacionais, refugiados políticos de países vizinhos, projeto de acordo com a Bolívia sobre exploração de petróleo (1957), problemas do espaço exterior, protocolos de emenda ao Gatt (1958), projetos da Comissão de Direito Internacional sobre relações e imunidades diplomáticas (1959), acordo de comércio e pagamentos com a União Soviética e inviolabilidade do domínio reservado dos Estados (1960).

Vinte anos depois que Oswaldo Aranha recorreu ao memorável discurso de Rui em Buenos Aires para sustentar a postura do Brasil em face da guerra europeia, quando se discutia na conferência interamericana de Punta Del Este (1962) a dimensão jurídica da opção de Cuba pela sua opção de sua adesão a um regime comunista, o então chanceler San Tiago Dantas soube preservar o patrimônio jurídico da diplomacia brasileira ao defender, de maneira clara, o respeito ao princípio da não intervenção nos assuntos internos de outros Estados. Outros juristas e diplomatas brasileiros, ao longo do século, a exemplo de Raul Fernandes, Afrânio de Melo Franco, Afonso Arinos de Melo Franco, pouco depois Araújo Castro e mais adiante Celso Lafer, participaram dessa construção doutrinal e pragmática dos valores e princípios da diplomacia brasileira. Há que reconhecer, no entanto, que Rui Barbosa foi o pioneiro na defesa do direito internacional, ou foi, pelo menos, um dos grandes iniciadores e batalhadores pela afirmação dessas grandes diretrizes políticas que hoje integram plenamente o patrimônio consolidado da diplomacia brasileira.

O início dos anos 1960 foi especialmente turbulento na esfera internacional e no terreno doméstico, um momento em que a Guerra Fria chegou ao seu auge, inclusive no hemisfério, com o problema dos mísseis soviéticos em Cuba. Além desse problema, San Tiago Santas se ocupou igualmente do reatamento de relações diplomáticas com a União Soviética e de outros grandes temas do momento, como a questão do desarmamento nuclear, da descolonização, das relações com os países vizinhos e com os Estados Unidos, potência com a qual ele tentaria, já como ministro da Fazenda, encontrar um alívio para a difícil situação do endividamento externo do Brasil.

Na sequência do grande teste para a diplomacia brasileira que foi o problema de Cuba, ao sustentar posturas contrárias à diplomacia truculenta dos Estados Unidos, o Itamaraty voltou a contar com grandes juristas a serviço de uma fidelidade consagrada ao Direito Internacional. Os anos 1961-71 estão identificados com o trabalho de Haroldo Valladão, professor catedrático de Direito Internacional Privado da antiga Universidade do Brasil (depois UFRJ) e que tinha como divisa, estampada em todos os seus escritos, a frase em latim: nulla dies sine linea nec schola (nenhum dia sem escrever ou lecionar), o que parece representar um magnífico programa de vida. Antes de se tornar consultor do Itamaraty, já tinha sido Consultor Geral da República (1947-50) e professor no Instituto Rio Branco. Muitos dos seus pareceres atenderam às necessidades do Itamaraty dessa época, como a adesão de novas partes contratantes ao Gatt, o estabelecimento tácito de relações diplomáticas (1961), a pesca da lagosta por barcos franceses (1962), recursos naturais da plataforma continental, entre eles a lagosta (1963), acordo de comércio e pagamentos com a Polônia (1964), mar territorial e direito de pesca, modificações constitucionais de interesse do Itamaraty (1966), Convenção da ONU sobre Direito dos Tratados (1968), projeto da convenção interamericana de direitos humanos (1969), e vários outros temas da agenda internacional daquela época. Um outro jurista, colega de carreira, Geraldo Eulálio do Nascimento e Silva, fez uma advertência quanto à efetividade desse trabalho, no sentido de que nem sempre os argumentos e propostas formulados pelo consultor eram necessariamente seguidos pela Casa na implementação efetiva de uma dada política (dados outros elementos diplomáticos em jogo).

Em todo caso, muitos diplomatas, assim como juristas que desempenharam funções diplomáticas nessa época, entre eles San Tiago Dantas e Afonso Arinos, nunca deixaram de reconhecer, desde a famosa conferência de Rui Barbosa em Buenos Aires, a poderosa influência de seus argumentos para apoiar posições diplomáticas do Brasil nos contextos regional e internacional. Nos anos 1970, o Itamaraty se serviu de seus consultores para orientar suas posturas em relação a diferentes temas dessa época: aspectos jurídico-internacionais da demarcação do Salto de Sete Quedas e da delimitação dos rios internacionais (que depois desembocariam na solução diplomática aplicada ao caso de Itaipu, com o Paraguai), a crise entre a Argentina e o Reino Unido em torno das ilhas Malvinas e a necessidade de prévia autorização legislativa para a participação das Forças Armadas em operações militares no exterior.[7]

O primeiro Consultor Jurídico do Itamaraty na redemocratização foi o professor Antônio Augusto Cançado Trindade, já autor, a despeito de relativamente jovem, de vasta obra no campo do direito internacional. Ele foi um dos mais dinâmicos, produtivos e eficientes consultores com que o Itamaraty contou, sendo, praticamente sozinho, responsável por uma impressionante coleção de mais de duzentos circunstanciados pareceres. Sua gestão coincidiu também com o processo de reconstitucionalização do Brasil, por meio do Congresso constituinte de 1987-88, o que determinou que ele fosse ouvido nas comissões que se ocuparam dos princípios que regem as relações internacionais do país e o processo de celebração de tratados. 

Entre 1985 e 1990, Cançado Trindade assinou alentados pareceres, praticamente todos recheados de notas de rodapé, milhares delas, referenciando obras relevantes de cada uma das áreas examinadas especificamente, o que praticamente nunca tinha sido visto nos textos dos antigos consultores, que se contentavam em citar, no corpo do texto, um ou outro tratadista mais conhecido. Em outros termos, Cançado Trindade elevou a arte da consultoria jurídica à condição de scholarly work, de trabalho científico no pleno conceito da expressão, representando assim, uma acumulação inédita de citações eruditas nos trabalhos da chancelaria brasileira, sem esquecer suas reflexões de alto conteúdo intelectual, que honram não só a inteligência da Consultoria Jurídica como também ajudaram a construir, ou a reforçar, a própria credibilidade e reconhecida excelência do Itamaraty.

Seguiram-se a Cançado Trindade, outros eminentes juristas, como Vicente Marotta Rangel – eminente professor da Faculdade de Direito da USP, depois juiz do Tribunal Internacional sobre Direito do Mar (Hamburgo) –, João Grandino Rodas – também oriundo da São Francisco, posteriormente Diretor da Faculdade e Reitor da USP –, e imediatamente após, o professor Antonio Paulo Cachapuz de Medeiros, que se desempenhou no Itamaraty desde 1998 até 2015, sucedendo a Marotta no Tribunal de Hamburgo (onde veio infelizmente a falecer precocemente). Pode-se dizer, de maneira geral, que os juristas a serviço da diplomacia brasileira construíram boa parte das doutrinas e das posições nacionais em matéria de política exterior, colaborando assim, de modo significativo, para o reforço da credibilidade, seriedade e da reputação de excelência que caracterizam, desde muito tempo, o serviço exterior brasileiro. 

As posições doutrinais e práticas da diplomacia brasileira foram sendo elaboradas progressivamente ao longo de mais de um século de construção do Estado nacional, de consolidação de sua diplomacia profissional e da lenta acumulação de valores e princípios que passaram a guiar sua política externa e sua diplomacia, sobretudo a partir do regime republicano. Desde meados do século XIX, a formulação desses princípios e valores contou com a inteligência e a ação de grandes homens públicos, diplomatas, juristas, tribunos e intelectuais de diversas orientações políticas, mas concordantes no essencial: a preservação da soberania nacional, o respeito ao direito internacional, a solução de controvérsias internacionais por meios pacíficos, a não intervenção nos assuntos internos de outros Estados, a defesa intransigente do caráter nacional, sobretudo apartidário da política externa (como alertou Rio Branco, logo ao início de sua gestão), a assunção de responsabilidades internacionais quanto a conflitos interestatais que possam ter repercussões globais (como no caso dos dois conflitos mundiais) e diversos outros elementos que podem ser identificados numa análise mesmo perfunctória desse processo de construção de valores e princípios da diplomacia brasileira.

Ao longo de sua história, o Brasil teve de apelar para todos os recursos do direito internacional, para as suas capacidades próprias e, algumas vezes, até para a força das suas armas, para fazer valer a sua integridade territorial, sua soberania nacional, a honra e a defesa da pátria, quando ameaçadas por algum contendor regional ou fora dela. Para tanto apoiou-se naquelas ideias, naquele conjunto de valores e princípios, eventualmente adaptados às suas necessidades específicas e às circunstâncias que presidiram a cada tomada de decisão em relação ao desafio em causa. Os desafios estiveram geralmente ligados à definição dos limites do “corpo da pátria” – sempre pelas negociações, desde a independência –, ao equilíbrio de poderes e à liberdade de acesso nas fronteiras platinas, às relações com as grandes potências europeias e, depois, com o grande poder hemisférico, à abertura de mercados para os seus produtos e o acesso às fontes de financiamento para seu desenvolvimento, à participação, em bases equitativas, nas grandes definições relativas à ordem mundial, sua manutenção e funcionamento em bases adequadas à cooperação multilateral.

As ideias e as ações foram as de seus líderes políticos, seus dirigentes estatais, seu corpo de profissionais da diplomacia, seus intelectuais e os membros da elite, de forma geral. Essas ideias e essas ações não existem, portanto, em abstrato, mas sim conectadas a pessoas que a elas aderem e que as fazem movimentar-se, em função de seu próprio substrato intelectual, de seu envolvimento com os assuntos públicos, de sua iniciativa e mobilização numa causa que ultrapassa a dimensão específica das vidas privadas e das atividades profissionais: as pessoas passam a encarnar os interesses do Estado. Os juristas a serviço do Itamaraty foram justamente alguns desses pensadores e agentes de uma diplomacia reconhecidamente competente e absolutamente sintonizada com a agenda internacional e preparada para enfrentar os desafios nela colocados.

 

A violação da tradição brasileira em direito internacional sob o governo Bolsonaro

A despeito dessa brilhante tradição jurídica acumulada ao longo do tempo, uma das maiores rupturas dos valores e princípios da diplomacia brasileira veio a ocorrer justamente no terreno do Direito, cuja responsabilidade incumbe única e exclusivamente aos amadores ineptos que passaram a guiar a política externa, e por conseguinte a diplomacia, de janeiro de 2019 até março de 2021. A rigor, os descompassos, inconsequências, desrespeito e atentados àquela tradição tiveram início ainda antes, tanto na fase da campanha presidencial de 2018, quanto imediatamente após a vitória do candidato em outubro desse ano, com os anúncios das novas orientações que seriam impostas às relações exteriores do Brasil.

(...)

[Falta completar...]


[1] Ver GARCIA, E. V. (1996). Aspectos da vertente internacional do pensamento político de Rui Barbosa. Textos de História, revista do programa de pós-graduação em História da UnB, vo. 4, n. 1, p. 103-124, cf. p. 122.

[2] Cf. CASTRO, F. M. O., História da Organização do Ministério das Relações Exteriores. Brasília: Editora da UnB, 1983, p. 105.

[3] BARBOSA, Rui, Os Conceitos Modernos do Direito Internacional. Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Babosa, 1983.

[4] Ver Cachapuz de Medeiros, Antonio Paulo (org.), Pareceres dos Consultores Jurídicos do Itamaraty, vol. III (1935-1945). Edição Fac-similar [à edição de 1961 da Imprensa Nacional]; Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2000, p. 218.

[5] Cachapuz de Medeiros, op. cit., p. 590.

[6] Os Arquivos Diplomáticos da Independência foram publicados pela Imprensa Nacional, em seis volumes, entre 1922 e 1925; eles foram novamente publicados pelo Itamaraty em 1972, quando do sesquicentenário da independência, tendo sido, recentemente, objeto de republicação fac-similar da primeira edição, pela Funag, na coleção do Bicentenário da Independência.

[7] Ver AMEIDA, P. R. “A construção do direito internacional do Brasil a partir dos pareceres dos consultores jurídicos do Itamaraty: do Império à República”, Cadernos de Política Exterior, ano II, n. 4, 2016, p. 241-298.



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