Imagino que, diante de tanta falação, muita gente já saiba que o teto ruiu. Falo do Teto de Gastos, regra fiscal sob forma de Emenda Constitucional aprovada em 2016, primeiro ano do governo de Michel Temer. Mas, entre saber do desmoronamento e entendê-lo propriamente existe uma distância considerável. Das conversas virtuais que tenho em minhas redes -- no canal do youtube, por exemplo -- sei que várias pessoas compreendem que tendo sido modificado várias vezes, o teto nada vale como regra fiscal crível. Contudo, temo que muitos não entendam o que levou a essa situação. Portanto, vamos a essa explicação.
Devo esclarecer que esse breve texto é uma espécie de leitura para acompanhar esse vídeo, no qual tratei da questão mais detidamente.
O teto criado em 2016 é, na verdade, uma regra muito simples, simplória até, com desdobramentos bastante complexos. A regra estabelece que as despesas primárias, isto é, todas as despesas menos aquelas destinadas ao pagamento de juros e amortização da dívida pública, não possam crescer mais do que a inflação do ano anterior. A expressão "todas as despesas primárias" abrange tudo o que se possa imaginar, inclusive qualquer dispêndio relacionado ao investimento. Por exemplo, a manutenção de equipamentos de um hospital público, digamos, de um aparelho de tomografia, é tratada como investimento por ser uma despesa de capital. Logo, sob o teto estão todos os gastos possíveis e imagináveis com máquinas e equipamentos que pertencem ao governo.
Como a variação dos gastos é única e exclusivamente ditada pela inflação do ano anterior, não tendo qualquer relação com a evolução da receita do governo ou com a variação do PIB, na data de sua criação ficou estabelecido que os gastos seriam reduzidos ao longo do tempo. Por que? Porque como nós temos um regime de metas de inflação e, portanto, o Banco Central deve atuar para fazer com que a inflação convirja para essa meta ao longo do tempo, o limite máximo para o crescimento dos gastos estando a inflação próxima da meta é a própria meta de inflação. Cumprida a meta de inflação, o teto de gastos desenhado dessa forma se transforma em regra de contingenciamento. Como?
Vejam: suponhamos que no primeiro ano a inflação tenha sido de 10%. Isso signfica que no ano seguinte, o ano 2, os gastos poderão crescer 10%, o que é bastante razoável. Caso no ano 2 a inflação tenha sido de 6%, ainda há 6% de espaço para o aumento de gastos no ano 3. A coisa começa a ficar feia no ano 4 caso a inflação do ano 3 seja de apenas 3%. Agora, no ano 4, os gastos só poderão aumentar 3%, o que começa a estrangular várias despesas, inclusive aquelas com a manutenção de máquinas e equipamentos. Lembram do aparelho de tomografia? Pois é, ele não passará por manutenção, aumentando o risco de que deixe de funcionar e atender pacientes no SUS.
Ao longo do tempo, o nosso teto de gastos se transmutou numa regra de contingenciamento. Como tal, passou a ser uma prensa implacável sobre o sistema de saúde, sobre a educação, sobre a assistência social. Os que mais sofreram, evidentemente, foram os mais pobres. Há, entretanto, um outro lado do teto. Ao se tornar uma regra de contingenciamento, ele limitou de forma extrema o espaço de atuação do governo. Sobraram duas alternativas: mudar a regra, ou entregar o orçamento público ao Congresso sob a forma da negociação de PECs sucessivas. Bolsonaro e Paulo Guedes preferiram o segundo caminho em vez de enfrentar a ira da turma "meu teto, minha vida". Foi assim que a formulação do orçamento público foi entregue ao Congresso Nacional, uma entrega de poder dissonante daquilo que deve ser o exercício orçamentário.
Agora que o teto ruiu, deve o governo eleito tratar de recuperar o poder de formular o orçamento. Como? Não é tarefa fácil, mas por certo não será pela via simples e errada da determinação de gastos extra-teto enquanto o cadáver continua pendurado na Constituição.
O caminho está descrito aqui.