O acadêmico e o militante
Resenha (parcial) do livro de Paulo Roberto de Almeida:
Apogeu e Demolição da Política Externa. Itinerários da Diplomacia Brasileira
Curitiba: Editora Appris, 2021.
Embaixador Sérgio Florêncio (12/06/2022)
O livro de Paulo Roberto de Almeida (PRA) é um percurso rico de dados e de reflexão sobre os territórios vizinhos da política externa e da diplomacia brasileira. É o denso depoimento de um diplomata de carreira que combina duas vocações raramente conciliáveis – o acadêmico e o militante. Geralmente situadas em terrenos opostos, quando as duas vocações se encontram, podem render bons frutos. É o caso de “Apogeu e Demolição da Política Externa. Itinerários da Diplomacia Brasileira”.
A primeira explicação para esse difícil, mas frutífero encontro entre os dois personagens - o acadêmico e o militante - reside, no caso de PRA, no confronto entre uma formação intelectual sólida e diversificada – sociologia, relações internacionais, economia, história - e uma indomável natureza contestatária.
Outra explicação resulta da trajetória profissional do autor, com experiência em postos de relevância política, como Washington, e de peso econômico, como Genebra e ALADI. Seu trabalho com dois embaixadores de reconhecido valor – Rubens Barbosa e Rubens Ricúpero – certamente também teve influência positiva. Ao mesmo tempo que ambos reconheciam o conhecimento e a erudição acadêmica de PRA, tiveram generosidade suficiente para respeitar sua natureza indômita de polemista, numa instituição pautada pela disciplina e pela hierarquia.
Mas o reconhecimento do valor de PRA, por parte de colegas e amigos, não impediu que fosse vítima de injustiça. Suas contundentes críticas aos desvios e excessos da diplomacia da era Lula-Dilma lhe valeram longo ostracismo que estacionou sua carreira por uma década e meia. Somente na gestão do Chanceler Aloysio Nunes, no governo Temer, o valor de PRA foi resgatado. Então, como Diretor do Instituto de Pesquisa em Relações Internacionais – IPRI, teve desempenho exemplar e altamente dinâmico. Foram frequentes os seminários no Instituto, sempre com a participação de prestigiosos acadêmicos brasileiros, norte-americanos e europeus. Era o homem certo no lugar certo.
Mas o iluminismo foi efêmero. Bolsonaro assumiu a Presidência da República e logo inaugurou a barbárie numa instituição de reconhecida excelência. Com o auxílio do chanceler Ernesto Araújo, passou a vigorar a inédita diplomacia do delírio, da submissão, do orgulho de ser pária internacional, como por ele próprio declarado em formatura de alunos do Instituto Rio Branco. O destino estava traçado. PRA foi afastado do IPRI e por um motivo tão ridículo que merece ser lembrado – autorizou a publicação, nos Cadernos de Política Exterior da FUNAG, de entrevistas de FHC, de Rubens Ricúpero e do próprio chanceler.
Recordo aqui essas adversidades da trajetória profissional porque PRA soube sublimá-las de forma original e criativa. Recolheu-se à Biblioteca do Bolo de Noiva, onde escreveu vários livros, produziu artigos contundentes, mas fundamentados, contra a atual política externa. O acadêmico abraçava o militante.
A contribuição da historiografia para entender o pensamento diplomático
O livro tem grande utilidade para o momento atual do Brasil. PRA relata e analisa a “grande marcha” da diplomacia e da política externa, com foco mais detido nas últimas décadas e na passagem do Apogeu (1990-2010) para a Demolição (2019 até hoje). Atenção maior é dada à transição de uma diplomacia profissional, prestigiada no mundo pela credibilidade (período FHC) e pela projeção (era Lula), para uma diplomacia personalista, inimiga do interesse nacional: Presidente e Chanceler determinam aquilo que precisa ser “destruído”, de forma a adequar o sólido patrimônio do passado aos ditames de um governo de extrema direita, isolado no mundo e orgulhoso de ser pária internacional.
Apesar de ter o foco voltado para as últimas décadas, o livro começa pela historiografia das relações internacionais do Brasil. Assim, cobre terrenos que ajudam o leitor a melhor visualizar a transição do Apogeu para a Demolição, tanto no plano substantivo (política externa), como no plano operacional-institucional (diplomacia).
Nesse início do livro, o leitor fica familiarizado com a contribuição para a política externa de conhecidos historiadores, como Francisco Varhagen, Oliveira Lima, João Ribeiro e Pandiá Calógeras. Ao mesmo tempo, são relembrados os grandes livros de síntese da história das relações internacionais do Brasil: Hélio Vianna, Delgado de Carvalho, José Honório Rodrigues, Amado Cervo, Clodoaldo Bueno e Rubens Ricúpero.
O acadêmico não deixa de registrar o valor do pai da historiografia, Varnhagen, mas o militante não perde a oportunidade de, citando José Honório Rodrigues, revelar a sombra desse pai – “extremamente parcial, adulador dos mais poderosos”.
Em Oliveira Lima – o maior dos historiadores diplomatas – destaca duas avaliações centrais sobre a política externa do Império: (i) “A Grã-Bretanha nunca exerceu sobre o Brasil a espécie de protetorado que, sob o disfarce de aliança, há um século exerce sobre Portugal”; e (ii) Ao analisar as questões do Prata, reconheceu que “a política de intervenção nunca aproveitou ao Brasil”. Acrescenta ainda que essa política, desde a Cisplatina, foi antagonizada pelos argentinos. “A guerra do Paraguai foi uma consequência da política brasileira, de intervenção, combinada com o exclusivismo ofensivo do segundo Lopez”. Sobre Mauá, “talhado para ser o agente de nosso imperialismo” ressalta a política de “franca intervenção” e especula que “a política do patacão teria porventura evitado a chacina”.
Pandiá Calógeras, Ministro da Agricultura, Fazenda e o primeiro civil Ministro da Guerra, considerava a política externa como “um prolongamento da política interna, da mesma forma que Clausewitz considerava a guerra como a política que se desdobra nos campos de batalha”, o que lhe valeu o epíteto, atribuído por Tristão de Athaíde, de “o Clausewitz da história diplomática”.
Dentre os manuais didáticos de história diplomática, PRA lembra a contribuição de Amado Cervo e Clodoaldo Bueno, que desenvolvem os conceitos de “alinhamento” e de “nacional desenvolvimentismo”. Mas os destaques maiores se dirigem a José Honório Rodrigues e a Rubens Ricupero. Para o primeiro, as premissas básicas de nossa política externa, desde a época colonial, sempre foram a acumulação de poder e a manutenção do status quo. Sustenta ainda que “toda política externa é uma expressão do poder nacional, em confronto antagônico ou amistoso, com os demais poderes nacionais”.
“A Diplomacia na Construção do Brasil”, livro seminal de Rubens Ricúpero, tem como motivação principal mostrar como a política externa era um fio inseparável da trama da história nacional. Para Ricúpero, nossa bibliografia os quase não falavam de política externa. Já as histórias diplomáticas continham o erro oposto: só tratavam de diplomacias, sem mencionar a política interna e a economia. Sobre isso, PRA escreve. “Ao produzir, portanto, sua versão da história da política externa, ele procurou mostrar como a diplomacia ajudou a dar forma à história e à identidade do Brasil”. Nessa linha, a diplomacia marcou profundamente cada uma das etapas definidoras de nossa história: abertura dos portos; independência; fim do tráfico de escravos; inserção no mundo (comércio, migrações, consolidação da unidade nacional – ameaçada pela instabilidade na região platina) ; modernização; industrialização; e desenvolvimento econômico. Essas marcas profundas na nossa história refletem a grande orientação “vocacional” da diplomacia brasileira: o trabalho de consolidação da independência e o reforço do processo de desenvolvimento econômico.
As relações internacionais em perspectiva
(i) A herança portuguesa: maldita na economia, bendita na diplomacia
O Estado brasileiro surgiu com a grave questão do reconhecimento do novo país, particularmente por parte da Grã-Bretanha, com a qual tínhamos pesados compromissos: o tratado de comércio de 1810; os empréstimos contraídos pela Coroa e assumidos pelo Brasil; e o problema do tráfico, o irritante nas relações, agravado pela prepotência britânica. A outra vertente de preocupação para a diplomacia imperial era o sempre precário equilíbrio no Prata. Era necessário sobretudo garantir a independência de Uruguai e Paraguai, ameaçados pelas pretensões argentinas de reconstruir o Vice-Reinado do Prata. A intervenção brasileira no Uruguai irritou Solano López e culminou na tragédia humana da Guerra do Paraguai, e no caos financeiro de sucessivos empréstimos externos.
A República nasce simpática aos EUA, entoando o refrão do Partido Republicano “Somos da América e queremos ser americanos”. (P.78) Mas a política externa ficou marcada pela falta de rumos, visível na sucessão de onze chanceleres em dez anos. Essa instabilidade da Velha República só foi estancada pelo Barão do Rio Branco, Chanceler durante dez anos, a quem coube a transição da velha hegemonia imperial britânica para a crescente ascendência da nova potência norte-americana.
PRA conclui a breve referência ao Barão com interessante comparação com Oswaldo Aranha, que conseguiu “preservar tanto a autonomia do Brasil quanto alianças estratégicas ... numa conjuntura em que muitos apostavam na ascensão das potências fascistas”. (P.80)
(ii) Vargas e o segundo maior chanceler da história. JK sem Plano Marshall. O saudosismo inerente à PEI.
A referência de PRA à era Vargas também começa com um justo tributo a seu grande chanceler. “Sem a ação de Aranha talvez jamais tivesse acontecido a revolução de outubro de 1930 ... e talvez o Brasil tivesse ficado na incômoda posição dos argentinos, que se mantiveram neutros - na verdade simpáticos aos nazifascistas – até quase o final da guerra.” (p. 80). Os tributos prestados por PRA ao Chanceler contrastam com sua visão ácida a respeito do presidente, “Getúlio Vargas, como se sabe, era basicamente um hesitante, ainda que com várias qualidades maquiavélicas ... para preservar-se no poder durante breves 15 anos, como ele mesmo mencionou”. (p. 80)
Ao avaliar a República de 1946, PRA cita Hélio Jaguaribe, para quem praticávamos então uma política externa tradicional, por ele chamada de “ornamental “e que outros apelidavam de “punhos de renda”. “De fato, antes que os militares entrassem com seus punhos de aço ... os bacharéis da diplomacia brasileira conduziram ... um alinhamento ao Ocidente durante a Guerra Fria, com alguns momentos de aparente modernização.” (p. 81).
Nesse período, que coincide com a criação da OEA, na Conferência de Interamericana de Bogotá, em 1948, com a ascensão da CEPAL, com a Operação Pan-Americana de JK, a grande aspiração do Brasil era “que os Estados Unidos financiassem uma espécie de Plano Marshall para a América Latina”. (p.81) Na análise desse momento relevante de nossa história, PRA contrasta com muitos historiadores que lamentam e criticam a falta de visão e de solidariedade dos EUA em relação à América Latina e ao Brasil, ao negar vultosos recursos para o desenvolvimento da região.
Em lugar dessa visão mais convencional de um antiamericanismo, o livro focaliza a ausência de reformas essenciais para habilitar a região a fazer uso produtivo de eventual ajuda externa. “Os EUA sempre responderam - aliás pela boca do próprio Marshall, em Bogotá - que os países latino-americanos deveriam reformar e modernizar suas estruturas econômicas, abrir-se ao comércio e aos investimentos estrangeiros, e apoiar- se bem mais nos capitais privados do que em grandes projetos governamentais, se desejassem manter ritmos de crescimento sustentável, ademais de melhorar a educação, a distribuição de renda e de terras.” (p. 81)
Essa manifestação do credo liberal de PRA fica clara ao enfatizar que o país “deu seu primeiro passo no sentido de avançar na industrialização plena nessa época”. “O Brasil, em todo caso, soube fazer algumas escolhas estratégicas, como foi a industrialização impulsionada pelos capitais estrangeiros da era JK, que os nacionalistas da época depreciavam como sendo entreguista e submissa ao imperialismo.” (81)
Ao analisar esse período de nossa história que vai de Vargas a 1964, PRA explicita sua visão de mundo liberal. Podemos ver isso com mais clareza ao contrastar o perfil que ele traça de dois personagens -chave de nossa história. Um Vargas – “como se sabe, era basicamente um hesitante” - e um Juscelino, arquiteto do “primeiro passo (do Brasil) no sentido de avançar na industrialização plena “. (p. 81). Assim, na visão liberal de PRA, o “primeiro passo” não consistiu na substituição de importações operada por Getúlio com seu keynesianismo anterior a Keynes CSN, mas sim com o take off de JK, com os capitais privados da indústria automobilística e outras.
Estamos visualizando o PRA militante liberal. Esse perfil se consolida, no plano da diplomacia, em sua avaliação bastante cética da “política externa independente”, iniciada com Jânio Quadros e Afonso Arinos, continuada com Jango e Santiago Dantas, que “converteu-se numa espécie de mito histórico, tendo sido magnificada muito além das realizações efetivas; ela aparece, retrospectivamente, como tendo sido excepcional, devido, em certa medida, à radical reversão de orientações na primeira fase do regime militar. “As a avaliações acadêmicas sobre a PEI, assim como as dos próprios diplomatas, estão talvez ainda impregnadas de certo viés saudosista e de algum sentimento de perda”. (p. 82)
(III) Regime militar. Retrocesso na política doméstica. Avanço na economia, mas amplo estatismo. Política externa livre de interferências: o soldado valoriza o diplomata
PRA avalia COM realismo e equilíbrio o regime militar, que reconhece como “período feito de grandes traumas políticos, é verdade, mas também de grandes avanços econômicos, ainda que marcados pelo grande centralismo estatal e uma política de enorme aquecimento da máquina econômica, o que parece ter ecos ainda hoje”. (p. 82)
Passado o triste, mas breve, interregno do alinhamento automático, com nossas tropas presentes na intervenção na República Dominicana, PRA assinala corretamente o padrão desenvolvimentista e terceiro-mundista da política externa do regime militar, em linha com teses reformistas da ordem internacional: tratamento especial e diferenciado para os países em desenvolvimento (PED’s), princípio da não-reciprocidade no comércio internacional e maior acesso a mercados, por parte das economias em processo de industrialização.
Entretanto, essas virtudes precisam ser matizadas. “Os problemas da nova postura não estavam aí, contudo, e sim na tentativa de capacitação nuclear plena, inclusive para fins não declarados” (p. 83) e o rol de constrangimentos: salvaguardas aplicadas às tecnologias duais e sensíveis, conflitos potenciais com países nucleares e rivalidade com a vizinha Argentina. Os acertos na economia e na política externa tampouco escondem o abominável envolvimento do regime no “sangrento golpe militar” no Chile, contra o Presidente Salvador Allende e em outras operações clandestinas no Uruguai e na Argentina.
A avaliação do período me parece muito correta tanto no plano da substância (política externa), como na esfera institucional (diplomacia). “Pode parecer estranho, mas foi um dos períodos em que os diplomatas se sentiram mais “livres”... a corporação dos militares respeitava muito a casta dos diplomatas e lhe concedeu, salvo em poucas áreas consideradas de segurança nacional, ampla autonomia política e operacional”. (p. 84) Tendo subjacente a fórmula de Raymond Aron – soldados e diplomatas são os dois funcionários por excelência do Estado – PRA se refere ao “mútuo respeito que mantinham as corporações mais tradicionais do Estado brasileiro”. (p. 84) Daí deriva tanto o diagnóstico de “relativa introversão do corpo diplomático”, como o refrão elogioso de diplomatas latino-americanos – “Itamaraty no improvisa”.
(iii) As múltiplas vertentes da redemocratização. Experimentalismo que levou à hiperinflação. Reformismo econômico e credibilidade externa (FHC). Projeção externa matizada pelo partidarismo (Lula). O declínio da diplomacia (Dilma) e sua volta ao leito normal (Temer).
O período pós-1985, foi marcado pela Constituição de 1988, portadora de importantes conquistas sociais mas, como corretamente apontado por PRA, também com impacto negativo, “distribuindo favores a todos, numa demonstração de inconsciência econômica que corre o risco de comprometer, de maneira estrutural e sistêmica, as possibilidades de crescimento sustentado no Brasil .. . O contrato social efetuado andou na direção de distribuir renda e favores, antes de acumular produção e renda ampliada.” (p. 89). Uma das consequências foi deterioração econômica, diversos planos de estabilização fracassados até o advento do Plano Real, com FHC à frente do Ministério da Fazenda e um grupo de economistas da PUC do Rio, com formação liberal. “Não parece existir, na história econômica mundial, algum outro país que tenha tido cinco ou seis instrumentos monetários sucessivos, num turbilhão de inflação e de mudança de regras. (p.89).
O livro contribui para fazer justiça às transformações na política externa introduzidas em 1990. “O governo Collor tinha a pretensão de deslocar o país ... do grupo dos países em desenvolvimento para o clube da OCDE ... Collor operou, portanto, a primeira viragem decisiva na política nuclear brasileira, ao terminar com as loucuras militares, ao aceitar a ratificação plena do Tratado de Tlatelolco e ao dar prosseguimento à construção de confiança com a Argentina nessa área.” (p. 91)
No âmbito regional, transformou o processo de integração com a Argentina, iniciado em meados dos anos 1980. Mais de uma dezena de protocolos setoriais, visando à complementação produtiva e à abertura apenas recíproca, foram alterados. Com base na Ata de Buenos Aires, de julho de 1990, os protocolos foram substituídos por um mecanismo automático, irrecorrível e universal de reduções tarifárias, destinadas a construir o livre comércio com a Argentina. “Nascia aí, verdadeiramente, o Mercosul, que só veio a ser quadrilateralizado um ano depois, mas sob os mesmos dispositivos de abertura econômica e liberalização comercial que tinham sido concertados entre os governos Collor e Menem.” (p. 92)
A curta transição, operada por Itamar Franco, teve a virtude de dar carta branca a FHC para formular e implementar o Plano Cruzado, em julho de 1994 - a chave da exitosa estabilização de um país com inflação crônica e galopante. “O Brasil passou de uma inflação anual de três dígitos para a casa do milhar e já tendo conhecido seis trocas de moedas no espaço de uma geração”. (p. 94)
Com a casa em ordem, FHC deu continuidade à abertura moderada no plano regional e global, abandonou o conceito difuso de América Latina para o espaço geográfico mais concreto da América do Sul. Além do reformismo econômico doméstico, avançou no diálogo com s instituições de Bretton Woods, o que foi providencial para o país enfrentar a sequência de turbulências financeiras internacionais : moratória mexicana de 1994; crise asiática de 1997; crise russa de 1998; e a própria crise brasileira do ano seguinte. Avançou também na “inserção do país nos foros mais sensíveis da agenda mundial de segurança – nos terrenos nuclear, espacial e de exportações de equipamentos de uso dual”. (p. 94)
O perfil acadêmico de PRA e sua natureza de contestador se combinam para, ao final da avaliação do governo FHC, fazer referências que, por um lado, são coerentes com a pesquisa acadêmica e, por outro, espelham sua militância liberal. Os trechos a seguir refletem essa dupla vocação. “Deve ser registrado, porque se trata de fato histórico importante para a trajetória ulterior do Plano Real, que o Partido dos Trabalhadores se opôs frontalmente à sua implementação, em qualquer de suas etapas, tentando inclusive embargar a Lei de Responsabilidade fiscal em processo movido junto ao STF. ... Felizmente, a primeira administração do PT soube preservar os elementos mais relevantes do Plano Real, ainda que nas administrações posteriores determinados aspectos (metas de inflação, superavit primário e flutuação cambial) tenham conhecido sensível deterioração, tal como confirmado pelos principais indicadores econômicos.”
Alguns livros e muitos artigos de PRA se dedicam à análise da atuação externa do período Lula-Dilma, por ele caracterizado como a diplomacia do “nunca antes”. “Diversas dentre as iniciativas exibidas posteriormente pelos governos do PT como feitos “inéditos” na política externa a partir de 2003 ... tinham sido de fato iniciadas sob os dois mandatos de FHC. ... O governo FHC se beneficiou apenas parcialmente do crescimento meteórico da China ... Bafejado pela procura chinesa, este último (Lula), pouco fez para estimular a competitividade brasileira, anteriormente beneficiada pelas medidas de abertura adotadas pelos governos FHC.” (p. 95)
Nessa linha, PRA refere a uma interpretação de Rubens Ricúpero, segundo o qual Lula conduziu uma política externa de roupagem gaullista, ou seja, moldada na figura do General De Gaulle. (p. 96). Segundo PRA, diversos colegas diplomatas confirmam que “o Itamaraty foi colocado a serviço pessoal do chefe de Estado, de suas muitas viagens e de sua desenvoltura nos contatos com vários líderes internacionais.” (p. 96)
Em contraste com a divulgação ampla dos êxitos da diplomacia da era Lula, PRA focaliza episódios que resultaram em prejuízos ao país. O primeiro foi a passividade diante da expropriação dos ativos da Petrobrás, no âmbito da nacionalização dos hidrocarburos na Bolívia, então sob Evo Morales. O segundo foi a ruptura com o princípio da não intervenção em assuntos internos de outros países, evidenciada no apoio ostensivo do governo brasileiro a candidatos presidenciais no Peru e na Bolívia. Outro episódio foi a iniciativa turco-brasileira destinada a encontrar uma solução para o complexo nuclear iraniano, que resultou em derrota contundente dos dois países em votação no CSNU.
Fonte adicional de prejuízo para o país foi a ausência do Brasil nas dezenas de acordos de livre comércio negociados nas primeiras décadas deste século. A hipertrofia da diplomacia presidencial também mereceu críticas, sobretudo pelo fato de algumas visitas do Presidente terem sido improvisadas, com falta de estudos e avaliações de diplomatas sobre os assuntos bilaterais ou multilaterais. PRA se refere de forma crítica e um tanto irônica, por exemplo, à proliferação, por iniciativa e sob os auspícios do Brasil, de reuniões de cúpula de Chefes de Estado da América do Sul e Caribe, dos países árabes e de nações africanas. “Nunca anates na história da região se fizeram tantas reuniões de cúpula, nunca antes os presidentes foram tão amigos entre si. Não se pode dizer, todavia, que a causa da integração tenha avançado satisfatoriamente, mesmo com toda a retórica a seu favor.” (p. 99)
Ao referir-se aos três grandes objetivos da diplomacia lulista – cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas; reforço e expansão do Mercosul; e conclusão exitosa das negociações multilaterais da Rodada Doha – PRA conclui que “nenhum deles foi conquistado, sequer arranhado.” (p. 98)
A avaliação das diretrizes econômicas e da diplomacia de Dilma Rousseff é igualmente muito negativa, “pela mediocridade de sua política econômica e pela total inexpressividade de sua política externa”. (p. 100) Os fracassos: o diagnóstico de PRA a respeito do impeachment da Presidente é no sentido de que “a natureza da crise foi basicamente fiscal”: aceleração inflacionária acima das metas de inflação; alguma desvalorização cambial. As causas formais do impeachment incluem a manipulação do orçamento, o financiamento irregular de déficits setoriais, a utilização ilegal dos bancos públicos, e o descumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal. Tais irregularidades, somadas aos desentendimentos com líderes partidários e ao clamor das ruas, desembocaram no afastamento da Presidente.
Os revezes da diplomacia de Dilma em muito superaram os escassos êxitos: “a suspensão irregular do Paraguai do Mercosul, o ingresso ilegal da Venezuela no bloco, e a demissão do primeiro chanceler por causa de uma crise com a Bolívia”, provocada pelo asilo de senador boliviano por mais de 400 dias na Embaixada do Brasil em La Paz, e de sua retirada clandestina da Bolívia, com ajuda de nosso Encarregado de Negócios. (p. 101)
Os dois chanceleres do governo Temer, José Serra e Aloysio Nunes, ao reduzirem a interferência partidária na política externa, foram objeto de uma campanha, no Brasil e no exterior, de uma campanha que denunciava o “golpe” do impeachment. Nas palavras de PRA, aqueles chanceleres conduziram “uma bem-sucedida reversão a padrões mais tradicionais de condução diplomática e de orientação em política externa”. (p. 103)
O livro de PRA, além da síntese de nossa historiografia, e da visão em perspectiva de nossas relações internacionais, examina, nos capítulos subsequentes, dois aspectos fundamentais de nossa ação externa: o processo decisório e as diplomacias presidenciais.
(iv) Política externa e diplomacia do governo Bolsonaro. O império da barbárie.
A avaliação abrangente e altamente crítica de PRA a respeito da política externa e da diplomacia do governo Bolsonaro perpassa os diversos capítulos do livro. As duas vocações que se revelam nos trabalhos de PRA e indicados no início desta resenha - o acadêmico e o militante – aparecem, a partir de agora, com grande nitidez. Vejamos como se desdobra a análise crítica de PRA a respeito da ação externa do atual governo.
(continua...)