Por Daniel Afonso da Silva, pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (Nupri) da USP
Jornal da USP: 10/11/2023
https://jornal.usp.br/artigos/tempos-estranhos-construidos-entre-nos/
Virou criminoso ter ideias, tomar partidos, expressá-los. Ficou démodé tratar assuntos sérios, complexos e dinâmicos com a gravidade e o zelo que merecem. Está, como nunca, perigoso afirmar ponderações, convicções, avaliações. A sociedade brasileira – como todas as demais ocidentais e extremo-ocidentais – passou de sólida a líquida; e de líquida a mole. Sendo mole, perdeu a fluidez. Sem fluir, entrou em transe. Nesse transe, estancou a transição de melhoramentos. Sem melhorar, regrediu. Ao regredir, desesperou-se. Acelerou na curva e avançou em marcha à ré. Iniciou namoro desavergonhado com a obscuridade e com a desrazão. Questionando a civilização, reprimindo a civilidade, naturalizando o descontrole de pulsões. Quanta desonra. Sim: descivilização.
O incidente do 7 de outubro de 2023 no Oriente Médio mobilizou a atenção do mundo inteiro – o Brasil incluso. A brutalização das relações entre judeus e islamitas ganhou intensidade poucas vezes anotada. Centenas de pessoas foram assassinadas em instantes e outras tantas foram sequestradas a cativeiros sabe-se lá de qual salubridade. Como tudo hoje contém imediatidade, as imagens, os sons e os clamores médio-orientais inundaram rápido retinas e sentidos em todo o planeta. A indiferença virou instantaneamente impossível. Sucumbir a ela se firmou como sinônimo de covardia, desumanidade, indecência.
Autoridades israelitas se apressaram em classificar as atrocidades como o seu 11 de setembro em menção aos incidentes terroristas que abriram o novo século revelando a impotência da potência norte-americana em seu próprio território. A gravidade do simbolismo dessa comparação dispensa observações. Entusiastas da causa dos palestinos não titubearam em aplaudir a audácia dos ismaelitas radicais que na senda de Osama bin Laden continuam querendo islamizar o mundo inteiro. O impacto moral dessa louvação também dispensa análise demorada. Ausência de meio-termo. Pura e simplesmente isso. Uma ausência de meio-termo que inebriou qualquer ponderação. Avec Dieu, on ne discute pas! [Com Deus, não se discute], lembrou um politólogo argelino.
O extremismo da situação ostracizou as penúrias eslavas e as misérias africanas. O presidente ucraniano segue desesperado sem saber o que fazer. O clamor de Kiev, Kinshasa, Abuja, Bamako, Bangui foi retirado inteiramente dos focos de atenção. A guerra dos mundos saiu do itinerário de Washington, Paris, Londres, Berlim, Bruxelas, Moscou e Pequim para se imiscuir nas batalhas milenares intermináveis dos herdeiros abraâmicos em seus destinos médio-orientais.
Com Deus, por certo, não se discute. Mas as pessoas, de lado a lado, estão morrendo. E não somente islamitas e judeus. Mas também católicos, protestantes, agnósticos, hinduístas, animistas e toda a infinita variedade de abstêmios de fé. Que fazer?
Um alto funcionário do Estado de Israel classificou os palestinos – e não simplesmente os elementos do Hamas que tocaram o terror em Israel – de “animais” antes de endossar a supressão do fornecimento de gás, alimentos e medicamentos aos moradores de Gaza. Lideranças do Hamas em Doha, Teerã e Beirute prometeram reunir forças para, desta vez, eliminar até o último de seus oponentes infiéis.
Quanto ressentimento, quanto ódio, quanta dor.
Onde falta pão, vaticina o provérbio, todos brigam e ninguém tem razão. Todos ali, no Oriente Médio, islamitas, judeus ou não, desejam um simples seu lugar ao sol. Mas a Providência parece não cooperar. Tem mil e quinhentos anos que esse tormento dura. E vai seguir assim. E, por frigir assim, tudo exige imensa cautela, parcimônia, decência, honradez, civilidade e retidão. Não se deve, pois, jogar nem brincar com o sofrimento dos outros como informa um outro adágio conhecido e de valor.
No entanto, a professora Francirosy Campos Barbosa, em seu artigo Cantando al sol como la cigarra: enquanto o terror, publicado neste espaço, no dia 23 de outubro de 2023, evidenciou que por aqui, pelo Brasil, brasileiros não se cansam de jogar e brincar com o sofrimento alheio. E, pior, parecem, inclusive, gostar.
Pelo que ela reportou no artigo, após colaborar com órgãos de imprensa para o esclarecimento de aspectos da tormenta no Oriente Médio, ela começou “a receber inúmeros ataques, por e-mail e pelo Instagram”. E, diante do temor, obrigou-se a revelar aqui, no Jornal da USP: “Temo pela minha segurança e integridade física”.
Três dias depois, no 26 de outubro de 2023, a Comissão Arns, presidida pelo eminente advogado José Carlos Dias e pela digníssima Professora Emérita da USP Maria Victoria Benevides, enviou um ofício ao magnífico reitor da Universidade de São Paulo solicitando a “Defesa e proteção de docentes ameaçados pela manifestação sobre o conflito Israel e Hamas”.
Dispensa-se o cotejamento pessoal para se ter a convicção de que a professora Francirosy – com quem tenho a honra e o privilégio de figurar côte à côte neste espaço – expressa as qualidades de uma pessoa simpática, sensível, correta, inteligente e intelectualmente honesta. Basta que se leia o que ela escreve por aqui e alhures.
Ninguém, como se sabe, toca fundo no imaginário nem na alma de outro alguém – mesmo em divergência – sem praticar a nobreza desses predicados supramencionados. Ninguém desprovido desses predicados consegue adentrar em assuntos tão moralmente complexos, como esses da nova fase das agonias médio-orientais, de modo parcimonioso e tranquilo como a professora Francirosy aqui, ali e em toda parte o faz.
Constrange, porquanto, simular J’accuse sem ser Zola nem ter a ilusão de querer sê-lo. A professora Francirosy possui gente mais consistente para protegê-la. Mas, de toda sorte, constrange muito mais lembrar que a liberdade de expressão segue em vigor como um valor no âmbito da legislação brasileira e no interior de todas as convenções sobre garantias civilizacionais em todo o planeta. Constrange, assim, rememorar que gente civilizada conversa, persuade-se, reconhece-se, harmoniza tensões e elimina aporias. Mesmo com o silêncio. Muita vez com a ausência. Outras tantas somente com a retidão.
Nada disso reside exclusivamente em Hegel nem simplesmente nos iluministas obcecados pelo imperativo da razão. Um apóstolo primitivo, que renasceu no caminho de Damasco para depois morrer decapitado em fúrias romanas, já dizia “sede meus imitadores”, “amai-vos uns aos outros”. O budismo, o hinduísmo, o judaísmo, o espiritismo, todos os animismos e o islamismo comungam nessa métrica e forjaram civilizações mundo afora assentadas nessa convicção. Mas a agonia permanece, o dissenso reina e uma renovada selva selvagem transvestida de descivilização parece em toda parte se avizinhar. Infelizmente, desta vez agora, ao que tudo indica, sem Dante nem Virgílio tampouco Beatriz para algo salvar.
A professora Francirosy não ficou isolada nesse torvelinho da desrazão brasileira dos últimos dias. O professor Salem Hikmat Nasser, da Faculdade de Direto da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo, foi ainda mais hostilizado devido às suas sinceras e embasadas avaliações sobre as decorrências do 7 de outubro de 2023 em terras médio-orientais. Os seus contraditores, audazes e cruéis, permitiram-se formular uma petição pública solicitando o seu degredo. Inicialmente de seu espaço laboral, a FGV-SP. Em seguida de seu país, o Brasil. E, por fim, da face esférica deste firmamento; por assim dizer, desta vida.
Sim: em pleno século XXI, vivendo num país onde os seus paladinos se vangloriam do funcionamento das instituições, da qualidade de um regime político pretensamente democrático e da graciosidade de uma sociedade supostamente civilizada, professores são ameaçados de morte simplesmente por cumprir dimensões deontologicamente impostas pela sua função de elucidar.
Tem três anos que o professor Samuel Paty foi degolado à luz do dia na França pelo simples fato de lecionar uma das disciplinas alma mater das elucidações que segue sendo a história. Dominique Bernard, outro professor de História, foi assassinado, também sob a luz do sol, em seu ambiente de trabalho, semanas atrás, depois do 7 de outubro de 2023, pelas mesmas motivações radicais daqueles que acreditam e militam nas bases de absolutos étnico-religiosos impermeáveis à contradição, à divergência e à elucidação.
Pelo Brasil, ainda não se mata professor por isso. Ainda.
Excetuando-se matar, exemplos de agressão, hostilização, importunação, intimidação e humilhação de todo tipo viraram recorrentes no Brasil e em todas as partes do Ocidente e do extremo Ocidente. Cretinos, covardes e canalhas tornaram corriqueiro fustigar professor. E, por mais doentio que possa parecer, esses miseráveis parecem nisso orgasticamente se alegrar.
Instâncias públicas e privadas de monitoramento e controle seguem impotentes e sem nada efetivamente consistente aportar. O presidente Emmanuel Macron, na França, por Samuel Paty fez discursos, mobilizou recursos e pessoal, sinalizou campanhas e projetou ações. O assassinato de Dominique Bernard semanas atrás veio indicar, no entanto, que foi tudo – ou quase tudo – em vão.
Seguindo no velho mundo e retroagindo no tempo, vale sempre lembrar que Raymond Aron foi incontestavelmente um dos luminares do século XX. Seguramente um dos maiores intelectuais de sua época. Mas cometeu delitos gravíssimos aos olhos de seus coevos. Os seus principais desvios foram: 1) surfar a contravento; 2) recusar-se à hemiplegia de se enquadrar cega e ideologicamente à direita ou à esquerda; e 3) explicitar as suas posições, avaliações e elucidações a quem quiser e vier. Os seus contemporâneos não o perdoaram. Os seus detratores chegaram a afirmar ser melhor errar com Sartre (maoísta, esquerdista e confuso) que acertar com Aron. O ápice da contenda veio com os eventos de maio de 68. Diante daqueles espetáculos, Raymond Aron, que desceu às trincheiras da resistência ao nazismo com o general De Gaulle em 1940 para depois se afastar dele após a liberação de 1944, afirmou categoricamente ser “inadmissível e insuportável que um país sério como a França se permitisse retirar do poder o presidente-general Charles de Gaulle em favor do agitador-universitário Daniel Cohn-Bendit”. As suas razões e elucidações nesse expediente eram diversas. Mas a sua convicção profunda e inamovível remetia à memória dos ovos de serpentes que ele vira germinar na Alemanha dos anos de 1930. Ovos e serpentes que marinaram a ascensão de Hitler, do nazismo, do sem-nome, da Shoah. Em síntese, Aron acreditava no trágico. Sabia que por pouco, muito pouco, o nazismo e os demais totalitarismos deixaram de vencer. Antevia, assim, naqueles eventos de 1968, um perigo iminente. Um namoro incestuoso com o trágico. O trágico na vida e o trágico na história. Um namoro que poucos viam. E aqueles que viam fingiam não ver. Por tudo isso ver e dizer, esse gigante do século XX de nome Raymond Aron recebeu um lugar permanente no index da intelligentsia francesa até a sua morte no 17 de outubro de 1983.
Perguntar-se-ia, sutilmente, um desavisado onde estaria a liberdade de cátedra, a liberdade de expressão e a liberdade tout court.
Melhor não perguntar nem imaginar tampouco procurar. Há index em toda parte, a todos os gostos, com variada motivação.
De toda sorte, o passar dos anos foi evidenciando que as preocupações de Raymond Aron estavam recheadas de sentido e de razão. A trama por detrás do mantra do é proibido proibir impulsionou uma horizontalização da sociedade que, com o tempo, começou a retirar a bússola de todas as relações humanas não somente na França, mas em todo o Ocidente e Ocidente extremo. Avant la lettre, portanto, o sociólogo francês avistou o que hoje nos carcome: um pós-modernismo desvairado de mistura identitária e fúria woke.
Focado no Brasil, Nelson Rodrigues, um dos maiores luminares brasileiros de todos os tempos, foi dos primeiros a sentir os sinais de perigo aludidos nas preocupações do sociólogo francês. Perdida em vários lugares de sua extensa obra existe o alerta insistente ao fato de os “idiotas estarem perdendo a modéstia. [Pois] outrora silenciosos e contidos, agora – nos tempos do mestre pernambucano – esses canalhas, cretinos e covardes já maiorais, cheios de si, seguem loucos para aparecer”.
Morto no 21 de dezembro de 1980, quase três anos antes de Raymond Aron, Nelson Rodrigues foi – como Aron – privado da contemplação dos infortúnios que ele próprio percebeu e anunciou para os brasileiros. A imbecilidade dos idiotas foi pouco a pouco tomando conta da pátria Brasilis que ele tanto amou – mesmo sendo ele, Nelson Rodrigues, um simpatizante da máxima de Samuel Johnson que informa: patriotism is the last refuge of a scoundrel [o patriotismo é o último refúgio de um canalha].
Três lustros antes, no dia 2 de abril de 1964, o mineiro Tancredo de Almeida Neves classificou de “canalhas, canalhas” aqueles senhores que surrupiavam o poder para apagar as luzes da Revolução de 1930. Vinte anos depois, o deputado Ulysses Guimarães considerava que os gestos autoritários, inconsequentes e descivilizados daqueles canalhas, canalhas, fardados e sem farda, com dinheiro e sem dinheiro, seguiam vivos, abundantes e contagiando e amealhando seguidores com roupagens libertárias. E não tido por contente na recepção de sua avaliação, o marido da dona Mora Guimarães ainda vaticinou aos céticos que aguardassem, “pois os próximos [canalhas] serão ainda piores”.
Quase trinta anos depois, a gravidade dessa profecia macabra do sábio da redemocratização somada à desesperação de Nelson Rodrigues subiu à superfície da compreensão todos com os protestos das noites de junho de 2013. A partir deles, os imbecis, os canalhas, os covardes, os cretinos e os idiotas, outrora soterrados no anonimato de sua irrelevância, começaram a dominar, barbarizar e terrorizar ineditamente o espaço público brasileiro com a fluidez da internet. Umberto Eco – mais que Olavo de Carvalho – tinha razão: as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis.
Se esses imbecis devem ou não se manifestar, trata-se de uma outra discussão. Entretanto, segue fora de parlamentação se esses incontestáveis pulhas – imbecis ou não; fardados ou não; parlamentares ou não; políticos ou não; empresários ou gente do comum – devem ou não importunar, intimidar, fustigar, ameaçar, humilhar professor em geral, professor universitário em particular ou qualquer concidadão brasileiro de qualquer matiz. Não. Mil vezes não.
Quem se dedicar a meditar sobre as tensões civilizacionais por detrás de toda essa delicada discussão vai notar que instituições escolares, academias e universidades não representam que uma porção periférica, limitada e reduzida do imenso sistema universal de transmissão de conhecimentos, saberes e valores que é a educação. A educação formal – diga-se assim para se referir a instituições formais de ensino – vive sabidamente hodiernamente estágios de miséria, pilhéria e regressão no mundo inteiro. Especialmente nos espaços ocidentais e extremo-ocidentais. A razão essencial dessa queda aos infernos dessa dimensão da educação se deve ao fato de que, salvo exceções, a educação formal deixou de funcionar como elevador social. Os seus frequentadores descobriram que o seu futuro econômico, social, intelectual e cultural pode independer de um diploma de uma instituição de ensino. Como consequência, salvo melhor demonstração, os seus frequentadores que ainda não totalmente desertaram começaram a se autoimpor a incultura como missão. Ou seja, estão virando incultos obstinados. E, infelizmente, nada indica que disponham de motivação para voltar a desejar se cultivar.
O fim da história (que não aconteceu) trouxe paradoxalmente consigo o fim do gosto pelo saber como um valor em si. As consequências civilizacionais gerais disso estão aí para quem quiser ver, entender e sentir. Mas no cadinho limitado da educação formal esses efeitos parecem ser vistos sem ser notados. Desditos sem ser ditos. Sublimados sem ser contraditos. Dito de modo direto: com a desvalorização do gosto pelo saber, o professor, intermediador desse saber, virou objeto da desconstrução e do escárnio de uma civilização em acelerada putrefação.
Em contrário, perceba-se que no Brasil desde as noites brasileiras de junho de 2013 que uma verdadeira chusma de canalhas defende e difunde impune e inadvertidamente o imperativo da necessidade da desconstrução e da destruição das instituições formais de ensino no País. Especialmente daquelas públicas. Notadamente das universidades. Conseguintemente de seus profissionais. Singularmente de seus docentes.
Chegou-se ao cúmulo de se inocular no imaginário da população brasileira hors les murs que as universidades seriam simplesmente um antro de doutrinação marxista, iniciação a psicotrópicos, conivência com imoralidades, além de espaço de deformação de caráter e bons costumes.
Muitos, claro, acreditaram e acreditam.
Como consequência, a integralidade das categorias dos profissionais universitários – e muito especialmente os segmentos docentes – passou a amargar perseguições morais e funcionais, dentro e fora de seus locais de trabalho, como jamais se viu.
Sim. É isto mesmo. A descivilização na sociedade brasileira parece que chegou aonde ela deveria terminar. Foi, assim, portanto, ficando, por evidente, perigoso ser docente, ter ideias, tomar partidos, expressá-los.
Quando se lê na petição da Comissão Arns que: “Por fim, solicitamos que nos sejam informadas as medidas tomadas pela Universidade de São Paulo para a defesa do direito à livre expressão da professora Dra. Francirosy. E ficaremos agradecidos com as providências administrativas tomadas pela Reitoria para a defesa dos princípios citados e para a proteção dos docentes ameaçados”, a perplexidade generalizada fica tão imensa que chega a obliterar a dramaticidade da situação da Francirosy Campos Barbosa, do professor Salem Hikmat Nasser e de tantos outros anônimos interpelados diuturnamente pela desrazão. Inicia-se outra reflexão. Menos amena, muito profunda e sem respostas seguras. Começa-se a, singelamente, meditar sobre que sociedade é esta, que país é este, onde foi que nos permitimos tanto errar.
Tempos estranhos construídos entre nós.
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