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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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terça-feira, 1 de abril de 2025

O colonial-imperialismo de Trump, em seu formato mais grotesco e horrendo, contra a Ucrânia - Svitlana Morenets (The Spectator)

 O colonial-imperialismo de Trump, em seu formato mais grotesco e horrendo, contra a Ucrânia - PRA

Grato a Carlos Pozzobon pela postagem:

Novo acordo de minerais de Trump é tóxico para a Ucrânia

Svitlana Morenets

The Spectator


O mais recente esquema de Donald Trump para explorar a Ucrânia está ganhando força. Kiev recebeu um acordo de minerais reescrito de 58 páginas, que obriga a Ucrânia a reembolsar cada centavo da ajuda militar e humanitária dos EUA que recebeu desde a invasão da Rússia em 2022. Washington também está exigindo controle sobre metade da renda da Ucrânia de seus recursos naturais, incluindo petróleo e gás. O acordo é indefinido: a Ucrânia não pode quebrá-lo ou alterá-lo sem a aprovação dos EUA. O que a Ucrânia recebe em troca? Absolutamente nada.

Trump está pressionando para que o acordo seja assinado na próxima semana, mas mesmo que Volodymyr Zelensky seja forçado a concordar com os termos, seria muito improvável que fosse ratificado pelo parlamento ucraniano. O rascunho atual deixaria a Ucrânia devendo aos EUA pelo menos US$ 120 bilhões. Também estabeleceria um precedente perigoso, abrindo a Ucrânia à possibilidade de outros países exigirem reembolsos pela ajuda.

Pelo acordo, o governo ucraniano seria obrigado a converter metade de sua renda de seus minerais, gás, petróleo e até mesmo infraestrutura ferroviária em dólares americanos e transferi-los para o exterior. Qualquer atraso resultaria em penalidades financeiras. Os EUA instalariam um conselho de supervisão para controlar esse chamado "fundo de investimento conjunto", com a ajuda americana passada sendo sua única contribuição.

O conselho de supervisão proposto seria composto por cinco membros: três americanos e dois ucranianos, e qualquer decisão teria que ser aprovada pela maioria. Washington teria poder de veto total e poderia escolher se reinvestiria ou não os lucros na Ucrânia a seu critério. Os EUA também receberiam royalties anuais com um prêmio de 4% antes que a Ucrânia recebesse qualquer coisa.

Washington também ganharia direitos de preferência para todos os investimentos futuros em recursos naturais e infraestrutura da Ucrânia. Somente se os investidores dos EUA recusassem uma proposta a Ucrânia poderia oferecer o acordo a outros. No entanto, mesmo assim, Kiev seria forçada a compartilhar detalhes confidenciais de suas negociações com autoridades dos EUA. A Ucrânia seria legalmente proibida de oferecer melhores termos a outros investidores por um ano após os EUA terem repassado um projeto.

As empresas que extraem os minerais essenciais da Ucrânia seriam impedidas de vender para compradores que Washington considera "concorrentes estratégicos". Dada a guerra comercial de Trump com a Europa, há uma grande chance de a UE cair nessa categoria. Isso fecharia a porta para a futura adesão da Ucrânia à UE, à qual os ucranianos tanto aspiram.

As más notícias não param por aí. Zelensky não consegue dizer não, com medo de arriscar outra briga com Trump. A Ucrânia ainda está se recuperando das consequências da dupla no Salão Oval e precisa desesperadamente dos EUA ao seu lado para as negociações com a Rússia. A única opção que Kiev tem é atrasar o acordo. A equipe de Zelensky está preparando uma contraproposta — uma que não comprometa a soberania da Ucrânia. Trump havia suavizado alguns dos termos mais exploradores no primeiro rascunho do acordo de minerais há um mês. Os ucranianos esperam que ele faça isso novamente — ou que Trump desista do acordo ele mesmo.”


terça-feira, 18 de março de 2025

Trump está servilmente a serviço de Putin, não só na Ucrânia, mas principalmente na Ucrânia - Viktor Kravchuk

A Ceasefire of Shame

A deal written in cowardice, signed in blood

They talked about Ukraine, but Ukraine wasn’t at the table. They spoke of peace, but the bombs kept falling.

They called it a ceasefire, but it’s nothing more than a gift to a war criminal.

Donald Trump and Vladimir Putin had their little phone call, their moment of mutual admiration. Trump, a convicted felon. Putin, a wanted war criminal. And together, they came to an agreement: a ceasefire that Ukraine never asked for, that Ukraine was never even consulted on.

As they spoke, Ukraine was under massive missile attack. This is the "result" of their negotiations.

Trump calls it peace. But do you call it peace when entire families are buried under rubble? When stolen Ukrainian children are still trapped in Russia, renamed, brainwashed, erased? When the invader still occupies your home, your city, your country?

That is not peace. That is submission.

Zelensky accuses Russians of 'cowardly silence' over Dnipro attack

Trump says the war "should never have started", as if it was some tragic accident. As if Ukraine had a choice in whether its cities were bombed, its women raped, its people abducted. 

The war didn’t merely "start." Russia attacked. Putin attacked.

And now Trump wants to reward him with a deal. Not a deal for Ukraine. Not a deal for justice. A deal for Putin, so he can stabilize his economy, sell his gas, stockpile his weapons, and prepare for the next round of war.

Can you believe that?

A ceasefire doesn’t mean Russian troops leave. It doesn’t mean war criminals face trial. It doesn’t mean justice for Bucha, for Mariupol, for every city turned to rubble by Russian bombs.

It means Russia gets time. Time to regroup, time to rearm, time to prepare for another slaughter, another invasion, another genocide.

Because let’s take things clear: this is a war of extermination.

Russia doesn’t just want land. It wants Ukraine erased. Our culture, our people, our history. Russia wants Ukraine to stop existing.

And Trump, whether through cowardice or corruption, probably both, is handing Putin exactly what he wants.

Kyiv mourns as rescuers sift piles of rubble at a children's hospital hit  by a Russian missile - The Press Democrat

Trump’s plan is simple: protect Russian oil and gas so Putin can keep funding his war. 

Not a word about returning abducted Ukrainian children. Not a word about stopping Russian missile strikes on civilians. Not a word about justice for those tortured in the occupied territories.

Because this was never about peace. It was about business.

About "huge economic deals." About Trump’s personal interests.

About the wealthy few who stand to profit from Russian gas, from war, from suffering.

The mask is off. There is no diplomacy, no neutrality here. This is Trump openly doing Putin’s bidding, propping up a dictator who has spent the last 25 years waging war, silencing dissent, assassinating opponents, killing anyone who stands in his way.

What Happened on Day 13 of Russia's Invasion of Ukraine - The New York Times

We don’t need a ceasefire. We need Russian troops out of Ukraine.

We need war criminals on trial in The Hague. We need the return of every stolen Ukrainian child.

A ceasefire without withdrawal is surrender. Would you call it peace if an intruder broke into your home, killed your family, stole your belongings, then sat down at your table and told you to move on?

A ceasefire without justice tells every dictator that war crimes work. 

That genocide is just a phase of war, not a crime.

A ceasefire without Ukraine at the table is an insult. As if Ukraine is some distant land, not a country of millions of people fighting for their lives.

No, we will not accept a "peace" that lets Russia keep its stolen land, its mass graves, its war crimes. 

No, we will not pretend that Trump and Putin are negotiating peace when they are simply negotiating how best to carve up a nation that refuses to die.

They are making their choices. To accept occupation, to let war crimes go unpunished. But we also need to make our choice. 

We have already chosen to fight.

If this were your land, what choice would you make?


terça-feira, 4 de março de 2025

Um plebiscito resolve a questão do Donbas? - Marcelo Guterman

 Um plebiscito resolve a questão do Donbas?

Fronteiras entre os países sempre foram algo disputável. Afinal, o que define uma fronteira?

Durante séculos, fronteiras entre reinos e países foram estabelecidas e reestabelecidas, seja na base da negociação comercial, seja na base da guerra. Aqui mesmo na América do Sul, ainda temos disputas territoriais entre Venezuela e Suriname, entre Chile e Bolívia, entre Argentina e Grã-Bretanha e entre a Argentina e o Chile. Com exceção do área do Essequibo, todas as outras disputas envolvem pequenas áreas ou rios. Mas não deixam de ser disputas.

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O último grande redesenho de fronteiras se deu após a queda do muro de Berlim, quando as ex-repúblicas soviéticas se separaram da mãe Rússia e se tornaram países independentes. O desenho das fronteiras atuais da Ucrânia foram estabelecidas em seu decreto de independência, de agosto de 1991, e não foram contestados, à época, pela Rússia. Um referendo popular, em dezembro do mesmo ano, aprovou a independência. O mapa abaixo mostra o apoio à independência, que ganhou em todos as regiões, inclusive no Donbas e na Crimeia. Nesta última, o apoio foi mais apertado, com 54% de aprovação e baixo comparecimento às urnas, mas, mesmo assim, houve aprovação. Na região do Donbas, o apoio foi superior a 80%.

Há quem defenda que se faça um referendo na região do Donbas para que a população se manifeste. São duas questões aqui. A primeira se refere às condições objetivas para a realização de um referendo justo, em um território ocupado por forças russas. Efetivamente foi realizado um em 2014 e outro em 2022, mas seus resultados, como pode se imaginar, foram fortemente influenciados pela pressão dos rebeldes separatistas e das forças militares e paramilitares russas estacionadas na região.

A segunda questão, no entanto, é mais importante. Todo país tem suas divisões internas. As regiões se distinguem umas das outras de vários modos. Imagine se, a cada discordância, as regiões resolvessem se separar do país. Por exemplo, não seria surpreendente se a separação do São Paulo do restante do País fosse aprovada em um plebiscito no Estado. Seria legal? Ou tal tentativa de separação seria combatida militarmente pelo governo federal? Em 1932 não houve tentativa de separação, mas as forças federais entraram em guerra civil contra as forças paulistas por muito menos.

No caso da Ucrânia, houve um referendo fundacional, que estabeleceu as suas fronteiras. A partir daí, não pode haver mais discussão sobre este assunto, a não ser na base da força, como ocorreu na região da Crimeia e ocorre agora na região do Donbas. Os cidadãos do Donbas aprovaram a sua incorporação à Ucrânia na sua fundação, e agora fazem parte da unidade territorial ucraniana. Colocar em dúvida de maneira permanente as fronteiras de um país não é compatível com qualquer estabilidade institucional. Ainda mais, como sabemos, quando o grupo rebelde é alimentado pela força estrangeira que deseja incorporar o território.

Assim, a solução simplista "vamos fazer um plebiscito e seguir a vontade da população" já foi adotada em 1991, e não há motivo para que seja feito novamente. Ainda mais sob a mira de fuzis.

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quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Ucrânia: entre a guerra e a desonra -Vitelio Brustolin CNN Forum

Ucrânia: entre a guerra e a desonra

Vitelio Brustolin

CNN Forum, 20 fevereiro 2025


https://www.cnnbrasil.com.br/forum-opiniao/analise-ucrania-entre-a-guerra-e-a-desonra/


        “Você teve escolha entre a guerra e a desonra. Você escolheu a desonra e terá guerra.” Essa foi a declaração de Winston Churchill quando Neville Chamberlain retornou com a assinatura de Hitler no Pacto de Munique.

        Isso foi em 1938. Hitler recebeu os Sudetos da Tchecoslováquia. Meses depois, invadiu a porção ocidental da Tchecoslováquia. Inglaterra e França apenas protestaram. Meses depois, dividiu a Polônia com Stálin e começou a Segunda Guerra Mundial. A história pode se repetir, não como farsa, mas como nova tragédia. A humanidade parece não aprender e estar fadada a repetir seus erros.

Putin ambicionava ter um governo ucraniano obediente, como o da Chechênia ou o de Belarus. Em 2010, um presidente pró-Rússia, Viktor Yanukovych, foi eleito na Ucrânia. Ele assinou um acordo que permitia a presença das tropas russas na região da Crimeia, além de autorizar o treinamento de militares na península de Kerch. 

        Ainda assim, em setembro de 2013, a Rússia advertiu que se a Ucrânia avançasse com um acordo de livre comércio com a União Europeia, “enfrentaria uma catástrofe financeira” e “possivelmente o colapso do Estado”. Diante disso, Yanukovych recuou e se recusou a assinar o acordo com a União Europeia, refutando uma negociação que estava sendo feita há anos e que ele mesmo havia aprovado anteriormente. 

        Essa decisão do então presidente ucraniano de suspender a assinatura do acordo entre União Europeia e Ucrânia, escolhendo, em vez disso, estreitar laços com a Rússia e a com União Econômica Eurasiática, levou multidões às ruas da Ucrânia para protestar no evento que foi inicialmente chamado de “Euromaidan”. Os protestos duraram três meses, de 21 de novembro de 2013 a 23 de fevereiro de 2014 e culminaram no impeachment de Yanukovych, enquanto ele fugia para a Rússia. 

        Na sequência, a Rússia enviou soldados sem identificação para a Ucrânia, ocupando, sobretudo, a região da Crimeia, mas também ocupando parte da região de Donbas. A ocupação foi concluída em 18 de março de 2014. Atualmente a Ucrânia considera que a Crimeia está ocupada pelos militares russos, mas não reconhece a perda do território.

        A Ucrânia não era inimiga da Rússia. A Ucrânia entregou à Rússia as suas armas nucleares em 1994, por meio do Memorando de Budapeste, um acordo garantido por três potências nucleares: Rússia, Estados Unidos e Reino Unido. China e França mais tarde também aderiram; ou seja, todos os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. 

        O convite para a Ucrânia ingressar na Otan estava engavetado desde a guerra da Geórgia, em 2008. Após 2014, esse ingresso se tornou inviável pelas regras da própria Otan, já que a Ucrânia se tornou território de conflito com a anexação da Crimeia e a guerra civil no Donbas.

        Para resumir: a Ucrânia era um país neutro, como a Rússia queria, desde que obteve a independência em 1991, mas mudou de rumo após Putin promover a anexação da península da Crimeia, em 2014. O Parlamento ucraniano aprovou por larga maioria uma alteração na Constituição e tornou a adesão à União Europeia e à Otan objetivos nacionais. A alteração foi concluída em 2019, três meses antes da eleição de Zelensky. 

        Os grupos extremistas da Ucrânia foram criados em 2014, motivados pela agressão russa – dentre eles, o famigerado Batalhão Azov. Já naquela época existiam grupos extremistas na própria Rússia, como o Russkii Obraz, um grupo neo-nazista que se tornou uma grande força no cenário nacionalista radical da Rússia e que foi apoiado por Putin. Além disso, em 2014 também foi criado o Grupo Wagner, formado por mercenários que atuaram em diversos conflitos ao redor do mundo e que tinha integrantes assumidamente neo-nazistas. O grupo, acusado de cometer crimes de guerra, como saques, estupros, massacres de civis, tortura e execução sumária de prisioneiros de guerra, foi fundado pelo oligarca Yevgeny Prigozhin, antigo amigo Putin que se voltou contra ele em 2023 e, meses depois, morreu em um acidente aéreo suspeito.

        Um dos objetivos declarados por Putin com a guerra na Ucrânia era “restringir a expansão da Otan”. Conforme exposto acima, era impossível o ingresso da Ucrânia nessa organização, pois o país estava em guerra. No entanto, após a invasão da Ucrânia pela Rússia, a Otan de fato se expandiu. O ingresso da Finlândia, após ter sido neutra desde 1945, e da Suécia, que era neutra desde 1814, tiveram o efeito contrário ao que Putin aventava.

        Esses países se aproximaram da Otan para se protegerem da Rússia. Assim como aconteceu com outros países do Leste Europeu, incluindo ex-repúblicas soviéticas. 

Putin alega que, em 1990, o então presidente dos EUA George Bush prometeu ao líder russo Mikhail Gorbachev que a Otan não “se moveria nem uma polegada para o leste” além da Alemanha, se esse país fosse unificado. O próprio Gorbachev, no entanto, afirmou que essa promessa nunca foi feita e que o acordo era apenas sobre a Alemanha, conforme pode ser verificado aqui:  https://www.brookings.edu/articles/did-nato-promise-not-to-enlarge-gorbachev-says-no

        Mas qual é então o real objetivo de Putin com a guerra na Ucrânia? Carl von Clausewitz ensina que a guerra é “uma continuação da política por outros meios”. Quando não se consegue o que se quer pela via diplomática, os Estados podem tentar obtê-lo pelo uso da força. A guerra tem, portanto, um objetivo político: a alteração ou manutenção de um determinado status quo; ou seja: a obtenção de “uma paz mais favorável”.

        O objetivo é o seguinte: Putin não reconhece o direito de a Ucrânia existir como país, conforme escreveu em um ensaio publicado em julho de 2021, no site do Kremlin. A ironia disso, é que os ucranianos não querem fazer parte da Rússia, caso contrário, não estariam lutando há três anos contra a segunda maior potência militar do mundo, com a qual fazem fronteira terrestre. 

        Para se ter uma ideia, a Ucrânia é do tamanho do Estado de Minas Gerais e tem uma população três vezes menor que a da Rússia. É notável que o país esteja conseguido resistir por tanto tempo, mas também é evidente que só vem resistindo com armamentos e auxílios de aliados.

        E é justamente aqui que chegamos ao momento presente: desde o início da guerra, países europeus ajudaram a Ucrânia com o equivalente a US$ 137 bilhões, enquanto os Estados Unidos forneceram o equivalente a US$ 118 bilhões. A Ucrânia pode continuar resistindo sem o apoio dos Estados Unidos? O ex-presidente Joe Biden prometeu por diversas vezes que os EUA apoiariam “pelo tempo que for necessário”. Donald Trump, porém, tem outras ideias.

        Em 1938, Hitler convenceu a Grã-Bretanha e a França de que a Tchecoslováquia, e não a Alemanha nazista, seria a causa do conflito na Europa. O pacto ficou conhecido como um exemplo de “política do apaziguamento”, pois Reino Unido e França tentaram evitar uma guerra cedendo às exigências de Hitler. A Tchecoslováquia não foi sequer ouvida.

        Também não foram ouvidos os países que foram divididos em zonas de ocupação e influência na Conferência de Yalta, em fevereiro de 1945. Stálin, da União Soviética; Roosevelt, dos Estados Unidos; e Churchill, do Reino Unido, “decidiram” por todos os demais. E foi assim que começou a Guerra Fria.

        De novo: Putin não reconhece o direito de a Ucrânia existir como país. Qualquer acordo sobre a Ucrânia que não envolva garantias de segurança levará a outra guerra. Afinal, quando ocupou a Crimeia em 2014, Putin não alegou que estava fazendo isso pela “expansão da Otan”. A invasão de 2022 foi só uma continuação da guerra iniciada oito anos antes. 

        Pior que isso: com o afastamento dos Estados Unidos e seu eventual consentimento de uma nova ocupação russa em territórios ucranianos, ninguém na Europa acredita que a Rússia irá parar na Ucrânia. 

        Há tropas russas ocupando territórios na Georgia, na Abecásia e Ossétia do Sul; além da Moldávia, na Transnístria. A Rússia interferiu recentemente nas eleições presidenciais na Romênia, que, por conta disso, foram anuladas. Os países bálticos, Estônia, Letônia e Lituânia, se preparam abertamente para uma guerra, reforçando seus exércitos e construindo muros nas fronteiras (sim, retornamos aos muros que marcaram a Guerra Fria). A Polônia – que foi dominada por quatro anos pelos nazistas e por cinco décadas pelos soviéticos – investe quase 5% do PIB em defesa, pois não quer ser escravizada novamente. Esses são apenas alguns exemplos, já que desde a ocupação da Crimeia, em 2014, a Europa aumentou em 50% as despesas com defesa. O gasto total dos 27 estados-membros da União Europeia em 2024 foi de € 320 bilhões, contrastando com os € 200 bilhões de 2021, antes de a Rússia lançar seu ataque contra a Ucrânia. 

        A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, está propondo uma cláusula de emergência que permite aos governos que as despesas militares não sejam contabilizadas em seus limites de déficit orçamentário. É uma cláusula semelhante à que foi usada para a área de saúde, durante a pandemia de Covid-19. O objetivo é fortalecer a Ucrânia e chegar a um investimento de € 500 bilhões em defesa. 

        Enquanto isso, o gasto militar da Rússia em 2024 foi estimado pelo Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo, o SIPRI, em US$ 140 bilhões, o que representa quase 40% de todo o orçamento anual do país. Não se trata só de empregar recursos, é preciso fortalecer as bases industriais de defesa da Europa, já que a Rússia produz armamentos e munições com rapidez e custos comparativamente reduzidos, além de contar com o apoio direto do Irã, Belarus e da Coreia do Norte.             Além disso, a Europa precisará agir coordenadamente, após ter deixado a sua segurança a cargo dos Estados Unidos nos últimos 80 anos. 

        Nas guerras de Inverno e da Continuação, entre 1939 e 1945, a Finlândia perdeu 11% do seu território para a União Soviética de Stálin, contudo, saiu dessas guerras soberana. Passou 80 anos se armando e hoje tem um dos mais bem equipados exércitos da Europa. Entrou para a União Europeia junto com a Suécia em 1995 e em 2023 ingressou na Otan. O destino da Ucrânia pode ser semelhante, mas apenas se contar com o apoio de aliados.

        “Você teve escolha entre a guerra e a desonra”, disse Churchill. É a mesma escolha imposta hoje à Europa. O preço da desonra pode ser alto demais.

 

Vitelio Brustolin

PhD em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento

É professor de Relações Internacionais na Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador da Harvard Law School e do Harvard Department of the History of Science. Pós-doutorado na Harvard University.

 


sábado, 9 de novembro de 2024

A decisão geopolítica mais relevante deste século - Paulo Roberto de Almeida

 A decisão geopolítica mais relevante para o resto deste século é a decisão de Trump se ele forçará, ou não, a Ucrânia a capitular em face de Putin. Se o fizer, estaremos de volta aos anos 1930. No comércio internacional já é o caso, aliás direto ao mercantilismo. 

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 9/11/3024

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

A Ucrânia continua a sustentar o morticínio causado pela guerra de agressão da Rússia - CDS

Parte final da informação diária do Centro de Estudos de Defesa da Ucrânia, dia 6/11/2024: 

Humanitarian + general:

  • During the night of November 6, Russian forces launched 63 "Shahed" attack drones and other drones of an unspecified type at Ukraine, as well as striking Odesa Oblast with two guided aviation missiles, the Kh-59 and Kh-31P. Of the drones, 38 were destroyed, 20 were lost from radar, and two remained airborne at the time of the report. 

  • As a result of a Russian attack on energy infrastructure overnight on November 6, parts of Mykolaiv Oblast lost power. As of 8:00 a.m., 21 villages in the Pervomaisk District remained completely without power, with partial outages in the city of Pervomaisk. Electricity was unavailable for 25,500 residential and 1,500 commercial customers. 

  • A missile strike on Zaporizhzhia by Russian forces in the evening of November 5 resulted in seven deaths and 25 injuries. Overall, during the past day, Russian forces launched 301 attacks on 13 towns and villages in Zaporizhzhia Oblast. 

  • After 11:00 a.m., Russian forces launched a strike from the temporarily occupied left bank on Zelenivka in Kherson Oblast. A couple in their home sustained injuries. Earlier, Russian shelling also wounded a man in Kherson and another man in Antonivka, a suburb of Kherson. 

  • In Chernihiv on the evening of November 6, a cruise missile explosion on the outskirts of the city injured two people. 

  • In the city of Kurakhove, Donetsk Oblast, around one thousand people remain, though due to the difficult and dangerous conditions, it is currently not possible to evacuate them. 

  • In Kherson Oblast on November 5, five people were injured as a result of Russian attacks. A total of 17 towns and villages in the oblast came under shelling and air strikes. 

  • In Donetsk Oblast on November 5, Russian forces launched 2,835 strikes, damaging eight civilian sites. 

  • The Prosecutor General’s Office reports that law enforcement is investigating 49 criminal cases concerning the killing of 124 prisoners of war on the battlefield. These killings began to rise in late 2023 and have reached unprecedented levels this year, with most cases recorded in Donetsk Oblast. 

  • Nearly half of Ukrainians (44%) report trying to buy the cheapest food available, regardless of quality, according to a survey conducted by the Razumkov Center from September 20 to 26. Meanwhile, 45% said they can afford to buy higher-quality, though more expensive, food. Another 11% were unable to give a definitive answer. 

  • The survey also showed that, since the full-scale invasion, the number of citizens barely making ends meet has increased to 12%, up from 9% in 2021. At the same time, the share of those who feel financially secure but cannot afford major purchases has grown from 6% to 9%. The percentage of people living at a sufficient level but struggling to buy durable goods like furniture or appliances has decreased from 44% to 41%.


terça-feira, 24 de setembro de 2024

Putin pode destruir o que quiser; os ucranianos só podem se defender, não atacar?

 As democracias ocidentais que apoiam a Ucrânia agonizam em torno das “linhas vermelhas” de Putin, que não tem nenhuma restrição em matar civis e destruir o país e acha que ninguém tem o direito de responder à altura:

Debate over Ukraine weapons restrictions divides allies, administration

By Isabelle Khurshudyan, Siobhán O'Grady, Michael Birnbaum and Ellen Francis (WP)

https://www.washingtonpost.com/world/2024/09/24/ukraine-weapons-limits-biden-permission-atacms/?utm_campaign=wp_todays_headlines&utm_medium=email&utm_source=newsletter&wpisrc=nl_headlines&carta-url=https%3A%2F%2Fs2.washingtonpost.com%2Fcar-ln-tr%2F3f15e0c%2F66f28dcce1d3e04a6f610643%2F596b79f3ade4e24119b43ed3%2F11%2F70%2F66f28dcce1d3e04a6f610643

KYIV — The United States’ lingering refusal to relax restrictions on Ukraine’s use of Western missiles for deeper strikes on Russian territory has exacerbated a growing divide between the allies — with Kyiv angry over yet another setback in slowing Russia’s assault across the country while its biggest backer considers the possibility of Moscow’s backlash. (…)


sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Mistérios imponderáveis da natureza humana - Paulo Roberto de Almeida

 São também mistérios da razão burocrática. 

Ou seriam atinentes a algum fator ideológico?

A atual diplomacia brasileira publicou dezenas de notas lamentando os ataques israelenses a alvos civis na Faixa de Gaza. 

Ela não foi capaz de elaborar qualquer nota a respeito dos bombardeios russos contra alvos civis na Ucrânia. 

Deve haver algum motivo para essa brutal diferença de tratamento para duas guerras em curso. 

Ainda temos de descobrir por que isso!

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 13/08/2024

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

A humanidade desumanizou-se? - Paulo Roberto de Almeida

A humanidade desumanizou-se?

  

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Nota sobre a total indiferença que o morticínio na Ucrânia vem sendo recebido no chamado Sul Global, entre esses países o Brasil, incapaz de se manifestar sobre o massacre que vem sendo conduzido pela Rússia contra civis inocentes e a infraestrutura material do país.

  

Um dos fatos mais chocantes na atualidade internacional é constatar que a maior parte da comunidade dos Estados membros da ONU, especialmente do chamado Sul Global, permanecer completamente indiferente ao cenário de morticínio e de destruição bárbara perpetrados pela Rússia na Ucrânia. 

Como é possível aos dirigentes, à população, não se indignar em face de um espetáculo de pura barbárie, terrorismo deliberado, crimes de guerra e contra a humanidade?

As pessoas, em geral, no Sul Global em especial, consideram que não há nada que possa ser feito e que os bombardeios contra alvos civis podem continuar a ser feitos porque um membro permanente do CSNU dispõe de um poder exclusivo, o de violar a Carta da ONE e todos os princípios do Direito Internacional impunemente?

Quando esse tipo de comportamento inadmissível passou justamente a ser considerado como admissível, normal e inquestionável? Quando foi que a MAIOR PARTE da humanidade se convenceu de que nada poderia ser feito, ou, coisa pior, que era possível continuar a comerciar e até a intensificar esse comércio e outras relações com a parte agressora, como se o lado perversamente amoral do seu comportamento pudesse passar a ser admitido como coisa menor?

O que foi que ocorreu com os países que aderiram e que ratificaram a Carta da ONU para ignorar por completo suas OBRIGAÇÕES inscritas na Carta de boicotar o agressor, de submeterem-no a sanções e de vir em socorro da parte agredida unilateralmente?

Por acaso, mais da metade da humanidade, seus dirigentes políticos, se julgam desprovidos de qualquer responsabilidade política, moral, simplesmente humanitária, em face da barbárie sendo cometida contra o povo iraniano?

Almas cândidas poderão argumentar com as matanças já em curso na África e em outros lugares, a maior parte resultado de guerras civis, conflitos políticos, étnicos ou religiosos, mas estamos falando, no caso da Ucrânia, nada disso estava dm curso, e sim foi uma agressão deliberada, unilateral, não provocada, das mais cruéis já vistas desde as guerras de expansão das potências nazifascistas dos anos 1930.

Estamos de volta aos momentos mais sombrios da história da humanidade, um tempo de desumanização inédita para os padrões do multilateralismo contemporâneo?

Tudo indica que sim…

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4725, 4 setembro 2024, 2 p.


 

 

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Apenas uma expressão de horror - Paulo Roberto de Almeida

Apenas uma expressão de horror

  

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Nota sobre o morticínio sendo conduzido por Putin na Ucrânia, na indiferença dos demais Estados membros da ONU.

  

Estou tão horrorizado quanto qualquer pessoa bem-informada pelo tremendo recuo civilizatório experimentado pela Rússia de Putin desde o início de seu neoczarismo retardatário e pelo sofrimentos que ele vem causando desde 2008 aos seus vizinhos, renovados em 2014 e com maior amplitude a partir de 2022, em escala praticamente mundial.

Estou horrorizado pela incapacidade da maior parte das lideranças dos Estados membros da ONU, da própria ONU, de respeitarem os preceitos da Carta quanto ao Direito Internacional.

Estou horrorizado quanto à postura dos governos brasileiros, desde 2014, novamente em 2022, e continuando ainda em 2024, numa demonstração cabal de indiferença aos horrores perpetrados pelo Estado russo sob Putin na manutenção de contínuas violações do Direito humanitário, das leis da guerra, na prática constante de crimes contra a Paz e contra a humanidade.

Não disponho de nenhum outro recurso contra as desumanidades correntes a não ser a expressão impotente de meu horror em face do mal absoluto. Apenas um registro para a História.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4723, 2 setembro 2024, 1 p.


quinta-feira, 1 de agosto de 2024

A QUESTÃO DA UCRÂNIA – EVENTUAL RETORNO DA BELARUS COMO CENTRO DE NEGOCIAÇÕES - Paulo Pinto

A QUESTÃO DA UCRÂNIA – EVENTUAL RETORNO DA BELARUS COMO CENTRO DE NEGOCIAÇÕES

Paulo Pinto
Embaixador do Brasil aposentado. Percursos diplomáticos diferenciados.

O ingresso da Belarus, no mês passado, na “Shanghai Cooperation Organization” (SCO), foi noticiado apenas como fato de que “mais um governo autoritário” aderia a projeto sino-russo para o controle sobre a Ásia Central.

Peço vênia para refletir sobre como a adesão de um “país europeu” à SCO reforça a possibilidade de que Minsk (capital bielorrussa) recupere a credencial para sediar - conforme ocorrido entre 2014 e 2022 - processo de negociação com vistas ao término do conflito russo-ucraniano.

Seria, nessa perspectiva, um compromisso para que as partes envolvidas no conflito venham a sentar-se ao redor de uma mesa que já serviu, na mesma cidade, durante o período assinalado acima, para que, então, se decidisse quanto a uma agenda a ser aceita pelos combatentes.

Simbolizaria, também, a abertura de espaços a articulações para a solução de conflitos, que não se resumam à disputa entre formas de governança ou modelos econômicos predominantes no ordenamento mundial vigente a partir de 1945, com a fundação da Organização das Nações Unidas.

Nas palavras do Embaixador Celso Amorim, “o mundo não pode mais ser visto e ditado pelo G-7”, referindo-se ao grupo das sete nações mais desenvolvidas do mundo. Caberia, assim, pensar na reforma dos foros de poder global, como a ONU, para garantir maior participação de países que não apenas as grandes potências ocidentais. Seria possível, nessa perspectiva, voltar a refletir sobre propostas recentes para a solução de guerras atuais, no âmbito e envolvendo atores de suas respectivas regiões.

Para a análise desta hipótese, cabe, inicialmente, lembrar que a SCO – citada no parágrafo inicial - pretende contribuir, segundo visão de Moscou e Pequim, para uma “nova ordem internacional”. Este processo afetaria o espaço chamado de “Eurásia”, sob os auspícios de Rússia e China.

Uma vez formalmente integrada, Minsk, capital europeia naquele bloco euroasiático, poderia retomar a condição de sede – sem ser protagonista principal – de negociações envolvendo a Rússia, um dos patrocinadores principais do projeto eurasiano. A Ucrânia, neste caso, é vítima de objetivo de Moscou que, pela força, pretende incluí-la nesta proposta de ordenamento internacional, sem que sejam considerados valores mundialmente conquistados, como o respeito à integridade territorial.

Isto é, durante sua reunião de cúpula anual, realizada em julho, no Cazaquistão, dirigentes russos e chineses, buscaram transformar a SCO de um “bloco de segurança regional” em área geopolítica para chamar de sua, regida por instituições políticas com características distintas das que regem grupos de países do chamado “mundo ocidental”.

Não se trata, nessa perspectiva, apenas da integração de mais um parceiro de governo autoritário, como ocorreu com o Iran, que aderiu à SCO no ano passado. A Belarus, segundo seus vizinhos ocidentais, é regida também por governo autoritário, mas situa-se na “fronteira da Europa Ocidental com a Rússia” (conforme a definem capitais da Europa Ocidental). Fica fortalecido, assim, o conceito “eurasiano” da SCO.

Caberia recordar as linhas gerais da evolução das siglas e agrupamentos regionais objetos desta reflexão. Assim, em 1996, formalizou-se a cooperação entre China, Rússia, Cazaquistão, Quirguistão e Tajiquistão num “Grupo dos Cinco de Xangai”. Em 2001, evoluiu-se para a já mencionada Organização para Cooperação de Xangai (na sigla inglesa SCO).

A SCO foi criada, sob a liderança de Pequim e participação de Moscou e capitais dos países acima mencionados, com o objetivo de combater eventual instabilidade na Ásia Central, enquanto mantinha afastada a influência de “atores externos”, tais como a União Europeia e os EUA. É possível enfatizar que, gradativamente, a SCO evoluiria - conforme se busca identificar neste texto – no sentido de foro ideal para solução de conflitos envolvendo a Rússia, como a questão atual da Ucrânia.

A SCO também objetiva a “facilitação de ações conjuntas que visem o fortalecimento da paz e a promoção da segurança e estabilidade”. Quando de sua criação, a organização foi motivada pela “Guerra contra o Terror” desencadeada pelos Estados Unidos e OTAN, após os ataques contra as Torres Gêmeas em Nova York.

Moscou e Pequim, então, consideraram que as represálias contra organizações terroristas islâmicas transnacionais apareceram como uma espécie de “guerra civilizacional”, que poderiam radicalizar grupos islâmicos, então tidos como moderados, em seus respectivos territórios, como movimentos separatistas em Chechênia e Xinjiang.

Nessa perspectiva, cabe lembrar que, segundo alguns setores de opinião, Moscou continuaria a apegar-se à noção de que um ordenamento mundial, que lhe seja conveniente, exigiria a manutenção de seu controle sobre a Eurásia, particularmente no que diz respeito aos antigos participantes da URSS, no contexto das preocupações de segurança herdadas do Império Russo e da União Soviética.

A Rússia, portanto, não trata os “Estados pós-soviéticos” como realmente soberanos e Moscou acredita permanecer no direito de ditar-lhes escolhas políticas. Explica-se, assim, a intervenção russa na Georgia, em 2008, quando ocupou as regiões de Ossetia do Sul e Abkhazia, naquele país, bem como a ocupação da Crimeia, na Ucrânia, em 2014, além da operação militar contra este país, em 2022.

De sua parte, a RPC tem visão sobre uma ordem mundial distinta da Rússia. Para os chineses busca-se o retorno ao equilíbrio duramente conquistado durante o período que consideram de hegemonia civilizacional do “Império do Meio” (denominação da China vigente na “antiguidade”). Durante esta época, consideram alguns estudiosos, a China detinha legitimidade histórica para ser a potência predominante na “Ásia” e no Pacífico Ocidental, exercendo uma ordem mundial sino cêntrica.

Para a China, a integração da Eurásia é uma das prioridades de sua política externa. Em sua competição pela liderança política sobre a região com a Rússia, além de copatrocinar a SCO, Pequim investe pesadamente com seu projeto de integração econômica denominado “Cinturão e Rota das Sedas”.

Em 4 de fevereiro de 2022, foi assinado, na capital chinesa, o “Comunicado Conjunto da Federação Russa e da República Popular da China sobre as Relações Internacionais em direção a Nova Era e da Sustentabilidade Global do Desenvolvimento”. Surgiu a esperança de que, na Eurásia, pudesse consolidar-se, em favor da paz e da prosperidade, a “amizade eterna entre Putin e Xi Jinping”. Foi, então, acordado que “ambas as partes estão procurando avançar em seu trabalho de vincular os planos para o desenvolvimento da União Econômica Eurasiana, patrocinada por Moscou e a iniciativa do Cinturão e da Rota das Sedas, de Pequim, com vistas a intensificar a cooperação prática entre os projetos russos e chineses, de forma a promover maior integração entre a Ásia-Pacífico e a Eurásia”. O impasse recorrente da “operação militar especial russa” em território ucraniano, no entanto, não tem permitido a melhor definição de tais vínculos.

Ao contrário da diplomacia ocidental, contudo, enquanto os Estados Unidos e a União Europeia têm condenado e punido Moscou pela invasão à Ucrânia, a China não somente reforça a retórica de apoio à Rússia, como propõe uma reformulação da ordem internacional – sem que a ONU seja considerada como o foro para tais discussões.

O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Zhao Lijian, já se referiu ao conflito no Leste da Europa como uma guerra entre a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), liderada pelos EUA, e a Rússia, além de exaltar o elo entre Pequim e Moscou. “Uma importante lição do sucesso das relações entre China e Rússia é que os dois lados se mostram superiores ao modelo da aliança política e militar da era da Guerra Fria e se comprometem a desenvolver um novo modelo de relações internacionais baseado na não aliança, na não confrontação e em não visar terceiros países”.

A Questão da Ucrânia e os Acordos de Minsk

A atual questão da Ucrânia é a maior tragédia criada em país vizinho da Rússia, após a dissolução da União Soviética. Para a solução do conflito, foram concebidos os Acordos de Minsk. Assinados em 2014 e 2015 por representantes de Ucrânia, Rússia, França, Alemanha e das chamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, onde predominavam “russos do exterior próximo”. Os referidos documentos não conseguiram solução pacífica para o conflito em Donbass, na fronteira russo-ucraniana.

Em 22 de fevereiro de 2022, dois dias antes de começar sua “operação militar especial”, Moscou reconheceu a independência de Donbass e Putin esclareceu que a medida fora adotada porque Kiev afirmara publicamente que não cumpriria os Acordos de Minsk.

Lembra-se que, em fevereiro de 2014, o governo democraticamente eleito da Ucrânia fora derrubado pelo chamado movimento Euromaidan, que teria sido apoiado por potências ocidentais. O golpe desencadeou um conflito sangrento nas regiões orientais do país, onde parte da população – predominantemente de expressão russa – recusou a nova liderança de Kiev. Formaram-se, então, as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk (RPD e RPL, respectivamente). Kiev, então, tentou subjugar rapidamente as repúblicas recém-formadas por meios militares, sem sucesso. Não tendo conseguido vitória decisiva no campo de batalha, visto o apoio militar da Rússia aos dissidentes e o apelo das potências europeias por uma solução pacífica para o conflito, a Ucrânia recorreu a negociações. Estas foram dificultadas pela relutância do governo ucraniano em falar diretamente com os líderes de RPL e RPD.

Foram, então, formados o Grupo de Contato Trilateral sobre a Ucrânia, composto por Kiev, Moscou, Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) e o Formato Normandia, incluindo Ucrânia, Rússia, Alemanha e França. Chegou-se, assim, ao que ficou conhecido como os Acordos de Minsk, por terem as negociações sido realizadas na capital bielorrussa, considerada terreno neutro.

O primeiro desses acordos, o Protocolo de Minsk, foi assinado em 5 de setembro de 2014. Diante da ausência de resultados positivos, foi realizada nova versão, conhecida como Acordos de Minsk-2, assinada em 12 de fevereiro de 2015. O acordo Minsk-2 foi firmado durante uma reunião do Formato da Normandia, que incluiu o presidente russo, Vladimir Putin, a então Chanceler alemã Ângela Merkel, o então presidente francês, François Hollande, e o então presidente ucraniano Pyotr Poroshenko. Nota-se, na perspectiva dos parágrafos iniciais acima, que se estabelecia, então, que solução do problema regional dependeria também da garantia de potências da Europa Ocidental, nos moldes do ordenamento definido nos anos pós-1945.

As partes prometeram: cessar-fogo e retirar suas forças da linha de contato; a presença de armas pesadas na área da zona-tampão foi estritamente proibida; os sistemas de foguetes de lançamento múltiplo Uragan e Smerch, bem como o de mísseis balísticos de curto alcance Tochka, deveriam ser retirados a 70 km da linha de contato; observadores da OSCE deveriam monitorar a implementação dessas regras; além da troca de prisioneiros de acordo com o princípio “todos por todos”, os lados foram obrigados a realizar a anistia dos capturados durante os confrontos armados; o lado ucraniano também deveria adotar a lei sobre o status especial dos distritos separados de RPL e RPD e realizar eleições locais, levando em consideração o posicionamento dos representantes de ambas as Repúblicas de Donbass. No dia seguinte às eleições, Kiev deveria assumir o controle total da fronteira estatal ucraniana; além disso, os Protocolos de Minsk estipulavam a implementação de uma reforma na Ucrânia, que previa a introdução de um conceito de descentralização na Constituição do país que deveria ter levado em consideração as especificidades de “certos distritos das regiões de Donetsk e Lugansk”.

Segundo Moscou, contudo, nos últimos cinco anos, “o lado ucraniano simplesmente se absteve de implementar as cláusulas políticas dos Acordos de Minsk, exigindo, em vez disso, que o controle da fronteira entre os territórios de RPL e RPD fosse entregue primeiro a Kiev”. Essas exigências, no entanto, foram rejeitadas pelas autoridades das ditas repúblicas e por Moscou, que suspeitava que, uma vez que as forças ucranianas assumissem o controle da fronteira e isolassem efetivamente as repúblicas do mundo exterior, Kiev poderia então tentar esmagar a oposição por meios militares. A RPD e a RPL, assim como a Rússia, também acusaram o governo ucraniano de ocupar assentamentos ilegalmente na zona-tampão e de colocar equipamento militar pesado na região. A situação foi ainda mais agravada pelo fato de que as potências ocidentais repetidamente fecharam os olhos à recusa de Kiev em aderir aos Acordos de Minsk, ao mesmo tempo em que repreendiam constantemente a RPD e a RPL por supostas violações dos mesmos acordos.

Em 21 de fevereiro de 2022, Putin assinou um decreto para reconhecer a independência das repúblicas de Donbass, que mais tarde se tornaram parte da Rússia. A iniciativa resultou em ataques ucranianos crescentes de bombardeios e sabotagem contra a RPL e a RPD. O decreto foi seguido por anúncio de Putin quanto ao início da operação militar especial russa contra a Ucrânia, em 24 de fevereiro.

O Papel da Belarus

“Bielorrussos são simplesmente russos, com um selo de qualidade”, assim definiu o Presidente Lukashenko, quando perguntado sobre diferenças entre os dois povos, por ocasião da Abertura do Parlamento de seu país, em 2016.

Sua afirmação, naquele momento – quando eu exercia o cargo de Embaixador em Minsk – pretendia indicar “wishful thinking” de que a preservação de valores e formas de governança da época estalinista, ainda em vigor, na Belarus, poderiam mesmo ser o caminho para um plano de integração euroasiática, nos termos propostos pelo Presidente Putin. Nesse processo, parecia acreditar, algumas práticas de organização política e econômica bielorrussas determinariam modelo civilizacional, diferente e melhor do que o adotado no Ocidente, conforme alardeado pelo líder russo.

No contexto do projeto euroasiático do Presidente Putin, a Belarus desejaria ser “o centro de integração das integrações”. Sobre o assunto, caberia o aproveitamento da moldura da Comunidade de Estados Independentes – herdeira de países que formaram a URSS – estabelecida, em Minsk, em 8 de dezembro de 1991 – antes, portanto, da extinção da União Soviética.

Lembra-se que 11 antigos membros da URSS decidiram manter vínculos entre si, com o objetivo de estabelecer sistema econômico e de defesa entre antigas repúblicas da União Soviética. De qualquer forma, existem adormecidos na CEI – sempre repetindo que tem sede na capital bielorrussa – mecanismos de articulação que eventualmente poderiam ser acionados no que diz respeito a conflitos entre antigos camaradas soviéticos, como o da Questão da Ucrânia.

Minsk, nesse contexto, tem sido escolhida, em consenso com países ocidentais, como local para acordos destinados a negociar tais disputas. Não há protagonismo bielorrusso na busca de solução dos problemas. O papel de facilitador nas negociações, no entanto, eleva o perfil diplomático da Belarus no cenário mundial. Este país, sabe-se, é objeto de sanções internacionais por seu sistema de governo autoritário, que o leva a ser conhecido como “A Última Ditadura da Europa”.

No âmbito da Comunidade de Estados Independentes, foi assinada, em 15 de maio de 1992, a Organização do Tratado de Segurança Coletiva por Armênia, Cazaquistão, Quirguistão, Rússia, Tajiquistão e Uzbequistão, na cidade de Tashkent. O Azerbaijão assinou o tratado em 24 de setembro de 1993, a Geórgia em 9 de dezembro de 1993 e a Belarus em 31 de dezembro de 1993. O tratado entrou em vigor em 20 de abril de 1994. Sua fundação reafirmava o desejo dos Estados participantes em se abster do uso ou ameaça da força. Os signatários não poderiam aderir a outras alianças militares – como a OTAN – ou outros grupos de estados, enquanto a agressão contra um signatário seria percebida como uma agressão contra todos.

Até recentemente, os que tinham ouvido falar de Minsk sabiam apenas que Lee Oswald, antes de assassinar o Pres. Kennedy, havia residido e trabalhado naquela cidade. Além disso, confiava-se que, na ausência de uma máquina que viajasse ao passado, a alternativa seria ir à Belarus para conhecer uma “espécie jurássica de Homo Sovieticus”.

Hoje, poderia ser conveniente, estrategicamente, haver reflexão sobre a possibilidade de que a crise em curso na Ucrânia proporcione a elevação da Belarus de alvo de sanções para uma respeitável plataforma de reuniões de cúpula, com vistas a negociações pacíficas que envolvam seu entorno regional.

Nesse sentido, em linhas gerais, poder-se-ia considerar que o Ocidente apoie esforços do Presidente Lukashenko de fortalecer um estado bielorrusso, que seria neutro com relação à Rússia, enquanto seriam reduzidas as pressões para a liberalização da política interna daquele país.

Como cenário alternativo, há quem cogite que ocorra simplesmente a incorporação da Belarus à Rússia, que contaria, assim, com uma fronteira ainda mais próxima à União Europeia.

Retorna-se, neste ponto, à ideia de reanimar e fortalecer a Comunidade de Estados Independentes, com sede estabelecida em Minsk, a partir de 1991. A Belarus fica reforçada, nesta hipótese, por seu ingresso da SCO, tendo em vista o envolvimento da China.

Conforme sugerido acima, o arcabouço disponível na referida Comunidade, poderia sondar fórmulas para o debate de temas, como, por exemplo:

- O compromisso de que a não adesão ucraniana à OTAN pudesse permitir às convenções adormecidas na CEI levar a Rússia a retirar suas tropas das regiões da Ucrânia, Donbass e outras, que ocupara em 2022. Caberia, então, decidir se essas permaneceriam sob a soberania da Ucrânia, mas um grau mais elevado de autonomia lhes seria garantido.

- Poder-se-ia, também, considerar o congelamento da crise na Crimeia, anexada por Moscou em 2014. Ou seja, não haveria um reconhecimento internacional de que a região passe a fazer parte da Rússia. Seria necessário, contudo, não haver um questionamento sobre o fato de que, na prática, a região permaneceria controlada e administrada por Moscou.

- Haveria espaço, em compromissos assumidos no âmbito da CEI, sobre Direitos Humanos, para discutir o tema do emprego do idioma russo por aqueles que o tenham como parte de sua cultura original. Lembra-se que não apenas a Ucrânia é habitada por tais minorias.

- Seria garantida, ainda com maior ênfase, a segurança dos membros da CEI contra eventuais ameaças de países ou alianças militares vizinhas.

Nesse contexto, registra-se que, para alguns observadores, existe para a Rússia a dúvida quanto a sua inserção internacional, como um estado europeu ou eurasiano, com implicações na orientação de valores e busca de foro mais apropriado para a resolução de conflitos com países vizinhos.

Aqueles que seguem a opção por ser um estado europeu são reconhecidos como “pró-Ocidente” e enfatizam os atributos russos com características europeias, enquanto evitam seus traços eurasianos. De sua parte, contudo, os países europeus sempre consideraram a Rússia como um país diferente. Os russos, assim, se sentem rejeitados pelos europeus.

Tive a experiência pessoal, por ocasião de palestra que proferi na Universidade de Herzen, de São Petersburgo, em 2018. No período reservado a perguntas, uma aluna me perguntou se, naquela cidade, “eu me considerava na Europa ou na Rússia”. Respondi, diplomaticamente, que “me sentia na cidade russa mais europeia”.

Os russos eurosianistas insistem que seu país pertence nem à Europa, nem à Ásia, apesar de possuírem traços de personalidade europeus e asiáticos. Segundo esse ponto de vista, na medida em que seu país seja uma mistura de ambas as civilizações, deveria desempenhar papel importante na vinculação entre o Oriente e o Ocidente, garantir a segurança do “hinterland” da Ásia e da Europa e assegurar interesses estratégicos por meio de intercâmbio e cooperação entre países da Europa e da Ásia.

Assim, Moscou deveria atribuir importância à Comunidade de Estados Independentes (CEI), que abrange países de ambos os continentes. Daí, quando houver momento propício para eventual negociação de paz na questão da Ucrânia, reitero a importância da possibilidade de que se recorra a estruturas disponíveis em arcabouço deixado pela antiga União Soviética.

Tendo como capital a cidade de Minsk, a CEI é estruturada administrativamente por dois conselhos, sendo um composto por chefes de governo e outro por chefes de Estado.

Tive oportunidade de visitar a sede da CEI, em Minsk, a título de cortesia, enquanto fui Embaixador na Belarus, entre 2015 e 2019, e verifiquei que se trata de organização simbólica, que funcionaria como uma espécie de banco de reservas, onde permanecem disponíveis acordos, mecanismos de negociação e projetos da antiga URSS, que poderiam ser colocados em campo, caso alguma proposta de integração ou de resolução de conflito fosse realmente almejada.

Embaixadores dos países membros da referida comunidade, acreditados em Minsk, apresentam credenciais também ao Diretor da CEI. A lista de participantes tem variado, com inclusão ou separação de antigos membros da URSS, de acordo com dinâmica regional de aproximação ou distanciamento da Rússia. De qualquer forma, existem adormecidos na CEI mecanismos de articulação que eventualmente poderiam ser acionados no que diz respeito à Questão da Ucrânia.

Minsk, nesse contexto, tem sido escolhida, em consenso com países ocidentais, como local para acordos destinados a negociar disputas entre países membros da antiga União Soviética. Em certa medida, sugestão de esforço no sentido de valorizar tal organização semiadormecida poderia servir de aceno ao Presidente Putin, em seus devaneios de ressuscitar um projeto eurasiano, sob influência de Moscou.

Dessa forma, o dirigente russo poderia argumentar que eventuais negociações, no âmbito da CEI, em Minsk, incluindo países da Europa e Ásia, seriam vitória de iniciativa que a Rússia alegaria ser sua.