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quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Ucrânia: entre a guerra e a desonra -Vitelio Brustolin CNN Forum

Ucrânia: entre a guerra e a desonra

Vitelio Brustolin

CNN Forum, 20 fevereiro 2025


https://www.cnnbrasil.com.br/forum-opiniao/analise-ucrania-entre-a-guerra-e-a-desonra/


        “Você teve escolha entre a guerra e a desonra. Você escolheu a desonra e terá guerra.” Essa foi a declaração de Winston Churchill quando Neville Chamberlain retornou com a assinatura de Hitler no Pacto de Munique.

        Isso foi em 1938. Hitler recebeu os Sudetos da Tchecoslováquia. Meses depois, invadiu a porção ocidental da Tchecoslováquia. Inglaterra e França apenas protestaram. Meses depois, dividiu a Polônia com Stálin e começou a Segunda Guerra Mundial. A história pode se repetir, não como farsa, mas como nova tragédia. A humanidade parece não aprender e estar fadada a repetir seus erros.

Putin ambicionava ter um governo ucraniano obediente, como o da Chechênia ou o de Belarus. Em 2010, um presidente pró-Rússia, Viktor Yanukovych, foi eleito na Ucrânia. Ele assinou um acordo que permitia a presença das tropas russas na região da Crimeia, além de autorizar o treinamento de militares na península de Kerch. 

        Ainda assim, em setembro de 2013, a Rússia advertiu que se a Ucrânia avançasse com um acordo de livre comércio com a União Europeia, “enfrentaria uma catástrofe financeira” e “possivelmente o colapso do Estado”. Diante disso, Yanukovych recuou e se recusou a assinar o acordo com a União Europeia, refutando uma negociação que estava sendo feita há anos e que ele mesmo havia aprovado anteriormente. 

        Essa decisão do então presidente ucraniano de suspender a assinatura do acordo entre União Europeia e Ucrânia, escolhendo, em vez disso, estreitar laços com a Rússia e a com União Econômica Eurasiática, levou multidões às ruas da Ucrânia para protestar no evento que foi inicialmente chamado de “Euromaidan”. Os protestos duraram três meses, de 21 de novembro de 2013 a 23 de fevereiro de 2014 e culminaram no impeachment de Yanukovych, enquanto ele fugia para a Rússia. 

        Na sequência, a Rússia enviou soldados sem identificação para a Ucrânia, ocupando, sobretudo, a região da Crimeia, mas também ocupando parte da região de Donbas. A ocupação foi concluída em 18 de março de 2014. Atualmente a Ucrânia considera que a Crimeia está ocupada pelos militares russos, mas não reconhece a perda do território.

        A Ucrânia não era inimiga da Rússia. A Ucrânia entregou à Rússia as suas armas nucleares em 1994, por meio do Memorando de Budapeste, um acordo garantido por três potências nucleares: Rússia, Estados Unidos e Reino Unido. China e França mais tarde também aderiram; ou seja, todos os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. 

        O convite para a Ucrânia ingressar na Otan estava engavetado desde a guerra da Geórgia, em 2008. Após 2014, esse ingresso se tornou inviável pelas regras da própria Otan, já que a Ucrânia se tornou território de conflito com a anexação da Crimeia e a guerra civil no Donbas.

        Para resumir: a Ucrânia era um país neutro, como a Rússia queria, desde que obteve a independência em 1991, mas mudou de rumo após Putin promover a anexação da península da Crimeia, em 2014. O Parlamento ucraniano aprovou por larga maioria uma alteração na Constituição e tornou a adesão à União Europeia e à Otan objetivos nacionais. A alteração foi concluída em 2019, três meses antes da eleição de Zelensky. 

        Os grupos extremistas da Ucrânia foram criados em 2014, motivados pela agressão russa – dentre eles, o famigerado Batalhão Azov. Já naquela época existiam grupos extremistas na própria Rússia, como o Russkii Obraz, um grupo neo-nazista que se tornou uma grande força no cenário nacionalista radical da Rússia e que foi apoiado por Putin. Além disso, em 2014 também foi criado o Grupo Wagner, formado por mercenários que atuaram em diversos conflitos ao redor do mundo e que tinha integrantes assumidamente neo-nazistas. O grupo, acusado de cometer crimes de guerra, como saques, estupros, massacres de civis, tortura e execução sumária de prisioneiros de guerra, foi fundado pelo oligarca Yevgeny Prigozhin, antigo amigo Putin que se voltou contra ele em 2023 e, meses depois, morreu em um acidente aéreo suspeito.

        Um dos objetivos declarados por Putin com a guerra na Ucrânia era “restringir a expansão da Otan”. Conforme exposto acima, era impossível o ingresso da Ucrânia nessa organização, pois o país estava em guerra. No entanto, após a invasão da Ucrânia pela Rússia, a Otan de fato se expandiu. O ingresso da Finlândia, após ter sido neutra desde 1945, e da Suécia, que era neutra desde 1814, tiveram o efeito contrário ao que Putin aventava.

        Esses países se aproximaram da Otan para se protegerem da Rússia. Assim como aconteceu com outros países do Leste Europeu, incluindo ex-repúblicas soviéticas. 

Putin alega que, em 1990, o então presidente dos EUA George Bush prometeu ao líder russo Mikhail Gorbachev que a Otan não “se moveria nem uma polegada para o leste” além da Alemanha, se esse país fosse unificado. O próprio Gorbachev, no entanto, afirmou que essa promessa nunca foi feita e que o acordo era apenas sobre a Alemanha, conforme pode ser verificado aqui:  https://www.brookings.edu/articles/did-nato-promise-not-to-enlarge-gorbachev-says-no

        Mas qual é então o real objetivo de Putin com a guerra na Ucrânia? Carl von Clausewitz ensina que a guerra é “uma continuação da política por outros meios”. Quando não se consegue o que se quer pela via diplomática, os Estados podem tentar obtê-lo pelo uso da força. A guerra tem, portanto, um objetivo político: a alteração ou manutenção de um determinado status quo; ou seja: a obtenção de “uma paz mais favorável”.

        O objetivo é o seguinte: Putin não reconhece o direito de a Ucrânia existir como país, conforme escreveu em um ensaio publicado em julho de 2021, no site do Kremlin. A ironia disso, é que os ucranianos não querem fazer parte da Rússia, caso contrário, não estariam lutando há três anos contra a segunda maior potência militar do mundo, com a qual fazem fronteira terrestre. 

        Para se ter uma ideia, a Ucrânia é do tamanho do Estado de Minas Gerais e tem uma população três vezes menor que a da Rússia. É notável que o país esteja conseguido resistir por tanto tempo, mas também é evidente que só vem resistindo com armamentos e auxílios de aliados.

        E é justamente aqui que chegamos ao momento presente: desde o início da guerra, países europeus ajudaram a Ucrânia com o equivalente a US$ 137 bilhões, enquanto os Estados Unidos forneceram o equivalente a US$ 118 bilhões. A Ucrânia pode continuar resistindo sem o apoio dos Estados Unidos? O ex-presidente Joe Biden prometeu por diversas vezes que os EUA apoiariam “pelo tempo que for necessário”. Donald Trump, porém, tem outras ideias.

        Em 1938, Hitler convenceu a Grã-Bretanha e a França de que a Tchecoslováquia, e não a Alemanha nazista, seria a causa do conflito na Europa. O pacto ficou conhecido como um exemplo de “política do apaziguamento”, pois Reino Unido e França tentaram evitar uma guerra cedendo às exigências de Hitler. A Tchecoslováquia não foi sequer ouvida.

        Também não foram ouvidos os países que foram divididos em zonas de ocupação e influência na Conferência de Yalta, em fevereiro de 1945. Stálin, da União Soviética; Roosevelt, dos Estados Unidos; e Churchill, do Reino Unido, “decidiram” por todos os demais. E foi assim que começou a Guerra Fria.

        De novo: Putin não reconhece o direito de a Ucrânia existir como país. Qualquer acordo sobre a Ucrânia que não envolva garantias de segurança levará a outra guerra. Afinal, quando ocupou a Crimeia em 2014, Putin não alegou que estava fazendo isso pela “expansão da Otan”. A invasão de 2022 foi só uma continuação da guerra iniciada oito anos antes. 

        Pior que isso: com o afastamento dos Estados Unidos e seu eventual consentimento de uma nova ocupação russa em territórios ucranianos, ninguém na Europa acredita que a Rússia irá parar na Ucrânia. 

        Há tropas russas ocupando territórios na Georgia, na Abecásia e Ossétia do Sul; além da Moldávia, na Transnístria. A Rússia interferiu recentemente nas eleições presidenciais na Romênia, que, por conta disso, foram anuladas. Os países bálticos, Estônia, Letônia e Lituânia, se preparam abertamente para uma guerra, reforçando seus exércitos e construindo muros nas fronteiras (sim, retornamos aos muros que marcaram a Guerra Fria). A Polônia – que foi dominada por quatro anos pelos nazistas e por cinco décadas pelos soviéticos – investe quase 5% do PIB em defesa, pois não quer ser escravizada novamente. Esses são apenas alguns exemplos, já que desde a ocupação da Crimeia, em 2014, a Europa aumentou em 50% as despesas com defesa. O gasto total dos 27 estados-membros da União Europeia em 2024 foi de € 320 bilhões, contrastando com os € 200 bilhões de 2021, antes de a Rússia lançar seu ataque contra a Ucrânia. 

        A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, está propondo uma cláusula de emergência que permite aos governos que as despesas militares não sejam contabilizadas em seus limites de déficit orçamentário. É uma cláusula semelhante à que foi usada para a área de saúde, durante a pandemia de Covid-19. O objetivo é fortalecer a Ucrânia e chegar a um investimento de € 500 bilhões em defesa. 

        Enquanto isso, o gasto militar da Rússia em 2024 foi estimado pelo Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo, o SIPRI, em US$ 140 bilhões, o que representa quase 40% de todo o orçamento anual do país. Não se trata só de empregar recursos, é preciso fortalecer as bases industriais de defesa da Europa, já que a Rússia produz armamentos e munições com rapidez e custos comparativamente reduzidos, além de contar com o apoio direto do Irã, Belarus e da Coreia do Norte.             Além disso, a Europa precisará agir coordenadamente, após ter deixado a sua segurança a cargo dos Estados Unidos nos últimos 80 anos. 

        Nas guerras de Inverno e da Continuação, entre 1939 e 1945, a Finlândia perdeu 11% do seu território para a União Soviética de Stálin, contudo, saiu dessas guerras soberana. Passou 80 anos se armando e hoje tem um dos mais bem equipados exércitos da Europa. Entrou para a União Europeia junto com a Suécia em 1995 e em 2023 ingressou na Otan. O destino da Ucrânia pode ser semelhante, mas apenas se contar com o apoio de aliados.

        “Você teve escolha entre a guerra e a desonra”, disse Churchill. É a mesma escolha imposta hoje à Europa. O preço da desonra pode ser alto demais.

 

Vitelio Brustolin

PhD em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento

É professor de Relações Internacionais na Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador da Harvard Law School e do Harvard Department of the History of Science. Pós-doutorado na Harvard University.

 


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