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quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

É possível desenvolver uma nação de assistidos? - Paulo Roberto de Almeida

É possível desenvolver uma nação de assistidos?

Paulo Roberto de Almeida 

Leio isto a partir de uma fonte oficial:

Em janeiro de 2025, havia 20,5 milhões de famílias no programa social....

        A partir daí deduzo que quase metade, ou pelo menos 1/3, da população brasileira, se tornou dependente dos subsídios estatais para complementar a sua alimentação ou para suprir qualquer outra necessidade familiar. Supondo-se que o Bolsa Família — como é o seu propósito oficial — destina-se a atender famílias e não indivíduos isolados, e supondo-se que cada núcleo familiar se componha de três ou quatro pessoas, chega-se ao fantástico número de 75 a 100 milhões de pessoas dispondo desse benefício de assistência pública a brasileiros oficialmente carentes, ou seja, pobres ou miseráveis. 

        Autoridades governamentais devem olhar com orgulho esses números, e até repetem um presumido argumento do Banco Mundial segundo o qual o Bolsa Família se trataria do maior programa de redução da pobreza existente no mundo. É possível que seja, mas isso, para mim, não constitui nenhum motivo de orgulho, e sim de vergonha e desalento. 

        Creio que, na verdade, o BF representa, não um programa de redução, sequer de eliminação, da pobreza, e sim um expediente para sua manutenção, quiçá para sua “eternização” estrutural e institucional. É fácil deduzir isso, com base no histórico mundial de todos os programas mundiais de Assistência Oficial ao Desenvolvimento (AOD, em esquemas multilaterais ou nacionais).

        Todos esses programas — AID do Banco Mundial, CAD-OCDE, instituições nacionais do Norte desenvolvido — foram criados na sequência do grande movimento de descolonização do início dos anos 1960. De certa forma, eles se eternizaram e criaram toda uma estrutura complexa de ajuda pública a países mais pobres, supostamente dirigida à população mais carente. Como demonstrou William Clyne, que trabalhou nesse setor durante mais de dez anos para o Banco Mundial, os países que mais receberam ajuda foram os que menos se desenvolveram nos 50 anos seguintes, e continuam sendo os mais frequentes beneficiários da AOD ainda hoje. Seu livro White Man’s Burden demonstra claramente como a AOD pode deformar as estruturas econômicas e os próprios orçamentos públicos dos países beneficiários, levando à dependência estrutural, não à autonomia no processo de desenvolvimento econômico e social, quando não incentivos à corrupção de elites ou simples funcionários públicos.

        Não deve ser diferente com o BF, nosso orgulho nacional, que como já dito preserva a pobreza, não a elimina (e passa a representar spenas um subsídio ao consumo, alimentar ou outro, dos mais carentes. Se, por algum acaso — “tragédia” orçamentária ou outra — o programa desaparecer, haverá mais pobres e dependentes da ajuda oficial do que havia antes. 

        Não creio que esse tipo de subsídio ao consumo seja a melhor via para o desenvolvimento da nação. No mínimo ele repete o temor expresso numa velha canção de Luiz Gonzaga: “uma esmola, meu senhor, para o homem que é são, ou lhe mata de vergonha, ou vicia o cidadão”.

        Não há, contudo, qualquer temor de que isso acabe: ainda não nasceu o político que vai propor o fim do BF, assim que, como no caso dos programas de AOD, não se prevê o final da gigantesca máquina que vive em função do espírito que a anima: ajudar os mais pobres.

        Com muito poucas exceções, poucos países integrantes do hoje chamado Sul Global conseguiram saltar da barreira do desenvolvimento, ou seja, se tornarem autônomos de qualquer ajuda pública.

        Mesmo o Brasil, um país que se orgulha de seu status de representante do tal de Sul Global, mas que realizou um dos mais fantásticos processos de modernização agrícola e industrial ao longo das últimas seis ou sete décadas, ainda não se libertou da tragédia que é ter mais de um terço da população oficialmente na pobreza (e, portanto, oficialmente beneficiária da ajuda pública). Mais ainda: diplomaticamente, o Brasil é um dos líderes mundiais da preservação do status oficial, verdadeiro princípio da diplomacia multilateral, do “tratamento especial, diferencial e mais favorável, para países em desenvolvimento”. 

        Essa luta para preservar o status e o princípio vem praticamente dos anos 1960, e nunca deixou de figurar no menu oficial da diplomacia brasileira, ou seja, foi coincidente com a nossa grande arrancada para a modernização agrícola e o impulsionamento industrial. Ele até acompanhou a incorporação progressiva de mais estratos sociais ao indice de escolarização obrigatória: é certo que finalmente chegamos a uma taxa, mas apenas numérica, de alfabetização, próxima daquela exibida pelos países desenvolvidos, mas 150 ANOS DEPOIS. E isso apenas no conceito que se chama de enrollment rate (número de matrículas), não exatamente no que se refere à qualidade do ensino, em especial para os mais pobres, justamente. O “tratamento especial e mais favorável” para os mais pobres existe apenas para assegurar-lhe um nível de educação medíocre, que os impossibilita tornarem-se independentes de qualquer ajuda pública, exatamente como já ocorre na AOD mundial, que pouco mudou o perfil do mundo no último meio século ou mais.

        Volto à questão do título e simplesmente respondo: não creio que seja possível desenvolver uma nação de assistidos. Sou a favor de uma única, repito, única prioridade, para o Brasil e para qualquer outra nação oficialmente pobre (mas sempre com muitos ricos, embora vivendo com um oceano de pobreza ao redor de si): elevar dramaticamente o nível de educação elementar, e apenas elementar, de toda a população, carente ou não carente. Os níveis superiores de educação, e de desenvolvimento social, se ajustariam rapidamente à nova realidade. Seria pedir muito?

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 13/02/2025 


Leia mais no texto original: 

https://www.poder360.com.br/poder-governo/lula-reduz-bolsa-familia-em-67-das-cidades-que-recebiam-com-bolsonaro/ 

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