Valor Econômico, 26/06/202
Renda básica para as crianças
Naercio Menezes Filho
A pandemia explicitou ainda mais a desigualdade extrema que existe no país. Os mais pobres estão sendo os mais afetados pela perda de empregos e renda, os que mais ficam doentes, não conseguem aprender à distância e estão morrendo mais. Mas justamente por ter deixado isso ainda mais evidente, a pandemia abriu uma janela de oportunidades para tornarmos as oportunidades menos desiguais no país. Como podemos aproveitá-la da melhor forma?
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que 3 milhões de crianças nascem todos os anos no Brasil e que cerca de 25% delas não terão oportunidades para se desenvolver, estudar e conseguir um emprego no setor formal, especialmente as negras. No futuro essas crianças irão se juntar ao enorme estoque de adultos que também não teve oportunidades no passado. E isso vai diminuindo a produtividade do país e drenando recursos públicos para construção de mais hospitais, presídios e para programas de qualificação profissional, minando a sustentabilidade fiscal do país no longo prazo.
Para melhorar a vida dos mais pobres, não deveríamos tornar permanente o programa de renda básica emergencial do jeito que ele foi desenhado, nem criar um programa de transferência de renda universal. É melhor transferir mais renda para quem realmente precisa do que transferir um valor pequeno para todos os brasileiros. E devemos priorizar as crianças.
O programa de renda básica emergencial está sendo muito bem-sucedido, conseguindo atenuar os efeitos sociais da pandemia e evitando uma recessão ainda maior. É provável que abril, maio e junho sejam os meses de menor pobreza e desigualdade da história do país, em plena pandemia, devido a esse programa. Portanto, ele deve continuar até que o novo programa social seja colocado em prática. Porém, por ter sido implementado de forma rápida (o que era necessário), acabou beneficiando muitos brasileiros que não precisavam do auxílio, mas que não resistiram à tentação de aproveitar a "boquinha". Isso aumentou muito o seu custo.
Já o programa Bolsa Família, apesar de ter uma focalização bem melhor, não é suficiente para tirar as crianças da pobreza. Apenas evita a pobreza extrema. Por exemplo, 50% das famílias com crianças de 0 a 6 anos que estão no programa continuam pobres mesmo depois das transferências. Além disso, o programa tem que disputar verbas com outros programas não prioritários, o que gera atrasos e ausência de reajustes, como ocorreu nos últimos anos.
Assim, nosso desafio é combinar as partes boas desses dois programas e eliminar as ruins. Para isso, junto-me a vários especialistas que têm defendido ampliar o valor das transferências para as famílias com crianças. Mas qual seria a alternativa para fazer isso com a menor razão custo/benefício?
A tabela mostra simulações com diferentes possibilidades. Atualmente, 25% das famílias brasileiras com crianças de 0 a 6 anos são pobres. Podemos transferir R$ 800 para todas as famílias com crianças ou somente para as que estão no programa Bolsa Família (PBF). Podemos transferir os recursos por família ou por criança. Se transferirmos R$ 800 por criança para todas as famílias com crianças, a pobreza cairia para 5%, ao custo de R$ 174 bilhões. Se transferirmos o mesmo valor por criança, mas somente para as famílias que estão no PBF, o custo seria de R$ 83 bilhões e a pobreza cairia para 13%.
Mas se o programa Bolsa Família fosse aperfeiçoado, chegando a todas as famílias pobres e retirando do programa as que não o são, a pobreza cairia para 5%, ao custo de apenas R$ 48 bilhões. Assim, com esse valor poderíamos praticamente eliminar a pobreza infantil no Brasil e manter as condicionalidades existentes no PBF, que se mostraram importantes para melhorar a educação e saúde dos mais pobres.
Para melhorar a focalização do programa, o governo deveria usar o aplicativo desenvolvido para o programa de renda básica emergencial. O ideal seria que todas as famílias potencialmente pobres fizessem o cadastro eletrônico no aplicativo e inserissem as suas informações de renda, trabalho e ativos todos os meses, tal como é feito no imposto de renda uma vez por ano. As que não dispõem de celular nem computador poderiam ir ao conselho de assistência social do município para atualizar os valores. Quem entrasse na pobreza receberia a transferência automaticamente e quem saísse da pobreza receberia um bônus e teria os valores das transferências reduzidos paulatinamente ao longo do tempo.
Uma equipe do governo verificaria a consistência das informações ao longo do tempo e usaria todas as bases de dados do governo e movimentações bancárias para diminuir as fraudes. Além disso, as equipes municipais sorteariam uma pequena amostra para fazer auditorias através de visitas domiciliares todos os meses. Quem fraudasse o sistema teria que pagar multa e não poderia mais entrar no programa.
Para arrecadar os recursos para pagar esse programa, o governo deveria acabar com os abatimentos do imposto de renda para os gastos com educação e saúde e tributar a renda de todas as pessoas igualmente, independentemente da fonte. Assim, os lucros e dividendos, juros sobre capital próprio, renda do trabalho e rendimentos das empresas que estão no "Simples" seriam todos tributadas da mesma forma. Nada mais justo.
Além disso, a alíquota do imposto sobre herança deveria aumentar e uma nova alíquota no imposto de renda de 35% deveria ser criada. Por fim, o imposto sobre pessoa jurídica deveria ser reduzido para diminuir a bitributação, mas todos os artifícios legais usados pelas empresas para pagar menos impostos teriam que ser proibidos.
Além disso, deveríamos continuar contendo os gastos públicos, sempre buscando mais eficiência, mas preservando o orçamento da saúde, educação e ciência, que são essenciais para igualar oportunidades e se mostraram importantes para lidarmos com a crise atual. Em suma, é possível acabar com a pobreza infantil no Brasil, mas para isso temos controlar o aumento de gastos no setor público e tornar nosso sistema tributário mais justo.
Bolsa Família avança, mas auxílio é baixo, mostra Ipea
Instituto diz que acesso cresceu entre os 10% mais pobres
Por Gabriel Vasconcelos — Do Rio
A distribuição de renda promovida pelo Bolsa Família se aperfeiçoou continuamente entre 2012 e 2019, inclusive no primeiro ano do governo Jair Bolsonaro. Análise do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que, entre 2012 e 2018, o percentual de beneficiários que fazem parte dos 10% mais pobres da população avançou 6,3 pontos percentuais (p.p.), alcançando 38,9% dos contemplados. Em 2019, essa participação dos mais pobres no programa subiu para 40,0%, segundo atualização do dado feita pelos pesquisadores ao Valor. Eles utilizaram os dados completos de rendimento fornecidos pelo IBGE.
Entretanto, os valores médios recebidos pelas famílias, de R$ 117 a R$ 200 ao mês, são considerados módicos ante as necessidades brasileiras. Segundo especialistas, o impacto do auxílio emergencial sobre as estatísticas da pobreza no país "escancarou" a modéstia dos valores do Bolsa Família. Em maio, na média, o auxílio emergencial pagou R$ 846,50 por domicílio contemplado, informou o IBGE.
Quanto ao desempenho do Bolsa Família em 2019, sob Bolsonaro, o economista do Ipea Luis Henrique Paiva afirma que cerca de 408 mil brasileiros do decil mais pobre da população passaram a receber o benefício. Mas, segundo a análise, o avanço não se deve a esforço do atual governo e sim a melhorias promovidas por prefeituras e aprimoramento das ferramentas de checagem do programa - aperfeiçoadas desde 2005, quando começou o cruzamento dos dados declarados com as bases do governo e, depois, foi firmado contrato com a Dataprev, que desenvolveu inteligência própria.
O fato negativo em 2019, diz Paiva, foi o retorno da fila de pedidos pelo benefício, eliminada no governo Michel Temer. "Fechamos o ano com o menor número de famílias beneficiadas em muito tempo, cerca de 13,3 milhões. Mas, logo no início da pandemia, o governo admitiu 1 milhão delas e o número se estabilizou."
Os pesquisadores do Ipea destacam que, como contemplados de menor renda tem benefício maior, a participação do decil mais pobre da população é ainda mais expressiva quando considerado o montante de recursos aplicado no programa. Esse grupo ficava com 36,1% dos recursos em 2012 e passou a tocar 45% do dinheiro aplicado no Bolsa Família, R$ 30 bilhões em 2019.
"O avanço [de 8,9 pontos percentuais] é alto para um programa que já era dos mais progressivos da América Latina em 2011", diz Paiva. Hoje, o Bolsa Família é o terceiro com melhor focalização na região, só atrás de programas de Panamá e Peru. Estes, embora tenham performance melhor, atendem público e território bem menores que o brasileiro.
Os beneficiários do Bolsa Família dos dois decis de renda mais baixa subiram de 58% em 2012 para 65,7% do total em 2019. Essa faixa percebeu 70,1% do valor no ano passado, ante 61,5% em 2012. O avanço fez a participação de faixas com maior renda cair: pessoas entre os 10% mais ricos do país eram 6,3% dos beneficiários há oito anos e foram 4,2% no ano passado.
Medidor mais acurado de progressividade por considerar a renda domiciliar per capita já com o benefício, o coeficiente de concentração dos recursos do Bolsa Família também melhorou, caindo 6,0 p.p., para -0,64 2018. O indicador varia de -1 a +1, situação em que todo o dinheiro vai para o mais rico.
Ponto negativo é a taxa de exclusão do programa: 18,9% dos brasileiros entre os 10% mais pobres não estão no programa. Se o Brasil quer avançar ainda mais contra a pobreza, diz ele, deve incluí-los e aumentar os valores individuais dos benefícios. Depois, afirma o economista, o segundo passo é ampliar a focalização nas crianças. "Metade das crianças que não recebem nenhuma transferência de renda estão no terço mais pobre da população", diz ao criticar, or exemplo, as deduções de imposto à pessoa física para dependentes, que privilegia os filhos das camadas ricas.
Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV), Daniel Duque concorda. "O Bolsa Família corresponde a 0,4% do PIB e há consenso de que é pouco. Além disso, pouco se fala que ele hoje tem valor real menor do que tinha em 2014, porque no ano seguinte houve inflação de 10,67% sem reajuste para o programa", diz.
Para Duque, aumentar o valor do benefício do Bolsa Família é sim boa ideia após ajuste das contas públicas via reformas. Mas, para além disso, seria importante aumentar sua eligibilidade. "Existe grande número de famílias que transita na pobreza, muitos informais, que não conseguem entrar no programa porque tem renda acima da elegível em boa parte do ano mas a perdem em algum momento. Isso seria resolvido se a inclusão se desse de forma automática ou se o teto de renda elegível fosse ampliado", sugere.
Ambos afirmam que o auxílio emergencial, com repasses até dez vezes maiores que os do Bolsa Família, jogou luz sobre as suas limitações. A partir dos microdados da Pnad Contínua Covid-19, do IBGE, Duque afirma que o auxílio emergencial fez o percentual da população abaixo da linha da pobreza cair de 24,8% para 22,2% somente entre a primeira e a última semana de maio. A pobreza extrema, diz ele, caiu de 5% para 3,5% no mesmo intervalo de tempo. No cenário em que a cobertura dos repasses (38,7% dos domicílios) ainda aumenta, seus efeitos tendem a crescer, diz o especialista.
Paiva lembra que o auxílio praticamente cobriu três folhas do Bolsa Família, uma vez que 19 a cada 20 famílias que o recebem migraram temporariamente de programa. Como o excedente é de difícil remanejamento por exigir aprovação do Congresso, o governo poderia usar os recursos para turbinar mensalidades ou admitir mais contemplados nó pós-crise. "São R$ 7 bilhões que vão sobrar no programa", diz, considerando remota a possibilidade de mais um aumento em 2021 devido ao teto de gastos.
Economistas sugerem programa de renda com foco na geração de emprego
Projeto prevê valor variável para auxílio, a fim de complementar rendimentos até um nível mínimo
Por Gabriel Vasconcelos — Do Rio
Os economistas Sérgio Firpo, do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), e Pedro Olinto, do Banco Mundial, desenvolveram uma proposta própria de novo programa social, que mira não só o arcabouço social, mas o estímulo à geração de empregos formais.
A dupla propõe renda mínima universal que, a exemplo de outras propostas e da própria ideia da equipe econômica, seria viabilizada pelo remanejamento de gastos com programas já existentes e deduções tributárias à pessoa física.
O projeto prevê auxílio de valor variável, capaz de inteirar a renda familiar até um mínimo fixado. "Temos uma população marcada pela informalidade e que sofre muito com oscilação de renda, mesmo fora da pandemia. Por isso, esse programa funcionaria como uma espécie de seguro, para encerrar o flerte dessas pessoas com a extrema pobreza, ao mesmo tempo que estimula o emprego formal", diz Firpo.
No caso dos empregados formais de baixa renda, o programa funcionaria como subsídio ao empregador para desonerar a folha de pagamentos e estimular o emprego. A segunda linha da proposta vai em linha com o desejo de Guedes em reduzir custos ao empregador. "A ideia é que as empresas passem a cogitar a contratação de mão obra pouco especializada que lhes parece muito cara hoje", afirma o economista do Insper.
Para o novo programa, Firpo e Olinto sugerem redirecionar os montantes dispensados com salário família, abono salarial, seguro defeso e descontos ligados a saúde e educação no Imposto de Renda. Além desses orçamentos, ainda seria necessária aplicação de dinheiro novo. Na conta dos especialistas, o gasto adicional ficaria em torno de 1% do PIB, ou cerca de R$ 73 bilhões, para um piso do benefício em R$ 100 reais per capita.
O montante sugerido é pouco menor que o vislumbrado pelo economista Naercio Menezes, também do Insper, que custaria mais R$ 80 bilhões por ano, e maior que os R$ 52 bilhões calculados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em sua proposta. O documento do Ipea só trabalha com remanejamento de verbas mediante o encerramento de programas existentes. O Valor apurou que os pesquisadores do Ipea fizeram simulações mais ambiciosas, mas recuaram para algo próximo do consenso da equipe econômica, avessa ao aumento de gastos.
Proposta bem mais cara aos cofres públicos vem do economista Daniel Duque, do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV). Ele também propõe renda universal, que unifique benefícios mas na ordem de 4,0% do PIB. O projeto permitiria repasse per capita de R$ 220 aos mais pobres, enquanto este valor hoje, via Bolsa Família, é de apenas R$ 70.
As propostas do Ipea, Naercio e Duque focam a infância, enquanto a de Firpo e Olinto olham para o trabalhador adulto.
Para tocar os valores, diz o especialista, mesmo os beneficiários que trabalham na informalidade teriam, obrigatoriamente, de estar bancarizados e contribuir com o mínimo para a Previdência Social.
Firpo elogia o esforço do governo em promover o auxílio emergencial de R$ 600 pago a trabalhadores informais e os repasses que aliviam a folha de pagamento das empresas no caso de contratos reduzidos ou suspensos. Mas lembra que é consenso, dentro e fora do governo, que esse nível de gasto não se sustenta.
Em seus cálculos, o governo gasta entre R$ 700 e R$ 800 per capita para um público potencial de 80 milhões de pessoas (70 milhões de informais e 10 milhões de empregados formais). "Prorrogado indefinidamente, isso passa 10% do PIB ao ano. Precisa ser reduzido e o que propomos é um programa de repercussão mais ampla, que estimule a formalização e, tão logo, a arrecadação", diz Firpo.