Tangos e tragédias nas
eleições brasileiras:
menas, pessoal, menas...
Paulo Roberto de Almeida
Eu me pergunto o que diria
o Chacrinha, se vivo fosse, das eleições brasileiras, versão 2014? Ele já morreu
há muito tempo, e talvez se sentisse, como diríamos, um pouco deslocado no
atual cenário político-eleitoral, em nada parecido com aqueles embates
grotescos, que envolviam, em seu tempo, não apenas personagens histriônicos,
inclusive alguns palhaços, como ele mesmo, mas também oportunistas baratos e
políticos que não conseguiriam obter uma certidão de bons antecedentes. Nada
disso acontece hoje, obviamente. Ou o que diria Sergio Porto, o saudoso
Stanislaw Ponte Preta, que ficava selecionando frases magníficas de nossos
personagens políticos para integrar a sua famosa enciclopédia da genialidade
política, aliás até hoje, o Febeapá? Será que ele teria material para rechear
um terceiro, ou quarto, volume da série?
Mas esses são observadores
das antigas, inacessíveis aos mais jovens, ainda que estes também terão ouvido,
ou lido, alguma referência a esses dois imortais, bem mais conhecidos, em todo
caso, do que vários imortais da Academia Brasileira de Letras. Eu prefiro me
reportar a um humorista que morreu mais perto de nós, e que deve ter assistido
a magníficos exemplos de “criacionismo político”, o que lhe rendia farto
material para também rechear suas páginas do melhor humor político: o que
estaria dizendo Millôr Fernandes dos atuais embates, já não digo entre os
próprios candidatos, mas mais propriamente entre aqueles que os apoiam,
respectivamente?
De fato, tenho
acompanhado, o mais das vezes pelo Facebook, alguns exemplos pouco memoráveis,
e francamente patéticos, de lutas ferozes, enfrentamentos rudes e batalhas
verbais x-rated, entre os defensores
de uma e outra candidatura. Não que esses embates na internet possam abalar os
mercados – como certas pesquisas eleitorais, cada vez que a candidata sobe um
pouco nas intenções de voto – mas eles podem abalar amizades, sepultar longas
convivências, destruir possibilidades de cooperação futura, até inviabilizar
aquele grande projeto acadêmico. Ainda bem que tudo isso se dá no conforto do
lar ou ao abrigo do escritório, não é mesmo? Do contrário poderia ocorrer até o
que um ministro do Supremo, aliás presidente do TSE – e antigo advogado dos
companheiros, lembram-se? –, chamou de “risca-faca”. Eu não entendo bem o que
seja isso, mas deve ser algo terrível, até parecido com o que anda fazendo o
Estado Islâmico. Dizem as más línguas que esse ente fabuloso da nova ordem
mundial até pensou em abrir uma filial por aqui, e estava buscando
oportunidades de diálogo. Se vocês souberem de alguma possibilidade nesse
terreno, favor avisar o próprio (eles já estão na internet, e devem ter até
Facebook, ou pelo menos Twitter).
Bem, mas não era isso que
eu queria dizer. Eu apenas queria registrar que tenho ficado chocado com o que
tenho lido e visto na internet, nesses embates entre gregos e goianos. É
propriamente aterrador, como diria alguém, constatar que antigas amizades, e
relações respeitosas entre colegas acadêmicos, podem estar se desfazendo de
modo absolutamente inútil, a partir desses enfrentamentos eleitorais
pré-segundo turno. Então, para restabelecer a calma na nossa gafieira, resolvi
desfazer alguns mitos que têm aterrorizados os gregos e os goianos, cada tribo
acusando a outra de projetarem as piores abominações em caso de vitória. Vamos
a elas.
Mito: Se o PT continuar no
governo vai fazer o Brasil virar comunista, ou, pelo menos, bolivariano.
Ilusão. Mesmo que
quisessem – e muitos deles têm, inquestionavelmente (ops, saiu certa a
palavra), o DNA do totalitarismo – os companheiros não conseguiriam implantar o
comunismo no Brasil, sequer o socialismo light.
Os companheiros podem ser ignorantes em matéria de história, de economia, de
administração, mas eles não são estúpidos. Eles sabem que essa coisa de
socialismo é para trouxas, como alguns colegas da região, especialmente os
bolivarianos. Por que é que eles vão afogar os capitalistas que os mantêm no
bem-bom da vida, podendo extrair tranquilamente recursos legais e menos legais,
sem precisar tratar com toda aquela parafernália de planejamento estatal,
controles de preços, Nomenklatura oficial, essas coisas tão démodées, à la Stalin, ou de caudilhos fascistas? Por que não continuar com
esse capitalismo amestrado, todos esses banqueiros domados, esse conforto que é
poder desfrutar de certas benesses, sem se chatear com aquelas bobagens cubanas
e com as loucuras bolivarianas?
Minha gente: os
companheiros só querem um capitalismo de face humana, entenderam?; um para o
qual eles mesmos desenham a face, sorridente, generoso com os pobres (desde que
os pobres continuem votando para eles), inclusivo, enfim, essas coisas que
qualquer país socialdemocrata tem. A única coisa da qual eles não gostam mesmo
é da tal de alternância; isso os deixa muito incomodados. Ah, sim, também tem
outra coisa: eles não gostam dessas críticas da “grande mídia”; por isso eles
vêm tentando, com muito denodo, democratizá-la, entenderam? Para isso, basta
mandar a Receita Federal examinar os livros contábeis desses valentes do Partido
da Imprensa Golpista, que ela, a RF, descobre rapidamente irregularidades em
algumas das 3.500 normas da própria RF; por aí eles conseguem enquadrar esses
recalcitrantes.
Mito: Se a oposição ganhar, o
país vai retroceder 15 anos, e ficar entregue à direita mais reacionária, aos
tucanos neoliberais, que vão novamente submeter o Brasil aos ditames de Wall
Street, enquadrá-lo nas regras do Consenso de Washington, e submetê-lo às
políticas recessivas do FMI.
Nem por sonho. Como é que
um país, que nunca foi liberal em toda a sua história, vai virar neoliberal,
assim de uma hora para a outra, sem sequer dar tempo de redecorar a casa para
receber os donos da finança e os mestres do império? Como diria Mário de
Andrade, lá pelos anos 1920, “progredir progredimos um tiquinho, que o
progresso também é uma fatalidade...”. Pois é, não dá para retroceder: todas as
amarras congressuais, sociais, espirituais e filosóficas, fazem do Brasil,
inquestionavelmente (ah, saiu certo outra vez), um país socialdemocrata, e
condenado a sê-lo. Tudo indica que não tem marcha atrás. As promessas
distributivistas vão ter de ser cumpridas, e ainda não nasceu o político que
vai reduzir ou acabar com programas sociais: eles só vão aumentar, e com eles a
dependência de um número crescente de brasileiros da ajuda estatal. Este seria
o modelo de sociedade que perseguem tucanos neoliberais e petistas
distributivistas? Assim parece...
O único problema disso
tudo é que o Brasil escolheu distribuir a riqueza muito antes de ficar rico, e
aí corre o risco de estagnar na mediocridade do crescimento pelas próximas duas
gerações, pelo menos. Como é que pode, um país que tem 16% do PIB de poupança
doméstica, que investe menos de 20% do PIB (contando com uns trocados do
exterior), crescer mais de 3% ao ano? Não pode. Assim, só dá para ter
crescimento da renda per capita em torno de 1 a 2% ao ano, entenderam? Isso
significa que a renda individual só vai dobrar para os seus netos, contentes
com isso? Ou seja, vamos continuar alegremente nesse caminho socialdemocrata,
orgulhosos de sê-lo, e nos contentar em exportar minério para a China. Está bem
assim, ou os companheiros tem alguma solução maravilhosa que os tucanos neoliberais
ainda não descobriram?
E essa coisa de alinhar o
Brasil com o império? Bobagem companheira, que só os estudantes da UNE
compartilham, embora alguns grandalhões continuem a repetir esse tipo de alegação
maldosa, inclusive alguns diplomatas experientes. A obsessão antiamericana é
uma das doenças infantis que ainda ficaram dos velhos tempos de
anti-imperialismo doentio do partido burguês que hoje é o dos companheiros. Só
quem acredita nisso é o Moniz Bandeira e o Samuel Pinheiro Guimarães,
seriamente, eu quero dizer; o resto do pessoal continua a repetir essa bobagem
para não ficar mal com os estudantes da UNE, entenderam?
Mito: Se os companheiros
conseguirem vencer mais essa, eles vão lotar os órgãos estatais de gentinha da
esquerda, essas ratazanas que querem expropriar fazendas, colocar um imposto
contra os ricos e esquerdizar de vez as nossas instituições.
Nem chance. Os
companheiros vão, sim, dar alguns empregos a essa arraia miúda do PCdoB e de
outros partidecos da esquerda e até para algumas seitas alucinadas: para isso
existe o Incra, o MDA, e algumas agências públicas. Mas os cargos realmente
importantes vão para esses estupendos representantes da esquerda tupiniquim
como podem ser o Sarney, o Collor, o Maluf, o Barbalho, o Garotinho, e até para
alguns capitalistas amigos, como o Eike Batista, que precisa urgentemente de uma
Bolsa Família só para ele (completa, ou seja, a dos 45 milhões de beneficiários).
Imposto contra os ricos?
Mas justo agora que muitos deles fizeram o seu primeiro milhão? Não se brinca
com essas coisas: imposto é só para quem não pode escapar, assalariados em
geral, classe média em particular, e empresários que não puderem se entender
com o Tesoureiro do partido, o shadow-Finance
minister...
Esquerdizar as
instituições? Não é bem isso: basta aparelhá-las com gente de confiança e o
trabalho está feito. Aliás, ninguém mais se lembra do decreto bolivariano dos
sovietes petistas?; aposto como vocês esqueceram. Basta subsidiar generosamente
todas essas ONGGs, e a coisa está feita. O Brasil pode viver em paz com 15% de
comissão (que parece ser a média na China; mais do que isso, a coisa complica).
Mito: Os tucanos, se voltarem,
vão acabar com o Bolsa Família, reduzir o salário mínimo e provocar desemprego.
Só se eles fossem doidos. O
que os tucanos querem fazer é administrar o BF em bases estatais, e não como
curral eleitoral (mas os companheiros não acreditam nisso), fazer com que os
aumentos do salário mínimo acompanhem, no mínimo (com perdão da redundância) o
crescimento da produtividade, e atrair investimentos estrangeiros e estimular
os nacionais para criar empregos basicamente no setor privado, em lugar de
ficar aumentando o funcionalismo público como os companheiros gostam de fazer
(se possível só com companheiros, que pagam o dízimo ao partido, e ainda
contribuem com 10 a 30% do DAS quem tem). Os companheiros podem até ter boas
intenções em direção de todas essas categorias – dependentes estruturais,
classe operária e funcionários públicos, de modo geral – mas em matéria de
economia eles são um pouco como esses keynesianos de botequim que pululam na
UniCamp, cheios de ideias brilhantes, nenhuma delas exequível, já que acabam
caindo no desastre da “nova matriz econômica” ou de algum “desenvolvimentismo” nouvelle manière.
Os tucanos são um pouco
mais sofisticados, já que aderindo, em sua maior parte, à nova síntese
keynesiana, que é o mainstream com
pitadas de anticíclico, entenderam? Daí que eles vão ensinar aos companheiros
como é que se estabiliza a economia, se reduz a inflação, e integra o Brasil
aos circuitos produtivos internacionais. Eles não cultivam certas bobagens
protecionistas, pois sabem que stalinismo industrial não funciona: o jeito é se
lançar ao mar, e navegar sempre para a frente, na globalização, que os
companheiros sempre acusam de perversa e assimétrica. Enfim, com os tucanos
pelo menos não somos obrigados a ouvir aquele manancial de bobagens do Fórum Social
Mundial, que os companheiros acompanhavam com verdadeiros orgasmos muito
sociais (e ecológicos, claro). Enfim, vai diminuir o Febeapá 2.0.
Em conclusão, não muda
muito o panorama das políticas sociais e da confusão congressual de sempre,
embora o linguajar possa melhorar sensivelmente. Uma coisa é certa: depois de
12 anos de Nunca Antes, vamos respirar um pouco com coisas mais sensatas e
menos grandiloquentes. Como vai ser bom descobrir que o Brasil não nasceu
ontem, e poder dizer ao pessoal: olha, essa coisa de abraçar ditador não é comigo,
ok? Só isso, já nos tira um peso enorme da consciência, saber que a defesa da
soberania nacional não é contraditória com a preservação da dignidade na defesa
de certos valores, que aliás estão inscritos em nossa carta constitucional. Por
mais esquizofrênica que ela seja no plano econômico, ela não faz feio no plano
de certos princípios e fundamentos, soberbamente ignorados ao longo dos últimos
anos.
Paulo
Roberto de Almeida
Hartford,
23 de outubro de 2014.